Em dia de Conselho Europeu, os analistas de mercados financeiros estavam preparados para “uma noite longa e inconclusiva“. Enganaram-se na duração do encontro, mas não no resto. O encontro por video-conferência dos chefes de Estado e de Governo da UE não foi longo – demorou cerca de quatro horas – mas o que foi decidido deixa muitas dúvidas. E, sobretudo, deixa um sabor agridoce.
Foi aprovado um “Fundo de Recuperação” para relançar a economia dos Estados-membros mais afetados pela crise da Covid-19, mas não ficou definido o montante deste fundo. Ficou confirmado (como já tinha sido noticiado) que o Fundo será financiado através da emissão de dívida da União Europeia (algo considerado impensável antes desta crise), mas não houve consenso sobre a forma como as verbas deste fundo serão distribuídas: se através de transferências comunitárias, de empréstimos ou uma mistura dos dois. E na parte dos empréstimos, com que juros, com que maturidades?
Fundo de Recuperação “necessário e urgente”. Mas quanto?
Os líderes europeus fizeram questões de celebrar o que ficou acordado, mais do que lamentar o que ficou por decidir. “Ficou acordado trabalhar num fundo específico de recuperação destinado à crise da Covid-19. É necessário e urgente, e tem de ser suficientemente grande para enfrentar esta crise. Deve estar focado nos setores e geografias da Europa mais afetadas”, disse o presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel, no final do encontro.
E também houve acordo para que este fundo seja inserido no Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da UE para o período 2021-2027. Já se tinha dito que o fundo poderia ascender a 1,5 biliões de euros. O primeiro-ministro português, António Costa, deu conta esta quinta-feira que o montante não estava definido, mas que deveria ficar entre 1,1 biliões e 1,5 biliões de euros. É esta ordem de valor que aponta para o quadro financeiro plurianual, sublinhou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. “Só há um instrumento [na UE] que possa albergar esse tamanho. Todos confiam nele, todos o conhecemos, foi desenhado para o investimento, a coesão e a convergência”, disse.
E como é que a Comissão vai fazer para acomodar essa despesa adicional? “O Orçamento da UE para os próximos sete anos deve adaptar-se às novas circunstâncias. É preciso aumentar a potência de fogo e para isso vamos propor aumentar a margem fiscal, o espaço entre o atual teto de despesa e o teto dos recursos próprios”, disse Von der Leyen. A ideia é aumentar o teto de despesa do Orçamento da UE de 1,2% do Rendimento Nacional Bruto europeu (que, aliás, nunca foi alcançado) para 1,3% e acrescentar-lhe outras seis décimas durante a fase mais dura da crise, prevista para o período entre 2020 e 2022. Assim se chegaria aos 1,9% do Rendimento Nacional Bruto europeu, ou seja cerca de 1,5 milhões de milhões (biliões) de euros.
A UE emitiria 323 mil milhões de euros em dívida, que seriam depois alavancados até chegar pelo menos aos 1,5 biliões, cinco vezes a quantidade inicial.
Em antecipação ao Conselho Europeu desta quinta-feira, o primeiro-ministro, António Costa, fez saber que o seu “plano A” de resposta europeia à crise passaria por uma ‘bazuca’ de “magnitude muito significativa”. “Para termos uma bazuca com esta dimensão é necessário que a UE mobilize recursos, que não são de forma imediata mobilizáveis pelos diferentes estados-membros. Por isso, a melhor forma de fazer é proceder à emissão de dívida e a melhor forma de proceder à emissão de dívida é por parte da UE”, comentou o primeiro-ministro, repetindo que uma subvenção não-reembolsável, a fundo perdido, seria a forma mais eficaz.
Plano “A” de Costa para resposta europeia à crise é “bazuca” de cerca de 1,5 biliões de euros
Mas, para isso, continuam a faltar os consensos a nível europeu.
Líderes divididos. Quanto virá emprestado e quanto virá sem ter de devolver?
Quanto à forma como os Estados-membros poderão aceder aos fundos, está ainda rodeada de incerteza. Parece claro que será uma “mistura de empréstimos e subvenções”, mas a fórmula (quanto de um e quanto de outro) é uma incógnita.
“As opiniões [entre os líderes europeus] são variadas. Há prós e contras para todas as possibilidades, todos conhecemos os argumentos” de parte a parte, disse Von der Leyen. Os países do Norte da Europa (Alemanha, Finlândia, Holanda e Áustria) querem que a maior fatia seja em empréstimos (que teriam de ser devolvidos, ainda que em prazos longos). Já os países do Sul, e a França, querem mais transferências comunitárias e menos empréstimos.
Porquê? “Apoios a que se emita mais dívida, mesmo que a custos controlados, não altera o facto de que alguns dos países com maiores necessidades já tinham, à entrada para esta crise, rácios de endividamento elevados, que apenas se tornarão ainda maiores se os países receberem mais empréstimos europeus”, escreve uma equipa de analistas liderada por Richard McGuire, do Rabobank.
Os analistas dizem que “ainda que os preços e as condições desses empréstimos sejam, provavelmente, mais atrativos do que Itália ou outros países da ‘periferia’ conseguem individualmente obter nos mercados, mantém-se uma situação em que a resposta dos países acabará por agravar o fardo de dívida, a longo prazo, dos países mais afetados pelo vírus”, podendo-se voltar a gerar receios sobre a sustentabilidade da dívida, potencialmente levando a um círculo vicioso de cortes de rating e custos de financiamento ainda mais elevados.
Porque é que as agências de “rating” estão tão caladas? (E até quando vão continuar assim?)
