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Para mais de uma centena de trabalhadores da tecnológica Talkdesk, o que prometia ser mais uma segunda-feira de trabalho normal depressa se transformou num dia que podia ser um dos últimos em que estariam juntos à secretária. Em conversas individuais ou divididas por pequenos grupos, ia surgindo a notícia: a empresa estava a convidá-los a sair, deixando em cima da mesa uma proposta para uma saída através de mútuo acordo.
“Foi tudo muito rápido, muito repentino”, conta um dos trabalhadores afetados. No meio do turbilhão, sucederam-se as reuniões, apurou o Observador a partir da mão cheia de testemunhos ouvidos. Num primeiro momento, era marcada uma conversa com o respetivo manager (líder da equipa), que parecia seguir um guião, relata outro funcionário. Depois, a negociação passava para os recursos humanos. Mais tarde, chegava ao email a proposta para o acordo. Quem o aceitar, fica sem acesso a subsídio de desemprego. Quem o rejeitar deverá ver a questão seguir para o departamento legal da tecnológica, segundo o que foi dito a alguns dos trabalhadores. O que é que isso significa? “Não sabemos”, lamenta uma das pessoas, relatando dias de incerteza e ansiedade entre os trabalhadores.
A proposta de saída terá sido fundamentada como resultado de uma decisão estratégica, afetando as equipas de produto e engenharia, mais especificamente postos de trabalho ligados à área de R&D (investigação e desenvolvimento). Muitos foram apanhados de surpresa, numa decisão que atingirá maioritariamente funcionários portugueses e, em menor escala, também na China. A proposta veio acompanhada de um prazo e determina esta sexta-feira, 29 de setembro, como a data final para comunicar uma decisão à empresa: o sim ou não ao acordo.
Neste unicórnio português, que em 2018 chegou à avaliação superior a mil milhões de dólares que a colocou entre a elite das startups, desenvolve-se tecnologia para centros de contacto. Desde a pandemia que a atividade passou a ser feita totalmente à distância, com a companhia a fornecer meios de trabalho e a assegurar a comunicação através de plataformas digitais, do Zoom ao Slack. Na terça-feira, enquanto ainda digeriam a notícia, surgiu o convite para uma reunião “all hands”, expressão usada na companhia para uma videochamada entre executivos e trabalhadores.
A chamada no Zoom terá sido liderada pela diretora de produto, Charanya Kannan, nomeada em março de 2020 para estrear um cargo que até então não existia na estrutura da empresa. Além desta responsável, também terão assistido outros vice-presidentes da Talkdesk. Tiago Paiva, o CEO e fundador da empresa, não terá estado presente no “all hands”.
Na chamada, assistiram à versão oral da informação que constava num e-mail mais detalhado sobre as mudanças, a que o Observador teve acesso. Nas duas ocasiões, a executiva terá vincado a necessidade de alinhar a dimensão da equipa com o negócio em evolução, com o objetivo de garantir uma operação eficiente. De acordo com um dos funcionários, havia margem para perguntas, mas depressa perceberam que as questões estariam a ser filtradas.
Ao longo da semana, os trabalhadores que receberam a proposta têm-se mantido em contacto através de um grupo no WhatsApp, que conta com mais de uma centena de pessoas. O sentimento geral é de nervosismo perante o que se segue e há quem já tenha recorrido à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Contactada, esta entidade explica que “está obrigada a sigilo profissional e à preservação da confidencialidade da existência de qualquer queixa ou denúncia que possam ser suscetíveis de revelar a origem das mesmas”.
Quem tem a proposta em mãos, lamenta a falta de tempo para analisar devidamente o texto e pedir opiniões a advogados. As tentativas de obter mais informação junto do departamento de recursos humanos da Talkdesk também estarão a ser desafiantes, argumentam os trabalhadores, que mencionam tempos de resposta demorados ou mesmo a ausência de qualquer resposta.
Rapidamente surgiram publicações online sobre os acontecimentos na Talkdesk, da rede social LinkedIn até fóruns do setor. Têm origem tanto em funcionários afetados, à procura de novas oportunidades de trabalho, como até de pessoas de outras empresas do setor tecnológico, que reconhecem a existência de talento que poderá voltar a estar disponível no mercado.
As mudanças num negócio que “se mantém forte”
Até agora, a única declaração pública feita pela Talkdesk sobre este assunto mencionou uma “redução limitada do número total de trabalhadores em poucas áreas, que não vai impactar negativamente” a velocidade de inovação. Assinada por Tiago Paiva, fundador e CEO da Talkdesk, na nota foi ainda deixada a garantia de que a empresa quer “continuar a investir e a contratar em áreas estratégicas”. “O nosso negócio continua forte e temos uma tremenda oportunidade de mercado à nossa frente”, assegurou o CEO na declaração enviada ao Observador.
