Quando o visto para nómadas digitais e trabalhadores remotos foi criado, em outubro de 2022, Portugal estava no pico da popularidade. O site NomadList, que é visto como um barómetro das preferências dos nómadas digitais, colocava Lisboa em primeiro lugar nas preferências, a Madeira em 7.º e o Porto em 14.º. As estimativas (apenas indicativas, com base em contributos de utilizadores) do mesmo site apontavam para quase 15 mil chegadas naquele mês só na capital. Um ano e meio depois, a situação é muito diferente. Portugal baixou vários lugares e, em maio passado, as chegadas a Lisboa — que já não está sequer no top 10 — rondariam as 3 mil.
“Perdemos muita da atratividade que tínhamos“, analisa Gonçalo Hall, que criou uma associação nacional de nómadas digitais, a Digital Nomad Association (DNA), e ajudou a lançar a Digital Nomad Village, na Ponta do Sol, na Madeira.
O número de novos vistos destinados a este público parece refletir essa perda. Após a “explosão”, estão agora em mínimos. Segundo dados enviados a pedido do Observador pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, em maio foram atribuídos 18 vistos para nómadas digitais (o D8), muito aquém dos 292 que foram emitidos em maio do ano anterior. E ainda mais longe do pico de 381 atribuídos em março de 2023. Até à data, foram emitidos 4.472 vistos. O fim do regime dos residentes não habituais, o aumento dos preços da habitação em Portugal ou a degradação da “perceção” externa com a burocracia, refletida na situação na AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), são alguns dos motivos apontados por especialistas na área para que os vistos estejam em queda.
Segundo Gonçalo Hall, muitos estrangeiros pediam em simultâneo o regime dos residentes não habituais — que dava acesso a uma taxa de IRS mais favorável, durante dez anos, e era “uma grande fonte de atração” — e o visto criado em outubro de 2022 para nómadas digitais e trabalhadores remotos (o D8), que “trabalhavam muito bem em conjunto”. “Com o fim de um, estamos a ver que o outro sofreu e muito“, conclui.
O regime dos residentes não habituais (RNH) chegou ao fim este ano — há um regime transitório que permite a quem tinha pedidos iniciados em 2023 usufruir do regime — e foi substituído por um incentivo fiscal à investigação científica e inovação que, de acordo com o fiscalista Luís Leon, da Ilya, está a revelar-se uma dor de cabeça para os consultores fiscais, que não conseguem submeter os pedidos no Portal das Finanças porque o sistema não o permite.
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Segundo Luís Leon, o fim do regime dos RNH está a ter efeitos nos pedidos de todos os vistos, não só no dos nómadas digitais. Mas mesmo sem esse efeito, olhando para as emissões mensais, “nunca foi relevante” porque, considera, não conseguiu ser mais atrativo do que o D7 (pensado para quem tem rendimentos passivos, como rendas, reforma ou dividendos) ou do que os pedidos de autorização de residência com base em manifestação de interesse (com que o Governo acabou agora).
O D8, o visto para nómadas digitais e trabalhadores remotos, destina-se a estrangeiros que prestam atividade de forma remota em Portugal para fora do território nacional. É parecido com o D7, mais comum, com a diferença de que admite o rendimento ativo. Outra diferença é, por exemplo, que enquanto no D7 não há limite mínimo de rendimento auferido para poder beneficiar, no D8 há: quatro vezes o salário mínimo (3.280 euros este ano).
Como o Observador já aqui explicou, o visto para nómadas tem duas vias: uma de estada temporária, voltada para os nómadas digitais que permanecem menos de um ano no país e entram e saem com regularidade; e a via da residência destinada a trabalhadores remotos com rendimentos ativos estrangeiros que querem passar a maior parte do tempo no país e que é renovável.
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O D8 é geralmente escolhido por profissionais altamente qualificados que trabalham remotamente, incluindo na área informática (software developers), designers gráficos, escritores, consultores, entre outros, que “procuram uma via para obterem um passaporte europeu forte”, indica James Muscat, CEO da Moviinn, uma empresa que dá apoio a estrangeiros que queiram mudar-se para Portugal. Valorizam a flexibilidade e a qualidade de vida, “e procuram destinos que ofereçam uma boa infraestrutura digital, segurança, e um ambiente culturalmente rico”.
Os preços e a “guerra pelo talento”
Segundo Gonçalo Hall, a “maioria” dos nómadas que chegam a Portugal são europeus e muitos não chegam a pedir o visto (as regras do espaço Schengen permitem a qualquer cidadão da UE permanecer noutro Estado-membro como turista durante um máximo de três meses). Na Madeira, por exemplo, um ecossistema de nómadas digitais que conhece bem, a estadia média é de dois meses. Mas mesmo entre estes, que não pedem vistos, Hall nota uma queda da popularidade de Portugal — na Madeira, a chegada de nómadas digitais terá caído entre 15% e 20% este ano face ao ano passado.
As estimativas da NomadList para outras cidades portuguesas acompanham esta tendência. Para isso também contribuiu, acredita, os elevados preços do alojamento, sobretudo em Lisboa. Como tendem a ficar pouco tempo, estes trabalhadores escolhem opções de alojamento local temporárias, onde os preços “deixaram simplesmente de ser competitivos”. O problema é particularmente relevante em Lisboa, onde com o ‘boom’ do turismo “já não há época baixa”, uma altura do ano que os nómadas tendem tradicionalmente a aproveitar noutras cidades onde ela existe, pelos preços mais atrativos.
