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O filantropo e o toxicodependente
Uma parte da História económica destes anos que vivemos já pode começar a ser escrita pelos académicos. Este é um momento de exceção. Vivemos, em quase toda a Europa, “o fim da austeridade“, isto é, uma menor insistência das instituições europeias no equilíbrio urgente das contas públicas. Ao mesmo tempo, os estímulos inéditos do Banco Central Europeu (BCE) tornam os mercados dormentes, empurrando as taxas de juro para mínimos históricos. Esta é a parte da História que se pode ir escrevendo. Falta perceber, escreve o HSBC num relatório enviado aos clientes esta quarta-feira, se o tal fim da austeridade se revelará uma “razão para celebrar ou se é algo que devemos recear“. Portugal é um dos países que preocupam o banco de investimento.
A análise do HSBC, um banco verdadeiramente mundial e de grande influência, é um contributo para ajudar os investidores globais a tomarem decisões de investimento. No que à zona euro diz respeito, o economista Fabio Balboni fez um retrato aprofundado da encruzilhada política e económica que a zona euro vive. Neste relatório, a que o Observador teve acesso, Balboni conclui que no curto prazo o “fim da austeridade pode ser uma boa notícia”. “Contudo, precisamos de manter um olho muito atento sobre a forma como a folga é aproveitada“, porque “no longo prazo, o que importa é saber se os gastos públicos criam condições para impulsionar o crescimento do setor privado” e, aí, “maximizar o potencial de crescimento futuro”.
Neste prisma, o banco de investimento mostra-se “cético de que assistiremos ao tipo correto de alívio orçamental“, que fomente a atividade no setor privado. Algo que, a confirmar-se, “fará com que os ganhos de crescimento que venham a verificar-se sejam sol de pouca dura“. Um dos países que preocupam o HSBC é Portugal, onde, assinala o banco, os partidos que apoiam o novo governo têm vindo a defender a inversão dos cortes anteriormente aplicados nos salários do setor público.
Em termos simples, a tese defendida pelo HSBC no seu relatório é que estão criadas as condições para a redenção ou para uma explosão espetacular. Porquê? Pela mesma razão que um bilhete da Lotaria premiado nas mãos de um filantropo pode significar a construção de um novo parque infantil na vila mas, noutra situação, nas mãos de alguém que sofre de toxicodependência pode resultar numa morte por overdose.
BCE oferece “dádiva” aos países…
Este estado de coisas começou com a garantia de Mario Draghi, em julho de 2012, de que o euro era “irreversível” e que o BCE “faria tudo, dentro do seu mandato, para preservar o euro”. Como veríamos mais tarde, nem estas palavras históricas tornam impossível que, politicamente, se admita a saída de um país da zona euro. Mas muito mudou desde então e a postura mais pró-ativa do BCE viria no início de 2015, com o lançamento do programa de expansão monetária através da compra de dívida pública no mercado (conhecido pela sigla Q.E.).
“Foi uma dádiva para os governos da zona euro”, diz Fabio Balboni, economista do HSBC para a Europa. Os países estão, em primeiro lugar, a pagar menos juros pela nova dívida que emitem. E, por outro lado, estão a ver o BCE comprar no mercado títulos de dívida antiga, cujos juros periódicos deixam de ser pagos aos investidores e passam a ser pagos ao BCE – gerando uma rendibilidade para os bancos centrais que acabará, no final, por ser distribuída aos respetivos Tesouros públicos na forma de dividendos.
O HSBC criou um modelo que tenta quantificar o lucro que os Estados da zona euro estão a ter com estes dois efeitos. O resultado do modelo apresenta Portugal como o país que mais beneficiou das medidas do BCE: 275 pontos base (ou seja, 2,75 pontos percentuais) na diferença entre as taxas a 10 anos de Portugal e Alemanha. Graças ao mesmo programa, Itália, por seu lado, tem um prémio de risco 135 pontos inferior ao que teria sem o programa Q.E., Espanha menos 120 pontos e França 25 pontos base.
Para contextualizar estes números, eis a forma como evoluiu o prémio de risco de Portugal face à dívida alemã – a referência na zona euro para dívida sem risco.
…e Bruxelas “assobia para o lado”
Ao mesmo tempo que o BCE torna os mercados financeiros relativamente dormentes em relação a episódios de incerteza, como vimos na recente crise política portuguesa, “a Comissão Europeia tem assobiado para o lado perante as diabruras orçamentais de alguns países”, diz o HSBC. Sim, porque “se todas as regras fossem rigorosamente aplicadas, o único país da União Europeia que estaria, neste momento, a cumprir seria a Alemanha”.
Fabio Balboni considera que Bruxelas tem “discretamente mostrado uma tolerância considerável perante as recentes derrapagens orçamentais”. Um exemplo foi o puxão de orelhas que foi dado a Espanha no início de outubro. Entretanto, em plena campanha eleitoral no país vizinho, o Comissário Europeu Pierre Moscovici acabaria por reformular a declaração e disse que esta questão tem de ser reavaliada no próximo ano.
Que lições se retiram? “Sabendo que Espanha é o país que mais longe estará de cumprir os objetivos orçamentais em 2016, é improvável que Bruxelas assuma uma atitude mais dura em relação aos outros países, na nossa opinião”, diz o HSBC, acrescentando que “a política desempenha, aqui, um papel fundamental“.
A visão benigna do fim da austeridade
Estes dois fatores estão a criar uma folga para os países, que está a ser utilizada. O HSBC nota que “quando olhamos para o défice excluindo os pagamentos de juros de dívida, o ritmo de consolidação orçamental abrandou na zona euro, em alguns casos até se inverteu“. É o caso de Itália, por exemplo, diz o HSBC.
