Do pacote de mil milhões de euros destinados a ajudar as empresas a lidar com a escalada do gás natural no ano passado, foram até agora gastos menos de 100 milhões de euros. O motivo prende-se com o alívio sentido desde o início do ano nos preços grossistas. Este apoio transitório vai entrar no cálculo do saldo das contas públicas deste ano, mas apenas a parte que chegar às empresas. O que vai resultar numa almofada orçamental de centenas de milhões de euros em 2023.
Com este bónus do lado da despesa, a que se soma uma cobrança fiscal acima das previsões, o Governo pode aproveitar para fazer um brilharete nas contas públicas, antecipando até eventualmente um excedente orçamental, só alcançado uma vez por Mário Centeno, e reforçando a trajetória de redução da dívida pública . Ou pode usar esta margem para aprovar ainda este ano novas medidas, sejam de apoio à economia e às famílias, sejam para fomentar a sustentabilidade do setor energético. É uma escolha política que terá como pano de fundo a apresentação da proposta de Orçamento de Estado para 2024, um período em que há sempre muita pressão para realizar mais despesa ou baixar impostos, como propôs o PSD ainda em agosto.
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À boleia do que chamou de “dividendo fiscal”, o PSD apresentou um pacote de medidas focado no IRS que prevê a entrega às famílias de 1.200 milhões de euros já este ano, tirando partido de uma folga orçamental do lado da receita que o partido estima que se situará entre os 2,2 e os 2,5 mil milhões de euros.
O Governo já deu alguns sinais no sentido da baixa do IRS, mas apontando para o próximo ano.
De mil milhões a menos de 100 milhões (até junho)
No final de um ano fortemente marcado pela crise energética, com epicentro no gás natural por causa da invasão russa da Ucrânia, o Governo anunciou há quase um ano o maior pacote de sempre de ajuda aos custos da energia no valor de três mil milhões de euros (valor que veio a ser reforçado em 500 milhões de euros para a eletricidade).
Se uma parte relevante destas medidas era financiada pelo próprio sistema elétrico, no caso do gás natural o Estado chegou-se à frente nos apoios com um cheque de mil milhões de euros pago pelo Orçamento do Estado. Os principais destinatários eram as empresas de consumo energético intensivo, algumas das quais tinham suspendido a produção ao longo de 2022 por causa do custo e da volatilidade dos preços do gás natural. Portugal começou por dar ajudas modestas face a parceiros europeus mais abonados, mas perante a perspetiva de mais um ano com o gás muito caro, esses apoios foram alavancados.
A transferência destes montantes para a REN (Redes Energéticas Nacionais), que através da REN Gasodutos é a gestora do sistema nacional de gás, foi realizada nos últimos dias do ano. Mas num entendimento validado pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INE) o apoio extraordinário ao sistema nacional de gás foi classificado nas contas nacionais de 2022 como operação financeira, um adiantamento, dos apoios a dar às empresas que só seriam materializados em 2023.
Logo, o impacto da medida no saldo das contas públicas em contabilidade nacional só será sentido este ano, como reconhece o próprio Governo no programa de estabilidade apresentado em abril.
O documento destaca os 5,7 mil milhões de euros do desvio de receitas fiscal e contributiva previsto para 2022 em transferências para ajudar famílias e empresas a suportar os impactos da inflação e do choque geopolítico, mas em nota de rodapé explicita que o financiamento do regime transitório de estabilização do preço do gás natural só “terá impacto no saldo em 2023″, sem quantificar qual será esse impacto. O regime não consta das principais medidas de política orçamental com impacto quantificado, pelo que não é possível com base na informação do programa avaliar se a previsão do saldo orçamental para este ano inclui a totalidade dos mil milhões de euros ou apenas uma parte, e que parte.
É que esse impacto está balizado pela dimensão do apoio que efetivamente for dado às empresas, explicou ao Observador fonte oficial do INE. “O registo da despesa em contas nacionais, com impacto no défice, ocorrerá em 2023, à medida (e no montante) que as empresas beneficiarem efetivamente da redução de preços de gás natural aplicáveis aos consumos então realizados.”
Para saber quais são os valores que terão impacto no défice, o INE sugere a consulta do relatório e contas do primeiro semestre da REN. Essa consulta mostra que o apoio pago por este regime está muito aquém dos mil milhões de euros mobilizados pelo Governo. Nas contas semestrais, a REN indicava que ainda tinha 931,3 milhões de euros do ativo relativo ao regime transitório de estabilização do preço do gás. Em respostas dadas então à agência Lusa, fonte oficial da gestora da rede confirmava que só tinha transferido 68,6 milhões de euros destes apoios às comercializadoras que depois aplicam os descontos nas faturas pagas pelas empresas consumidoras de gás.