Luís Leon, fiscalista da Ilya, concorda que os preços podem ter afastado potenciais interessados: “Até 2021, do ponto de vista dos preços de habitação, Portugal era relativamente competitivo. Em Portugal, Lisboa, Cascais, Estoril deixaram de o ser. Não há só um fator, há um conjunto de fatores que fizeram com que Portugal se tornasse menos atrativo”, observa.
Não há dados oficiais sobre a evolução dos nómadas digitais em Portugal (precisamente porque muitos são “turistas de longa duração”). As estimativas em queda da NomadList ajudam a ter uma perceção e a evolução dos vistos emitidos para este público-alvo também. Na análise de Gonçalo Hall, “estamos a perder competitividade”, sobretudo numa altura em que outros países tentam atrair estes trabalhadores com regimes mais atrativos (está a acontecer, por exemplo, na Roménia, onde o custo de vida é mais baixo; ou em Espanha). “É a guerra pelo talento“, atira.
Luís Leon concorda que a concorrência espanhola é feroz para a atração de estrangeiros. O país vizinho tem um regime fiscal para este público “melhor do que o nosso que já está em vigor” e também se aplica aos nómadas digitais (por exemplo, o regime espanhol era exclusivo de trabalhadores por conta de outrem, mas abriu-se a profissionais liberais, o que o tornou mais atrativo; especificamente quanto ao visto para nómadas, o limite mínimo de salário exigido para poder beneficiar é menor do que em Portugal, ao rondar os 2.520 euros).
Ao Observador, James Muscat, CEO da Moviinn, também nota um “abrandamento generalizado de trabalhadores altamente qualificados a escolher Portugal como destino” e encontra na “concorrência” de outros países, que “oferecem vistos semelhantes e têm implementado estratégias agressivas de atração de nómadas digitais e trabalhadores remotos”, uma das explicações.
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Também Muscat admite que “possíveis mudanças nas condições económicas e políticas em Portugal” podem estar a ter impacto, incluindo o fim do regime dos RNH.
Como as dificuldades na AIMA “desencorajam” potenciais candidatos
Não são os únicos motivos. O presidente da Moviinn aponta “questões burocráticas ou dificuldades no processo de obtenção de vistos, como temos visto com todas as dificuldades na AIMA” que podem “desencorajar potenciais candidatos”. Há, ainda, um “fator significativo de informação incorreta e confusão sobre as novas condições de imigração em Portugal”, motivados por anúncios nem sempre claros sobre alterações à lei.
“Tivemos um ano turbulento onde as mudanças nos programas de Vistos Gold e regime fiscal RNH sofreram avanços e recuos durante 2023, e sabemos que isso criou muita confusão e afetou a decisão de vários nómadas digitais e trabalhadores remotos”, explica.
O visto em si não é hoje menos atrativo do que no pico de emissões de março de 2023 (as regras não mudaram no essencial). “O que mudou foram as condições fiscais e burocráticas do país, que se tornaram menos favoráveis, afetando a perceção geral sobre a atratividade de Portugal como destino”. Por isso, não acredita que os nómadas digitais ou trabalhadores remotos tenham migrado para outros tipos de visto em Portugal.
Quanto à NomadList, há um ano e meio, o Observador escrevia que Lisboa era número 1 na lista (a Madeira estava em 7.º; o Porto em 14.º; Portimão em 17.º; Lagos em 20.º; e os Açores em 42.º). O ranking muda com frequência (depende dos contributos de nómadas digitais e trata-se de estimativas), mas numa análise feita a 6 de junho pelo Observador, todas as cidades tinham caído: Lisboa está agora em 13.º; a Madeira em 81.º; o Porto em 21.º; Portimão em 28.º; Lagos em 40.º e os Açores em 118.º. A Costa da Caparica e a Ericeira estão em 30.º e 74.º, respetivamente. Já no pódio estão duas cidades tailandesas (Chiang Mai e Bangkok) e, a fechar, a cidade do México.
Gonçalo Hall defende que Portugal não se pode comparar com as cidades do Sudeste Asiático, que têm preços muito mais baixos, mas com outras cidades europeias, como Barcelona (está em 5.º) ou Valência (em 10.º), para onde têm ido muitos nómadas digitais que fogem dos preços elevados de Lisboa.
Embora esteja a atrair menos nómadas/trabalhadores remotos, Portugal mantém outros fatores que pesam no lado oposto da balança, entende James Muscat: o clima, a segurança, a cultura, tolerância religiosa, racial e de género, e um custo de vida “relativamente mais baixo”, pelo menos em comparação com alguns dos países de onde vêm estes trabalhadores (muitos do Canadá ou dos EUA). Em Portugal também “valorizam a comunidade acolhedora de expatriados e portugueses, que possuem um nível generalizado de inglês, facilitando a inserção dos estrangeiros”. “Embora os benefícios fiscais sejam agora praticamente inexistentes, Portugal continua a ser um destino atrativo por estas razões”, acredita James Muscat.