Um ano depois, “unicórnio” Talkdesk volta aos despedimentos. Fundador fala em “reduções limitadas”
As palavras do diretor-geral e fundador, que não mencionam a percentagem de trabalhadores afetados, são um eco da comunicação interna, assinada pela diretora de produto, vista pelo Observador. “Fizemos mudanças à dimensão e composição do negócio de R&D [investigação e desenvolvimento]”, uma decisão que “não foi tomada de ânimo leve”, assegurou Charanya Kannan.
A diretora de produto explicou que, “para promover a inovação”, a companhia “tem alocado de forma consistente uma porção significativa da força de trabalho a R&D”, que “cresceu rapidamente na organização”. No entanto, “nos últimos anos”, notou, essa área cresceu de “forma desproporcional” em relação às restantes equipas, motivando um “ajuste do número de [trabalhadores] em R&D”. Desta forma, foi feita a garantia de um “investimento equilibrado em R&D, vendas e marketing e outros departamentos”.
Também foi explicada uma mudança na estratégia da localização de R&D. A procura de clientes empresariais no mercado da América do Norte em “áreas críticas” como saúde, serviços financeiros ou área governamental tem levado a contratações de talento local. Foi assegurada a manutenção do compromisso com “as equipas em todas as localizações – EUA, Portugal e China”, mas mencionada a necessidade de “relocalizar o investimento em R&D nestas localizações para acomodar o futuro crescimento na América do Norte”. Ao mesmo tempo, também foi explicado um ajuste “no rácio da estrutura de gestão para programadores para garantir um equilíbrio saudável” – o que produzirá efeitos com a saída de “vários gestores e líderes” de equipas”.
Um acordo sem direito a subsídio de desemprego (e por que a empresa poderá estar a evitar um despedimento coletivo)
O acordo de “revogação de contrato de trabalho” com que os trabalhadores foram surpreendidos na segunda-feira, e que teriam de assinar até esta sexta, segundo um exemplar a que o Observador teve acesso, não elenca os motivos que levam a empresa a querer cessar contrato. Apesar de a justificação da “extinção do posto de trabalho” ter sido referida nas conversas entre empresa e trabalhadores, essa expressão não consta no documento apresentado.
A Talkdesk vale mil milhões de euros. É o terceiro “unicórnio” com ADN português
Em causa está um acordo de revogação, que está previsto no Código do Trabalho (artigo 349.º). É um acordo entre as partes, não um despedimento, e é uma via comum quando as empresas querem dispensar um número significativo de trabalhadores sem os prazos, as implicações jurídicas e o peso que poderia trazer um despedimento coletivo — que, por definição, é unilateral e não pressupõe a existência de um entendimento entre trabalhador e empresa.
Aos trabalhadores consultados pelo Observador, a empresa propôs o pagamento de créditos obrigatórios por lei, como um salário proporcional aos dias de trabalho do mês de outubro, o montante das férias não gozadas, assim como os subsídios de refeição, férias e Natal (também proporcionais). Não há referência aos montantes das horas de formação não recebidas, também eles obrigatórios por lei. Em vários casos, sabe o Observador, a formação foi dada durante a vigência do contrato, pelo que a questão não se colocará. Mas o tema está a ser levantado por outros trabalhadores que dizem não ter recebido formação expressa.
Além destas rubricas obrigatórias, a Talkdesk está a propor uma compensação equivalente a um mês de salário por cada ano de antiguidade, acima do que a lei prevê. E o que prevê a lei? No entendimento do especialista em direito laboral Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha Ecija, nestas situações, um trabalhador com contrato de trabalho sem termo (como são os casos relatados ao Observador) deveria receber, no mínimo, o equivalente a 14 dias de salário por cada ano de antiguidade. Já Luís Gonçalves da Silva, da Abreu Advogados, entende que como se trata de uma tentativa de acordo, e não de um despedimento, a empresa não estará obrigada a esta compensação.
Independentemente disso, certo é que, no tipo de rescisão proposta, há uma “enorme desvantagem para os trabalhadores”, diz Quitéria Faria: não há lugar a subsídio de desemprego, uma vez que, como o acordo não está fundamentado, por escrito, em factos objetivos de reestruturação ou reorganização, o desemprego é considerado voluntário. E isso está a pesar na escolha que os trabalhadores farão esta sexta-feira, sabe o Observador.
Para que os trabalhadores pudessem ter direito ao subsídio de desemprego, a Talkdesk teria, essencialmente, duas outras alternativas. Uma delas seria um despedimento coletivo, uma via pouco apetecível para as empresas tendo em conta os prazos e a “carga social” que carrega. Segundo Pedro da Quitéria Faria, há avisos prévios de, no mínimo 45 dias, podendo ser superiores para funcionários com maior antiguidade. Além de que os trabalhadores podem não concordar com os termos e impugnar o despedimento coletivo, tendo seis meses para o fazer. O processo em tribunal pode demorar anos e, no limite, dar razão aos trabalhadores, obrigando a empresa a reintegrá-los.
