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No dia de Natal, Donald Trump faz compras na Amazon. No carrinho de compras online do Presidente eleito dos Estados Unidos estão apenas três coisas: o Canadá, a Gronelândia e o canal do Panamá. A montagem foi partilhada nas redes sociais pelo seu filho, Eric Trump, com a legenda “Estamos mesmo de volta!!!” e resume uma série de declarações que Trump tem feito ao longo das últimas semanas e que deixou claras na sua própria mensagem de Natal — a vontade de tornar estes três territórios parte dos Estados Unidos durante os próximos quatro anos.
Canadá, Gronelândia e canal do Panamá têm pouco mais em comum para além da relativa proximidade geográfica aos Estados Unidos. Além disso, nenhum deste casos foi o foco direto da campanha eleitoral de Donald Trump. Porém, na visão do Presidente eleito em novembro, podem ser a chave para desbloquear muitas das promessas de política externa que foi deixando ao longo dos últimos meses.
We are so back!!! pic.twitter.com/PvybVULeAz
— Eric Trump (@EricTrump) December 24, 2024
O “negócio” mais realista é o da Gronelândia, que já tinha sido sugerido na primeira administração Trump, mas foi interpretado como uma piada e travado pela Dinamarca. “Agora, não há muitas pessoas que estejam a rir-se“, argumenta o especialista em Segurança no Ártico, Marc Jacobsen, ao New York Times. Já o canal do Panamá pode ser um palco para fazer um braço de ferro com a China. E o Canadá uma forma de levar a cabo a sua política alfandegária. Mas que viabilidade podem ter estes desejos de Natal de Donald Trump?
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Gronelândia. Minerais, rotas comerciais e uma questão legal
Dos três territórios, este é aquele com que Donald Trump tem mais história. Em 2019, o Presidente classificou-o como “um grande negócio imobiliário”. Desta vez, o foco está nos “propósitos de Segurança Nacional e de Segurança“. “Os Estados Unidos da América entendem que a posse e o controlo da Gronelândia são uma necessidade absoluta”, escreveu Trump na sua rede social Truth Social, no passado domingo.
À data, o interesse de Trump pelo território tinha duas facetas. Por um lado, uma dimensão geo-estratégica, de fortalecer a presença norte-americana nos vários pontos do globo — os Estados Unidos já têm uma base no norte da Gronelândia, mas a ascensão internacional da China já fazia surgir a necessidade de maior afirmação norte-americana. Por outro lado, de exploração de recursos, já que o território é rico em recursos naturais, entre os quais se destacam minerais raros utilizados na construção de novas tecnologias. Porém, esta exploração é difícil e, em 2019, os especialistas classificavam-na como pouco compensatória para os Estados Unidos.
Cinco anos depois, a Gronelândia ganha mais um ponto de interesse, uma vez que o degelo está a levar à abertura de novas rotas comerciais no Ártico. O controlo norte-americano do território passaria agora a ter valor económico acrescido para Washington. Isto leva Donald Trump a classificar a compra da Gronelândia como um negócio proveitoso. Sherri Goodman, antiga oficial do Pentágono e analista do think tank Wilson Center, sublinha que esta política não é “louca”, mas semelhante a outras que os Estados Unidos já assumiram no passado.
“Foi louco quando os Estados Unidos adquiriram o Alasca? Foi louco quando os Estados Unidos construíram o canal do Panamá?”, questiona ao Times. Ainda assim, a investigadora reconhece um obstáculo, o mesmo que impediu o negócio de avançar em 2019: “[Segundo] o Direito Internacional e a ordem internacional, a Gronelândia ainda é parte da Dinamarca“. Desde 1953 que a Gronelândia é um distrito autónomo da Dinamarca, com uma administração própria, mas subordinada em assuntos de Defesa e Negócios Estrangeiros.
O líder do governo gronelandês foi rápido a responder a Trump. “[A Gronelândia] não está à venda nem nunca estará“, escreveu Múte B. Egede numa nota ao canal dinamarquês V2. Egede detalhou ainda que desejam continuar a cooperação e o comércio com todos os países, “especialmente os vizinhos”, mas que isso terá de ser feito à luz dos “valores gronelandeses”.
