Dois anos depois de ter rebentado a polémica sobre os impostos devidos (ou não) da venda das barragens da EDP no rio Douro, a liquidação continua por fazer. E um grupo de deputados socialistas juntou-se às vozes dos que pedem liquidação de pelo menos um imposto, o IMI, aumentando a pressão sobre a Autoridade Tributária (AT) para rever a sua posição em relação à cobrança deste imposto sobre as barragens e voltar a um entendimento que já teve dentro do atual quadro jurídico.
No passado recente, e durante cerca de dois anos, o Fisco tentou cobrar imposto sobre as barragens da EDP na sequência da privatização total da empresa realizada em 2012. Mas as tentativas esbarraram em reclamações, impugnações e uma decisão arbitral que levaram os serviços da AT a reavaliar o enquadramento fiscal destes ativos no sentido contrário. E quem deu o contributo decisivo foi a Agência Portuguesa do Ambiente.
Um grupo de deputados socialistas entregou na quinta-feira passada um projeto de resolução com uma recomendação ao Governo: “Assegurar, a curto prazo, as condições necessárias à captação de receitas pelos Municípios, designadamente na região de Trás-os-Montes e Alto Douro, no quadro da exploração económica dos aproveitamentos hidroelétricos ali situados, para benefício das políticas sociais e económicas da região”.
PS quer acabar com barragens isentas de pagamento de IMI aos municípios
Os socialistas pretendem que a Autoridade Tributária reconsidere a posição de que não há lugar à cobrança de IMI (e IMT) sobre as barragens, com o argumento legal de serem propriedade pública e retome a liquidação daquele imposto. O deputado socialista Miguel Cabrita diz ao Observador que a iniciativa pretende ser um “impulso político ao Governo para intervir junto da AT para que esta mude o entendimento sobre a cobrança de IMI e IMT sobre as barragens.
Os deputados consideram que o atual enquadramento legal já permite a liquidação de imposto, daí o projeto de resolução no qual se procurou dar ao Governo uma margem lata para atuar. Questionado sobre a razão pela qual não avançam com uma proposta legislativa para clarificar na lei essa obrigação, como fez o Bloco de Esquerda, Miguel Cabrita justifica que uma alteração da lei só teria efeitos para a frente, para além de reforçar a tese de que o IMI não era devido no enquadramento jurídico atual. E isso colocaria em causa a possibilidade de cobrar retroativamente o imposto devido, argumenta (a lei permite que essa liquidação possa ocorrer até quatro anos antes).
Ainda que o cenário de uma intervenção legislativa não esteja afastado, para os socialistas, a mudança de interpretação da AT do quadro jurídico existente no sentido da cobrança de IMI seria a solução preferível. A outra alternativa é a dos tribunais, já seguida pela Câmara de Miranda do Douro, concelho onde ficam as barragens de Miranda e Picote, que processou o Fisco por se recusar a fazer o registo matricial dos imóveis, o primeiro passo para apurar o valor tributário e a incidência de IMI. Mas esse caminho é muito demorado.
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▲ Uma das barragens do Douro que passou da EDP para a Engie
Caso seja reconhecida pelo fisco, a cobrança de IMI vai incidir sobre imóveis de outras barragens, para além das que foram vendidas pela EDP, reconhece o deputado socialista. Ainda que essas implicações dependam de cada caso.
Desde 2020, ano em que a EDP fechou um negócio de 2,2 mil milhões de euros para vender à Engie seis barragens no Douro que o movimento Terras de Miranda luta para que a receita dos impostos resultante da operação seja canalizada para a região onde ficam as barragens. Só que, até agora, não houve receita. Nem IMI, nem IMT (imposto municipal sobre transações), nem Imposto de Selo. Neste caso, a isenção que resultou da forma como foi montada a transação é uma das matérias da inspeção que a AT abriu à EDP, mas as conclusões deste processo arrastam-se devido ao inquérito criminal cuja condução é da competência do próprio fisco.