No curto prazo, este alívio da austeridade pode ser importante dado o enfraquecimento da procura por parte das economias globais, nomeadamente da China e de outras economias emergentes. É indiscutível, para o HSBC, que “a zona euro está, desesperadamente, a precisar de mais procura – quer ela venha do lado orçamental (público) ou não”.
O próprio Comissário Europeu Pierre Moscovici notou a 23 de novembro que “os países com margem orçamental disponível não estão a fazer uso dela, e isto é um tema importante que merece uma discussão adicional”. Esta é uma referência à velha questão de que a Alemanha está a acumular superavits que podiam ser gastos a fim de animar a economia europeia. E que, já agora, só não resultam numa moeda nacional muito mais cara para a Alemanha porque já não existe o marco mas, sim, o euro.
A questão dos migrantes que chegam à Alemanha poderá ser um “fator mitigante” aos olhos de Bruxelas e poderá levar o país a aumentar a despesa pública – ao mesmo tempo que aproveita esta questão como uma oportunidade para combater o envelhecimento demográfico que é uma grande ameaça no horizonte da Alemanha.
E a visão menos benigna
O HSBC nota que, entre os casos analisados pelo banco, apenas dois países na zona euro baixaram o seu investimento público (nominal, sem juros) entre 2010 e agora – Espanha e Portugal. São dois países onde os níveis de dívida continuam elevados, o que limita a margem de manobra. Assim, apesar da maior flexibilidade atual, “os países não têm grande alternativa a cortar a despesa corrente se quiserem investir mais, como assinalou Mario Draghi”, recorda o HSBC.
A questão é que, “numa perspetiva de longo prazo, o que importa é se o gasto público adicional irá impulsionar o crescimento da atividade no setor privado”, sublinha. “Infelizmente, em parte por razões políticas, não parece ser isso que está a acontecer até ao momento”, lamenta o banco de investimento.
Veja-se, por exemplo, o caso de Itália – que Fabio Balboni conhece de forma mais íntima, apesar de trabalhar em Londres. Em Itália, “o aumento da meta do défice foi usada como pretexto para cortar para metade a redução da despesa corrente que estava planeada”, cortes que passaram de 12 mil milhões para 5 mil milhões. Foi assim que foi aproveitada a folga, lamenta Balboni, “em vez de baixar os impostos sobre o trabalho – que continuam muito acima da média dos países da OCDE – ou tomar medidas de promoção de investimento privado“.
Em Espanha aconteceu o mesmo e “isto é algo também pretendido pelos partidos que suportam o novo governo em Portugal“. França também não está a tomar as melhores decisões, defende o HSBC, o que sustenta que “a Comissão Europeia tem razão ao exigir mais clareza antes de admitir maior flexibilidade, por exemplo, a Itália”. Porquê? “Para ter a certeza que o dinheiro irá ser, realmente, gasto em investimento“, explica Fabio Balboni.
Os estímulos do BCE não duram para sempre
O economista do HSBC aponta para uma pesquisa académica de Pablo D’Erasmo que concluiu, já em 2015, que há sinais de “exaustão fiscal” na zona euro. O que é preocupante porque “despesa pública e défices mais elevados hoje significam impostos mais elevados amanhã“, como recorda Fabio Balboni.
Aliás, a perspetiva de impostos novamente mais altos amanhã poderá levar as pessoas a inibirem o seu consumo hoje, o que prejudica a economia. É claro que a prática – e a própria teoria económica – prova que quando as pessoas têm pouco rendimento disponível essa inibição do consumo tem menos tendência para acontecer. Mas Balboni nota um aumento das taxas de poupança em alguns países da zona euro, designadamente em França, pelo que o comportamento poderá estar a confirmar-se em certa medida.
Para reforçar a preocupação com a forma como a folga é aproveitada, deve sublinhar-se, claro, que a folga não dura para sempre. O HSBC nota que na última reunião do BCE Mario Draghi enfrentou grande resistência e acabou por reforçar os estímulos menos do que, eventualmente, desejava.
“Se surgir algum choque inesperado isso poderá significar que o programa Q.E. pode terminar mais cedo do que se prevê e, aí, as taxas de juro podem voltar a subir muito rapidamente”. Um exemplo de algo que poderia trazer esse choque inesperado é uma subida repentina dos preços do petróleo, que poderia fazer subir a inflação.
Nesta altura, não se prevê uma subida do preço do petróleo, sobretudo pela recente decisão da OPEP de não cortar a produção de crude, mas um choque de expectativas é sempre possível. O Société Générale, por exemplo, já admite que a OPEP não irá aguentar muito mais e acabará por cortar a produção para fazer subir o preço.
Outro risco é que um país – o HSBC dá o exemplo de Portugal – perca o rating que lhe permite manter o financiamento do BCE e o acesso ao programa de compras de dívida. “Se perder o rating, então a única forma de manter o acesso ao financiamento do BCE é submeter-se a um programa de resgate”, diz o HSBC, “o que traz consigo um custo político elevado”.
O melhor, portanto, na opinião do HSBC, é seguir o conselho deixado pelo Eurogrupo no passado dia 23 de novembro: são “necessárias políticas orçamentais prudentes para criar resiliência para quando as taxas de juro, inevitavelmente, subirem novamente“.
Fabio Balboni acrescenta que os países devem evitar cair numa “complacência excessiva nas políticas orçamentais, adiando os ajustamentos necessários para o futuro e contando com expectativas irrealistas de crescimento, ou de inflação, para os ajudar a estabilizar os rácios de dívida pública”.