“Um acordo fecha, em tese, a porta à judicialização da apreciação dos fundamentos do despedimento coletivo. Essa é a grande vantagem dos acordos”, afirma Quitéria Faria. Luís Gonçalves da Silva acrescenta que o despedimento coletivo tem uma “carga social e económica grande, é muito associado às empresas em dificuldades financeiras e tem efeitos na imagem, no mercado”.
Outra opção que, em teoria, a Talkdesk teria é a que advém do decreto-lei 220/2006, que também pressupõe um acordo entre as partes, mas já dará direito a subsídio de desemprego. “Trata-se de um acordo de revogação que tem como fundamentos aqueles que seriam aptos a um despedimento coletivo. Mas não é um despedimento coletivo, porque há acordo”, resume Pedro da Quitéria Faria.
Segundo o advogado, este tipo de via acontece em cenários de reestruturação das empresas por questões financeiras ou económicas, motivos de reorganização empresarial ou de readaptação do setor produtivo, exemplifica. Daí que o desemprego seja considerado involuntário. Mas tem uma desvantagem importante que pode ajudar a explicar o motivo de não ter sido uma escolha para a Talkdesk: tem quotas, que dependem do número de cessações de contratos dos últimos três anos. E como a empresa já dispensou trabalhadores este ano e no anterior, pode já ter ultrapassado a quota de funcionários abrangidos.
Mesmo ultrapassando as quotas, o empregador pode firmar este tipo de acordo, mas ficará obrigado pela Segurança Social a pagar os subsídios de desemprego dos trabalhadores que excedem a quota, explica Pedro da Quitéria Faria. Luís Gonçalves da Silva acrescenta que essa obrigação acontece se o trabalhador tiver aceitado o acordo, porque foi informado pela empresa de que teria direito ao subsídio mas se tenha verificado que, afinal, a empresa já tinha excedido as quotas.
Com quotas ultrapassadas, esta opção poderia ter, portanto, custos bem mais avultados do que a solução que está a ser proposta (uma vez que em causa estarão mais de uma centena de pessoas). A dúvida que se coloca é quantos trabalhadores aceitarão as condições oferecidas e quantos farão finca pé. Têm até sexta-feira para o decidir.
Talkdesk cortou acessos. É legal?
Terminada a videochamada, na reunião “all hands” de terça-feira, os funcionários a quem foi feita a proposta de saída depararam-se com a impossibilidade de trabalhar, já que os acessos a várias ferramentas internas tinham desaparecido. “Não temos acesso a nada, só ao e-mail”, é relatado. Uma das pessoas afetadas lembra que, no contexto de teletrabalho, o corte é semelhante a “estar num quartinho escuro” se o ambiente de trabalho fosse o escritório físico. “Torna impossível fazer seja o que for.”
Numa tentativa de poderem continuar a trabalhar, uma vez que se mantém o vínculo com a Talkdesk até chegarem a uma decisão sobre a proposta, vários trabalhadores têm pedido aos serviços de tecnologias de informação para que os acessos às ferramentas sejam repostos. Até agora, sem sucesso. Um dos relatos refere que há quem tenha enviado também o pedido aos recursos humanos, mas também sem êxito. Em alguns casos, estará a ser dito aos trabalhadores que estão libertos de responsabilidades, dispensando a necessidade de apresentar trabalho.
Mas esta estratégia levanta dúvidas de legalidade aos especialistas em direito laboral ouvidos pelo Observador que remetem, ambos, para o chamado “dever de ocupação efetiva”, um dever do empregador “com consagração constitucional” que o obriga a dar oportunidade ao trabalhador de exercer a atividade para a qual foi contratado e que é uma manifestação do “direito ao trabalho”. Até porque o contrato de trabalho continua em vigor.
“Admito que seja permitido aos trabalhadores durante quatro ou cinco dias terem um prazo para refletirem sobre o acordo. Coisa diferente é cortarem o acesso imediato que lhes permite laborar. Materialmente, o contrato está em vigor. Não há nenhuma razão para que seja cortado o acesso ao trabalhador quando o contrato de trabalho está plenamente em vigor e o acordo não foi assinado”, considera Pedro da Quitéria Faria. Isto, mesmo que o empregador informe os trabalhadores de que, “por liberalidade da empresa”, estão dispensados de trabalhar. “O trabalhador pode dizer que não quer essa liberalidade”, afirma. Foi isso que fizeram os funcionários que pediram o restabelecimento do acesso às ferramentas de trabalho.