Rui Rio aparece em Miranda do Douro, exige que EDP pague impostos e acusa Estado de ser “conivente”
A pretensão dos autarcas e representantes do movimento cívico Terras de Miranda tem recebido o apoio de várias forças políticas, como o PSD — ainda recentemente o ex-líder Rui Rio foi ao local pedir a cobrança de impostos — e o Bloco de Esquerda que, em 2021, chamaram ao Parlamento os responsáveis políticos, da AT e da EDP. A análise da documentação então enviada pelo Ministério das Finanças permite perceber como o entendimento dentro da Autoridade Tributária sobre a cobrança de IMI mudou, assim como as instruções dadas aos serviços sobre como tratar fiscalmente estes imóveis.
O parecer interno que defende a cobrança de IMI
O primeiro parecer da AT enviado ao Parlamento, de dezembro de 2015, distingue os terrenos que fazem parte do domínio público hídrico — e que estão à margem das regras de incidência do IMI — das construções e edificações neles implantadas (barragem e instalações afetas ao centro eletroprodutor) e que foram objeto do contrato de concessão às antigas empresas hidroelétricas, entretanto nacionalizadas e integradas na atual EDP.
Estas instalações “são dotadas de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontram implantadas”. O parecer — assinado por José Tavares Martinho, técnico dos serviços de IMI — conclui que existem também os restantes elementos integradores do conceito fiscal de prédio, pelo que, “de facto, a barragem e as restantes construções e edificações afetas ao centro eletroprodutor não estão incluídas no domínio público do Estado, e podem ser objeto de direitos privados e de relações jurídicas, pelo que fazem parte do património das concessionárias e, como tal, são detentoras de valor económico. (…) E preenchem, assim, o conceito de prédio para efeitos de IMI, pelo que devem ser avaliados e inscritos na matriz”.
Para sustentar esta posição, o técnico da AT invoca um parecer do conselho consultivo da PGR de maio de 2006 no qual é referido que as atuais concessionárias mantêm os direitos e obrigações concedidos antes da nacionalização da EDP e são titulares dos bens integrados em cada um dos respetivos aproveitamentos hidroelétricos. Estes aproveitamentos são compostos por bens do domínio público que não estão sujeitos a IMI, mas também por “bens do domínio privado das empresas concessionárias (as construções e edificações referentes às barragens) que, reunindo os elementos constitutivos do conceito de prédio para efeitos de IMI, são prédios, e como tal, devem ser avaliados e inscritos na matriz”, argumenta.
Os defensores do pagamento de IMI têm invocado que as barragens e construções associadas fazem parte dos ativos das empresas que as exploram em regime de concessão.
O parecer também analisa o impacto da lei da Água de 2005, concluindo que os títulos de utilização privativa de recursos hídricos do domínio público que foram comunicados à Administração Regional Hidrográfica no prazo de um ano mantêm-se “igualmente na titularidade das empresas concessionárias e, por isso, são prédios para efeitos de IMI e devem, consequentemente, ser avaliados e inscritos na matriz”.
Perante este parecer, o chefe de divisão Ricardo Jorge Torres concorda que os referidos ativos possuem uma “matriz privatística inegável” (…) devendo ser objeto de inscrição matricial e subsequente avaliação nos termos do CIMI”. Mas diz também que era uma informação “abstrata” que devia ser aprofundada pelo conhecimento de cada caso.
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▲ A diretora-geral de Impostos, Helena Borges, já estava no cargo quando o fisco mudou de posição sobre o IMI cobrado às barragens
HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR
Apesar de referir uma diversidade de situações que dificulta a padronização, a subdiretora-geral de Impostos, Lurdes da Silva Ferreira, concorda com as conclusões do técnico sobre a incidência do imposto. E defende a criação de linhas orientadoras para o enquadramento das barragens em sede de IMI, que permita considerar as diferentes realidades de cada caso. Num despacho de 10 de dezembro de 2015, a diretora-geral Helena Borges dá indicação para divulgar o parecer junto dos serviços para “uniformização de procedimentos em função de análise casuística”.