Os montantes distribuídos às empresas resultam de uma fórmula que incorpora a evolução do preço do mercado grossista do gás na Península Ibérica (o Mibgas). A REN não dá valores mais atualizados, mas a evolução recente do mercado grossista do gás está muito longe da escalada de há um ano que justificou a criação deste regime, pelo que não se antecipa neste quadro que haja transferências adicionais com expressão para apoiar as empresas.
Um “seguro” contra preços elevados e novas crises
O Ministério do Ambiente e Ação Climática justificou ao Observador o baixo grau de utilização destas ajudas ao preço do gás. “Os valores do apoio de gás natural têm vindo a diminuir devido à redução dos preços no MIBGAS. De facto, o valor do apoio de gás natural é nulo desde o dia 12 de abril (com exceção de 16 de junho, em que o valor do apoio de gás natural foi de 1,74 EUR/MWh). Com a estabilização do preço de mercado grossista de gás natural, o mecanismo não foi acionado, mas continua como um importante instrumento de seguro para situações de volatilidade e de preços elevados”.
Quando foi anunciado o apoio transitório, o Governo trabalhou sobre vários cenários. No mais adverso, o gás poderia custar em 2023 cerca de 180 euros por MW hora, o que representaria uma subida de mais de 700% face a 2021. O cenário intermédio admitia uma cotação média de 100 euros por MW hora, mais 354% do que em 2021.
Os preços do gás natural no Mibgás têm estado a negociar abaixo dos 50 euros por MW hora desde fevereiro — e a um preço inferior a 40 euros por MW hora nas últimas semanas —, razão pela qual o mecanismo ibérico que desliga o gás do preço da eletricidade não tem sido usado. Ainda que as próximas semanas assistam a uma valorização à medida que os países preenchem os stocks para o inverno, não se antecipa um regresso aos recordes do ano passado quando as cotações diárias chegaram a ultrapassar os 200 euros.
O Ministério do Ambiente e Ação Climática não quis pronunciar-se sobre o futuro deste regime transitório para além de 2023, e dos mais de 900 milhões de euros que lá estão.
E se é certo que os preços grossistas da eletricidade e do gás têm estabilizado em baixa nos meses recentes, o ano passado mostrou que a energia é muito vulnerável a choques externos e incontroláveis nos preços e que há um efeito de contágio entre os vários sistemas. O que tem obrigado os governos a realizar intervenções extraordinárias, como aquele que ainda está em vigor em Portugal e Espanha e que trava o impacto de um gás caro no preço da eletricidade — e que não tem sido usado porque o gás está muito mais barato do que há um ano.
Portugal tem, aliás, uma tradição de intervir politicamente para controlar a evolução dos preços da eletricidade, sobretudo por causa dos custos de interesse geral que estão encostados à fatura elétrica, mas também devido à dívida tarifária herdada dos tempos do primeiro Governo de José Sócrates. Por outro lado, se a remuneração das renováveis e à central da Tapada do Outeiro ajudou a puxar as tarifas elétricas para baixo quando os preços grossistas dispararam, é provável que com a sua descida, o sistema tenha de voltar a suportar um sobrecusto com estes produtores para as tarifas de 2024.
Nas explicações dadas à Lusa, a REN adianta que a verba não utilizada até ao final do ano será devolvida ao Estado. O INE diz, por seu turno, que os montantes que vierem a ser devolvidos ao Estado serão registados como operação financeira, tal como aquando da afetação dos mil milhões de euros, “sem impacto no défice”.
A devolução terá sim um impacto positivo na dívida pública, já que os mil milhões de euros transferidos em 2022 foram classificados nesta rubrica.
Questionado pelo Observador sobre esta almofada orçamental e o seu eventual impacto (positivo) no objetivo do défice, o Ministério das Finanças não deu resposta.
O programa de estabilidade previa para 2023 um défice de 0,4% do Produto Interno Bruto, mas a forte subida da cobrança fiscal face ao orçamentado permite antecipar um resultado muito melhor. Os mais de 900 milhões de euros ainda por usar deste apoio do gás correspondem a cerca de 0,375% do PIB.
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