Nestas situações, o especialista sugere que os trabalhadores exijam à empresa que coloque por escrito essa dispensa de trabalho e que também por escrito esteja claro que não há lugar à perda de qualquer direito ou regalia se não trabalharem durante esse período. Desta forma estarão mais protegidos caso o empregador alegue despedimento por justa causa (por terem parado de trabalhar antes do fim do contrato).
A terceira ronda de saídas em pouco mais de um ano
No espaço de pouco mais de um ano, os trabalhadores da Talkdesk estão a passar pela terceira onda de saídas na empresa. É um cenário que contrasta fortemente com a “bonança” da pandemia.
Com o mundo fechado e com os centros de contacto mais pressionados e à procura de soluções tecnológicas para aumentar a produtividade, a empresa contratou de forma acelerada. Encerrou 2020 com 1.400 funcionários e, em março de 2021, anunciou a disponibilidade para contratar 500 pessoas até 2022, a nível global e num regime totalmente remoto. A Talkdesk diz no seu site que tem 2 mil funcionários distribuídos por 19 países.
Quando 2022 chegou, trouxe ventos de mudança para o setor da tecnologia. O crescimento acelerado vivido durante a pandemia acalmou e até as gigantes Google, Amazon, Microsoft ou Meta cortaram nos trabalhadores. O unicórnio Talkdesk foi notícia pela saída de trabalhadores em agosto de 2022, justificando os ajustes com o “contexto económico” e a necessidade de alinhar os recursos com “as necessidades”.
“As mudanças na equipa em Portugal e noutras regiões foram realizadas com o objetivo de melhor alinhar recursos com as prioridades da empresa e com o contexto económico, o que inclui reduções baseadas no desempenho e no nível de contribuição”, indicou uma declaração oficial da empresa.
“As saídas representam um baixo impacto de apenas um dígito percentual no número de colaboradores a nível mundial – continuamos com mais de mil profissionais baseados em Portugal e estamos profundamente orgulhosos da sua contribuição. O negócio da Talkdesk continua forte, com o crescimento da procura no setor”, era ainda possível ler.
A segunda ronda de saídas foi feita já no início deste ano, avançou o UC Today, uma informação que entretanto também foi relatada pelos trabalhadores ouvidos pelo Observador esta semana, que partilham que terá afetado as áreas de marketing e vendas. Nessa altura, não foi divulgado com quantas pessoas terá ficado a Talkdesk – um número que deverá voltar a encolher com as propostas apresentadas esta semana.
Como a Talkdesk se transformou num unicórnio em menos de dez anos
Nascida em 2011 pelas mãos de Tiago Paiva e Cristina Fonseca, que foram colegas do curso de Engenharia de Telecomunicações e Informática, a Talkdesk alcançou o estatuto de unicórnio em menos de uma década. Foi a terceira empresa com origem em Portugal a chegar a uma avaliação superior a mil milhões de dólares, depois da Farfetch e da OutSystems. Em 2018, com uma ronda de investimento de 100 milhões de dólares, a companhia chegou a uma avaliação de 1,2 mil milhões de dólares.
Tudo começou como uma ideia vencedora num hackathon, uma maratona de resolução de problemas tecnológicos. A promessa de montar um centro de contacto em “cinco minutos” começou a atrair a atenção internacional. Graças ao concurso, tiveram entrada direta para a incubadora 500 Startups, uma das mais relevantes em Silicon Valley. A tecnologia da Talkdesk pode ter selo português, mas a sede está em São Francisco, nos EUA.
Cinco anos depois do nascimento da Talkdesk, a dupla de empreendedores foi incluída na lista “30 Under 30”, da revista Forbes. Algum tempo depois, Cristina Fonseca afastou-se das operações diárias da empresa.
No ano em que a Talkdesk chegou a unicórnio, em entrevista ao Observador, Marco Costa, então diretor-geral da Talkdesk para Portugal, Europa, Médio Oriente e África, admitiu que um IPO [oferta pública inicial] poderia ser “uma boa opção” para a companhia, mas sublinhou a necessidade “de ter outras”. “Não ter opções é que é mau.”
Em julho de 2020, a Bloomberg avançou que a empresa teria levantado um ronda de investimento série C no valor de 143 milhões de dólares, o que elevaria a avaliação para 3 mil milhões de dólares. Um ano mais tarde, uma nova ronda de financiamento de 230 milhões de dólares, aí anunciada pela própria Talkdesk, teria contribuído para uma avaliação ainda mais redonda, de 10 mil milhões de dólares. A partir do momento em que as rondas de financiamento começaram a acalmar, pouco se soube sobre a atual avaliação da companhia que segue, assim, para a terceira ronda de saídas em 14 meses.