Helena Borges ainda é diretora-geral dos Impostos e já foi ao Parlamento dar explicações sobre as implicações fiscais do negócio entre a EDP e a Engie, mas o tema central não foi o imposto sobre imóveis (IMI).
Quem levou o fisco a mudar de opinião
A fita do tempo que documenta a posição do Fisco sobre a cobrança de IMI dá um salto até maio de 2016 para um parecer da direção de serviços de consultoria jurídica e contencioso que assinala a viragem do entendimento da AT. O jurista António Lima Guerreiro invoca as impugnações sistemáticas que as empresas concessionárias estão a fazer das tentativas de inscrição matricial e liquidação de IMI junto de tribunais tributários (e não arbitrais como escreveu por lapso o Observador e agora corrige) e do Centro de Arbitragem Administrativa. E defende que é preciso “avaliar da legalidade da posição que tem vindo a ser adotada pela AT”.
O jurista lembra que, até à orientação administrativa que levou à AT a avançar com liquidações, prevalecia um entendimento de 1991, segundo o qual os bens que integravam a Rede Elétrica Nacional (então parte da EDP) são do domínio público, da titularidade do Estado e dos municípios. Logo, não têm valor de mercado, não são prédios, não estão sujeitos a imposto (à data contribuição autárquica). Posição que, argumenta, não foi revogada e é “naturalmente incompatível com a tributação em IMI das barragens”.
Invoca também a Constituição e um decreto-lei de 1980 (assinado por Cavaco Silva, então ministro das Finanças da AD) que “expressamente declara serem do domínio público as barragens de utilidade pública”, argumentando que a titularidade do direito de utilização privativa (que é da concessionária) não implica a “desafetação do domínio público dos bens objetos desses direitos de utilização” o que, por seu turno, dependeria do estatuto de utilidade pública das barragens. Para o assessor jurídico, esta não é uma competência da AT, mas da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), “a entidade que se pode pronunciar sobre o estatuto dominial das barragens de utilidade pública”.
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▲ Nuno Lacasta também foi chamado ao parlamento para explicar como Governo acompanhou e autorizou venda das barragens
ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
Acaba por ser APA — cujo presidente Nuno Lacasta também foi ouvido no Parlamento sobre a transação das barragens, mas não para falar de impostos — a escrever o ponto final nas dúvidas jurídicas. Declara que as barragens de utilidade pública (como são as hidroelétricas) integram o domínio público do Estado, validando o parecer da direção de consultoria jurídica e contencioso da AT. Esta Agência Portuguesa do Ambiente apoia o seu parecer no decreto de 1980 e na lei da Água de 2019.
Na sequência desta colaboração com a APA, que transmitiu a sua posição a 4 de novembro de 2016, Serafim Pereira, diretor de serviços da AT, considera “estarem agora reunidas as condições para evoluir quanto ao tratamento a dar pela AT, em sede de IMI, à categoria de bens em causa”. Nesse sentido, propõe que sejam sustidos (suspensos) quaisquer procedimentos tributários em curso, por exemplo, de inspeção, de avaliação, de tributação ou execução, relativo a bens a que seja aplicável o entendimento jurídico ora manifestado pela APA”.
A diretora-geral de Impostos delega na subdiretora-geral a definição dos procedimentos e orientações a transmitir aos serviços. E cabe a Lurdes da Silva Ferreira elaborar em maio de 2017 as regras em vigor pela qual as barragens e suas instalações estão integradas no domínio público desde que tenham utilidade pública declarada, o que implica desativar a sua inscrição matricial e tributação em sede de IMI. Esta desativação produziu efeitos sobre quatro anos para assegurar a revisão das liquidações de IMI que tenham sido feitas até então, bem como as situações de contencioso. Para além da anulação do registo, o VPT (valor patrimonial tributário) deve passar a zero.