Ursula von der Leyen mostrou-se compreensiva quanto à Europa a duas velocidades. “Já sabemos que o PIB vai cair em todo os lados, mais em alguns lugares que noutros e haverá mais danos no setor do Turismo do que noutros setores. Também o impacto fiscal será diferente, uma vez que alguns Estados podem proporcionar mais apoio dos seus orçamentos do que outros. Até ao momento já foram distribuídos 1,8 biliões de euros em ajudas de Estado [nos Estados-membros], mas com muitas desigualdades”, recordou a presidente da Comissão.
Também terá ficado mais ou menos definido que os critérios de distribuição do dinheiro do Fundo de Recuperação assentarão em bases conhecidas: PIB, população ou impacto da crise, desemprego. Se os fundos são destinados a investimento ou a outras áreas. Critérios específicos para uma componente industrial, uma ponderação para fatores ecológicos ou digitais estarão ainda abertos a discussão.
Os analistas do Berenberg Bank, em Londres, receberam o acordo desta quinta-feira com algum ceticismo. “Com sorte, isto pode ser bom o suficiente para evitar um aumento, potencialmente perigoso, dos spreads nos mercados da dívida. Mas foi encorajador ver o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, a dar um spin positivo aos resultados do encontro”, indicaram Holger Schmieding e Florian Hense, economistas do Berenberg, numa nota divulgada após a reunião.
Ao início da noite o jornal La Stampa indicava que a expressão “necessária e urgente” na declaração de Charles Michel sobre a criação do Fundo de Recuperação “para os países mais atingidos pela crise” tinha sido uma exigência – e desta vez aceite – do primeiro-ministro italiano. De resto, Conte – na declaração que fez aos italianos – falou sempre de acesso a dinheiro a fundo perdido.
“O montante do Fundo de Recuperação deverá chegar aos 1,5 biliões de euros e deverá garantir transferências a fundo perdido aos Estados-membros, essenciais para preservar os mercados nacionais, a igualdade de condições, e para assegurar uma resposta simétrica a um choque simétrico”. O Presidente francês, Emmanuel Macron, cavou ainda mais as diferenças: “Precisamos de transferências de recursos para os países da UE mais afetados pela crise, não de empréstimos”.
Pacote das três redes do Eurogrupo aprovado. E chega?
Quanto a decisões finais, os líderes europeus aprovaram o pacote “de redes de segurança” de 540 mil milhões de euros acertado numa maratona de negociações no Eurogrupo na semana passada. Mais importante: fixaram uma data concreta para que este pacote de medidas esteja operacional, ou seja que o dinheiro esteja acessível, em condições favoráveis, para Estados-membros e empresas afetadas pela crise: 1 de junho.
Os mercados tinham mostrado muito pouco entusiasmo em relação ao plano anunciado pelo Eurogrupo – agora formalmente aprovado pelos líderes europeus – porque, repetindo-se o padrão que se viu na crise da dívida europeia (ou, até, no chamado “Plano Juncker”): mais uma vez, cumpriu-se “a histórica tradição da União Europeia de apresentar planos com grandes números… aos quais se chega com grande criatividade“, dizem os economistas do Berenberg.
Fala-se de quê, concretamente? Por exemplo, a maior componente dos 540 mil milhões anunciados por Mário Centeno está relacionada com a possibilidade de os países recorrerem ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) numa proporção de até 2% do respetivo PIB. Os 240 mil milhões não são mais, portanto, do que a soma aproximada de 2% do PIB de cada país (cerca de 4.000 milhões no caso de Portugal). Mas essa soma inclui 2% do PIB da Alemanha, 2% do PIB de França, 2% do PIB da Holanda, e por aí em diante.
“A questão é que, para a maior dos membros da zona euro, os custos de financiamento já são tão baixos que não têm qualquer vantagem em pedir o apoio do MEE“, referem os economistas. Ou seja, disponibilizar os fundos do MEE para todos é uma forma de ajudar alguns países a limitar os seus próprios custos de financiamento – tanto no próprio MEE como, indiretamente, nos mercados financeiros – e aproximá-los dos custos que pagam os emitentes percecionados como mais “seguros”, como o estado federal alemão. Nessa perspetiva, que vantagem teria a Alemanha de recorrer ao MEE quando já pode aceder a esses juros mais baixos sozinha?
Isto faz com que os 240 milhões de euros da componente MEE do plano de Centeno correspondam, na verdade, a menos de um terço: algo como 70 a 75 mil milhões, calcula o Berenberg, somando 2% do PIB dos países que têm maior probabilidade de recorrer ao mecanismo, incluindo a Itália, que poderia “levar” cerca de 40 mil milhões.
A taxa de juro da Alemanha a 10 anos é inferior, nesta altura, a -0,4% (juros negativos), o que contrasta com os 1,2% (positivos) de Portugal, os 1% de Espanha e os mais de 2% de Itália, que esta sexta-feira arrisca ver a agência S&P a cortar-lhe o rating. Mesmo com as medidas de estímulo e intervenção anunciadas pelo Banco Central Europeu, os mercados já estão a refletir nas taxas de juro exigidas a vários países um risco adicional de que algumas economias terão mais dificuldade do que outras em responder à pandemia e relançar a economia. Mas essa divergência poderá acentuar-se caso a indefinição se arraste, por muito que o BCE garanta que não irá tolerar uma maior “fragmentação” dos custos de financiamento dos países.
Como conclusão, a análise dos economistas não é animadora. “Ao conseguirem apenas um progresso muito limitado no que toca a substância, os líderes da UE falharam mais uma vez [na missão] de enviar um sinal claro de solidariedade”. A 6 de maio haverá novas respostas a esta questão, e depois seguem-se semanas ou meses de negociações de pormenor.