Da parte de Copenhaga, a resposta foi semelhante, apoiando diretamente a nega de Egede a uma “venda”. Ainda assim, “o governo está ansioso por trabalhar com a nova administração [norte-americana]”, tal como se pode ler no comunicado do gabinete da primeira-ministra dinamarquesa. Apesar de ter sido sublinhada a necessidade de “cooperação transatlântica”, o ministro da Defesa anunciou, três dias depois, que vai aumentar o investimento da Gronelândia nessa área. Sem especificar valores, Troels Lund Poulsen afirmou que seriam “dígitos duplos” de milhares de milhões de coroas dinamarquesas — o que pode ser qualquer valor entre 1,37 e 13,27 mil milhões de euros.
Apesar das recusas da Gronelândia e da Dinamarca, três pessoas próximas de Donald Trump avançaram à Reuters que há uma discussão informal para avançar mesmo com o negócio. A opção mais popular passa pela independência da Gronelândia da Dinamarca e a assinatura de um acordo de Livre Associação com os Estados Unidos — as sondagens mostram que a maioria dos 56 mil habitantes da Gronelândia apoiam esta solução, destaca a agência. A assinatura deste acordo promove a integração económica de países com os EUA, sem lhes retirar a sua independência.
David Goldwyn, funcionário do Departamento de Estado nas administrações Clinton e Obama, argumenta ao New York Times que a solução mais “frutífera” para os Estados Unidos alcançarem os seus objetivos económicos e estratégicos na Gronelândia continua a ser “a colaboração com o governo dinamarquês e a população gronelandesa”.
Canal do Panamá. As tarifas “ridículas” e a mão da China na América Latina
O segundo território é o que tem ocupado mais tempo a Donald Trump. Trata-se do estreito de 82 quilómetros, construído pelos Estados Unidos no início do século XX, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico e facilita o tráfego marítimo. Os EUA tiveram controlo exclusivo da passagem até 1977, mas desde 1999 que esse passou para o Panamá — entre essas duas datas, o controlo era partilhado pelos dois Estados. Está assim explicado o interesse histórico dos Estados Unidos no canal do Panamá.
Apesar de ter reconhecido este valor, o argumento do Presidente eleito para tomar controlo do canal é mais económico, uma vez que os Estados Unidos são o principal cliente do canal. “As tarifas cobradas pelo Panamá são ridículas, especialmente sabendo a generosidade extraordinária mostrada ao Panamá pelos Estados Unidos. Este roubo ao nosso país tem de parar imediatamente”, escreveu Trump na Truth Social no passado sábado. As afirmações foram repetidas no domingo, quando discursou no USA AmFest, uma conferência organizada pela associação conservadora Turning Point.
Dois conselheiros de Trump apresentaram à CNN duas possíveis justificações para o interesse de Donald Trump pelo canal do Panamá. Um considerou que podia ser o resultado de um interesse pessoal expressado por algum dos seus aliados, com quem tem estado reunido em Mar-a-Lago. Este conselheiro nota que Trump “eleva causas” que lhe são apresentadas por estas pessoas se “o animarem”. O outro conselheiro aponta que os navios comerciais norte-americanos são um tema que lhe interessa, “os negócios são uma prioridade para ele”.
A resposta do Panamá à ideia de Donald Trump não diferiu muito daquela que foi dada pela Gronelândia. “Cada metro quadrado do canal do Panamá e da sua zona adjacente é do Panamá e continuará a ser. A soberania e a independência do nosso país não são negociáveis“, afirmou o Presidente José Raúl Mulino. No mesmo comunicado, o chefe de Estado panamense declarou que “as tarifas não são um capricho” e estão ajustadas aos mercados. A variação nas tarifas pode ser justificada pelo aquecimento global, que seca reservatórios e diminui a capacidade do canal. Aumentar as tarifas de passagem e alfândega é uma forma de diminuir o trânsito no estreito, explica o The Guardian.
As palavras de José Raúl Mulino não foram bem recebidas. “Isso é o que vamos ver”, escreveu Trump, novamente na Truth Social, onde partilhou ainda uma imagem da bandeira norte-americana com o canal ao fundo e a legenda “Bem vindos ao Canal dos Estados Unidos”.
Porém, para além das questões das tarifas, Trump tem outro motivo para estar interessado em controlar o canal do Panamá: “Não deixar que caia nas mãos erradas”, ou seja a China, explicou o próprio. A seguir aos Estados Unidos, a China é o segundo maior cliente do canal e os dois portos do canal — um no Pacífico, outro nas Caraíbas — são administrados por subsidiárias de uma empresa de Hong Kong, nota a Reuters. Apesar de isto não representar um controlo direto chinês, é uma presença suficiente para ameaçar Trump. “Isto é uma questão de influência e de fletir [poder]. Trump está a tentar minar a influência [chinesa] na América do Sul”, argumenta Tricia McLaughlin, conselheira de Vivek Ramaswamy — o escolhido de Trump para liderar o departamento de eficiência governamental com Elon Musk –, à agência noticiosa.