Parecer pedido à APA (pelo próprio fisco) ajudou a EDP contra a AT
Em paralelo com a mudança de opinião do Fisco, sustentada pela Agência Portuguesa do Ambiente, há uma decisão arbitral que se pronunciou a favor da EDP. Este processo (que não faz parte da informação enviada ao Parlamento) refere-se à contestação da liquidação do IMI na barragem da Pracana no distrito de Santarém. O tribunal arbitral foi constituído depois de a AT ter recusado a reclamação graciosa da EDP relativa à cobrança de IMI nos anos de 2012 e 2013 no valor de 54,3 mil euros. E foi presidido por Ana Pedrosa-Augusto, jurista do escritório de Rogério Alves (RA Associados) que ficou conhecida como a “advogada de Madonna”. Entre os argumentos invocados, a EDP lembra que nunca antes dessa data tinha ocorrido a liquidação do imposto.
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▲ A venda da posição do Estado na EDP aos chineses da China Three Gorges, concretizada em 2012, foi o pretexto para a mudança da posição sobre o IMI
AFP/Getty Images
Para justificar esta mudança de posição, a AT alega que a isenção deixou de vigorar pelo facto de a requerente ter deixado de ser, com efeitos a 2012, uma entidade pública, “não podendo mais beneficiar da isenção prevista no código do IMI para estes sujeitos”. Esta data coincide com a privatização total do capital da EDP concretizada nos primeiros anos da troika que, no entender da AT, alterou a “natureza jurídica de entidade pública, uma vez que implicou a sua desafetação, por cessação da utilidade pública” da barragem. Até essa data, a EDP tinha a maioria do capital privado, mas o Estado era o maior acionista e tinha uma golden share (direitos especiais) que lhe dava a última palavra em decisões importantes.
A AT invoca ainda a Constituição (artigo 84, n.º 1) para fundamentar que as “barragens de utilidade pública não fazem parte dos bens que constitucionalmente integram o domínio público”.
A EDP defende que as barragens por serem de utilidade pública integram o domínio público do Estado, como está expresso no contrato de concessão, e como tal “não podem considerar-se abrangidos pela definição de prédio constante do artigo 2.º do Código do IMI”.
Na argumentação da elétrica surge também a referência à APA (Agência Portuguesa do Ambiente) como a entidade que a partir de 2012 fica com a competência de classificar as barragens como domínio público. E a 31 de outubro de 2016, a EDP junta ao processo o “documento emitido — a pedido da Autoridade Tributária — pela Agência Portuguesa do Ambiente, atestando que a barragem em questão tem utilidade pública”. Pelas datas indicadas na documentação remetida ao Parlamento em 2021 pelo Ministério das Finanças, esta posição da APA chegou ao gabinete da diretora-geral da AT uns dias depois, a 4 de novembro de 2016.
Na decisão final a presidente do júri refere que o “aproveitamento hidroelétrico tem utilidade pública, atestada pela APA em 25 de outubro de 2016”. Sublinha que não houve alteração relevante no regime aplicável e volta ao decreto de Cavaco Silva de 1980, segundo o qual as barragens de utilidade pública devem constar do inventário do património do Estado. Para, entre outros argumentos, concluir: a barragem em questão é um bem que integra o domínio público do Estado, sendo o facto de se encontrar concessionada a sua exploração irrelevante para o retirar do tal domínio público. E como bens de domínio público, as barragens não são suscetíveis de integrar a definição de prédio do código do IMI, “não podendo ser, consequentemente incluídos no respetivo âmbito de tributação”.
O acórdão diz aliás que a AT não contesta a interpretação das normas nesta decisão na medida em que estava na “posse de todos os elementos e informação necessários para que pudesse conhecer, ab initio, da natureza do domínio público da barragem em que estão e da sua consequente não sujeição ao IMI”.
O Observador questionou a EDP sobre mais impugnações que apresentou a liquidações de IMI por parte da AT, mas não obteve resposta. Entretanto, e já depois da publicação deste artigo, o Observador confirmou que apenas uma impugnação de IMI, a da Pracana, chegou a tribunal arbitral.
Texto atualizado às 17h20 de quinta-feira, 2 de fevereiro, para clarificar que só houve uma decisão arbitral contra a cobrança de IMI sobre barragens.