Outros dois conselheiros, especialistas em política externa, explicam à Reuters que o interesse pelo canal do Panamá é uma forma de lidar com uma das bandeiras de Trump na campanha: fazer frente à economia e influência crescente da China no mundo. Will Freeman, investigador no Council of Foreign Relations, especialista na América Latina, argumenta que cabe às autoridades do Panamá decidir se cedem às declarações “coercivas” do Presidente eleito. “Há um interesse real dos EUA em controlar a sua neutralidade”, remata à BBC.
Canadá. O 51º Estado e a luta das tarifas com o “Governador” Justin Trudeau
Em dois dias, Trump pressionou a Dinamarca a leste e o Panamá a sul. Mas, no início do mês, a pressão já tinha sido disparada a norte, em relação ao Canadá. No final do mês passado, Trump prometeu aumentar as tarifas das importações do vizinho do norte, outra das suas grandes promessas eleitorais, tema que foi discutido com o primeiro-ministro canadiano duas semanas depois, quando Justin Trudeau se deslocou a Mar-a-Lago para jantar com Donald Trump.
“Estou ansioso por ver novamente o Governador em breve para que possamos continuar os diálogos sobre comércio e tarifas, cujos resultados serão espetaculares para todos”, escreveu Trump sobre esse encontro do dia 10 de dezembro. Esta foi a primeira ocasião em que o Presidente eleito se referiu publicamente ao chefe do governo canadiano como “Governador”. Terá sido também a primeira vez que pôs em cima da mesa a possibilidade de o Canadá passar a fazer parte dos Estados Unidos, segundo relatou a Fox News.
Na sua mensagem de Natal da passada quarta-feira, Trump voltou a trazer o assunto à baila. “[Feliz Natal] também para o Governador Justin Trudeau do Canadá, cujos impostos dos cidadãos são demasiado altos, mas se o Canadá se tornar o nosso 51º Estado, serão cortados em mais de 60%”, declarou Trump na mesma publicação em que menciona o canal do Panamá e a Gronelândia.
Das três ideias, esta é a única que os analistas não veem como uma possibilidade real em nenhum cenário. Em vez disso, interpretam as pontadas jocosas de Donald Trump como uma forma de pressionar o governo canadiano a colaborar nas questões económicas, uma vez que o executivo de Trudeau já se encontra sob pressão interna. “É parte da negociação sobre as tarifas“, analisa Elliott Abrams, investigador no Council of Foreign Relations, citado pela Reuters. Já Tricia McLaughlin vê uma ameaça de “não mordas a mão que te dá de comer”.
Independentemente da viabilidade de cada uma destas ideias, os analistas são, de um modo geral, unânimes de que estas ajudam a desenhar a política externa norte-americana para os próximos quatro anos. O seu lema “América Primeiro” não se limita a um slogan isolacionista, mas a uma visão além-fronteiras, uma exibição de força. A CNN identifica ainda uma semelhança com a doutrina “Manifesto do Destino”, que marcou a política externa dos EUA no século XIX — “a crença nos direito divino dos Estados Unidos se expandirem pelo continente”. “A ideia é que o que é bom para a América também é bom para o resto do mundo”, acrescenta por sua vez uma antiga oficial de política externa da administração Trump, ouvida pela Reuters.
Contudo, apesar de o conteúdo destas políticas não ser novo, a forma como Donald Trump as apresenta — como “provocações” e como “floreados retóricos“, como define a CNN — pode pôr em causa a seriedade destas propostas e a capacidade de a futura administração as implementar. Esta crítica é feita por outro antigo conselheiro, John Bolton, que confirma que estas negociações informais sempre existiram, mas que Trump pode deitar tudo a perder porque “não soube manter a boca fechada“.
No seu primeiro mandato e ao longo de toda a campanha eleitoral, Donald Trump nunca se inibiu de deixar críticas e provocações aos seus adversários, como é o caso da China. Mas o caso muda de figura se, no segundo mandato, o Presidente quiser utilizar as mesmas táticas “coercivas” para lidar com aliados históricos, como a União Europeia — aqui na figura da Dinamarca –, o Panamá ou o Canadá.