58.368 folhas, dividas por 12 volumes principais e 230 anexos, 92 testemunhas chamadas, 18 arguidos (15 singulares e três coletivos). Estes são alguns dos números que marcam o primeiro processo de contraordenação do Banco de Portugal contra os antigos presidente e administradores do Banco e Grupo Espírito Santo.
A inquirição às testemunhas chamadas pelos arguidos, cerca de 100 incluindo nomes repetidos, arrancou na semana passada e prolonga-se por janeiro de 2016, pelo menos. É um “megaprocesso”, na expressão da defesa de Ricardo Salgado. Mas é apenas o primeiro.
Há já uma segunda acusação proferida contra 18 arguidos — relativa ao financiamento do BES ao BESA (Banco Espírito Santo Angola) — e espera-se que existam, pelo menos, mais três grandes processos de contraordenação relacionados com o colapso do BES, tantos quantas as auditorias forenses realizadas pela Deloitte para o Banco de Portugal.
Estamos a apenas falar do supervisor bancário. Falta a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), para já não falar dos inquéritos-crime cuja investigação corre paralela no Ministério Público (MP), embora muito apoiada na denúncia, processos e colaboração dos reguladores.
Os processos contraordenacionais do Banco de Portugal têm algumas semelhanças com os processos penais instruídos pelo MP e decididos pelos tribunais:
- Ambos têm uma fase de inquérito, que coincide com a investigação das suspeitas que dão origem ao respetivo processo e que termina, reunidas e analisadas todas as provas recolhidas, com a acusação ou arquivamento;
- No caso de uma acusação, é possível aos arguidos contestarem durante a fase de instrução, requerendo a recolha de nova documentação e apresentando testemunhas que sustentem a sua argumentação.
- A condenação é passível de recurso para os tribunais superiores.
Apesar de a comparação ser tentadora, os advogados penalistas ouvidos pelo Observador sublinham que há diferenças fundamentais em relação ao processo penal e ao julgamento em tribunal. A primeira diferença prende-se com o resultado da fase de instrução. Enquanto, no processo penal, a conclusão passa pela pronúncia para julgamento ou pelo arquivamento dos autos, já nas contraordenações do Banco de Portugal a fase instrutória termina com a condenação.
Outra diferença é a publicidade. O processo de contraordenação está protegido pelo segredo de justiça, mesmo na fase de defesa, enquanto o processo criminal é público em termos gerais, sendo o segredo de justiça a exceção, mas apenas aplicável à fase de inquérito. As audiências são à porta fechada e, por vezes, nem as condenações são tornadas públicas, porque ainda há o recurso para os tribunais.
Mas as duas maiores distinções passam pela sanção:
- No processo penal pode verificar-se a perda de liberdade durante a fase de inquérito ou após uma eventual condenação em sede de julgamento. No processo contraordenacional, como o próprio nome indica, a sanção passa pela aplicação de multas mas, também, na inibição do exercício de funções no setor financeiro. Esta última sanção, que se designa de acessória, também existe no processo penal;
- No processo penal, a condenação resulta de um julgamento em que o juiz é uma entidade distinta e independente de quem acusa.
Banco de Portugal investiga, acusa, aprecia e condena
Nos processos de contraordenação, quem julga não é uma entidade independente. O regulador investiga, acusa, aprecia, condena e fixa as sanções. Entre a acusação e a condenação, é muito raro que o supervisor mude de opinião depois de ouvir os argumentos da defesa. Quanto muito, caem algumas contraordenações ou arguidos, mas nunca os principais visados.
No caso do Banco de Portugal, a investigação e a acusação é realizada por técnicos do Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória, dirigido por José Bracinha Vieira. São também os técnicos deste departamento que presidem à fase de instrução, sendo que um deles é nomeado instrutor, cabendo-lhe a responsabilidade de produzir um relatório final que resumirá as provas e testemunhos recolhidos e as suas recomendações. Tal relatório será apreciado pelo conselho de administração do Banco de Portugal, liderado pelo governador, Carlos Costa, a quem cabe a decisão final e a eventual condenação dos arguidos.
A impugnação da condenação só pode ser feita no Tribunal da Concorrência. Situado em Santarém, é um tribunal especializado em que os juízes estão preparados para lidar com a complexidade inerente a alegadas irregularidades de organizações financeiras. Antes da sua criação, os recursos eram apreciados pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal que tanto julgava casos de pequenos furtos e de violência doméstica, como os recursos das contraordenações do Banco de Portugal.
As coimas máximas por contraordenações graves podem atingir cinco milhões de euros para entidades coletivas e um milhão de euros para titulares de órgãos sociais, para além das sanções acessórias que podem inibir os condenados do exercício de funções no setor por um período até dez anos. Há fontes judiciais a alertar para uma explosão de contraordenações na atividade económica com o valor das coimas máximas a subir até montantes muitas vezes mais avultados do que as penalizações impostas pelos tribunais, o que é visto como um contrasenso.
Seja como for, verifica-se sempre, tal como no processo penal, um cúmulo jurídico nas sanções a aplicar. Isto é, as diversas multas e sanções acessórias são reunidas numa só pena, a qual não poderá exceder os limites acima referidos.
Mas é muito mais do que uma “multa de trânsito”, expressão usada pelo advogado de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho, quando acusou o Banco de Portugal de querer “aplicar coimas de milhões de euros, seguindo trâmites simplistas de coimas de trânsito”.
Na realidade, há várias nuances nesta questão. Regressando a uma comparação com o processo penal, pode dizer-se que o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras funciona como uma espécie de Código Penal para os processos contraordenacionais, já que estipula os ilícitos e as penas, com limites mínimos e máximas, que podem ser aplicadas.
O papel do Código de Processo Penal, que define as regras processuais que têm de ser seguidas sob pena de nulidade dos atos, é assumido pelo Regime Geral de Contraordenações. O problema é que este último ‘vai buscar’ conceitos e regras ao processo penal, administrativo e civil – logo, transforma-se numa verdadeira babilónia jurídica e legal.
Presidente do Supremo receia invasão regulatória
A fronteira entre os processos do Banco de Portugal e o processo penal é cada vez mais fluida, sobretudo quando estão em causa ilícitos de natureza contraordenacional que também são apreciados pelo MP e pelos tribunais criminais. Recentemente, houve os casos BCP, BPN e BPP, mas o BES promete suplantar, em dimensão e complexidade, tudo o que já passou pelo Banco de Portugal e pela CMVM.
Para o sucesso da investigação criminal e contraordenacional de todos estes casos, e o do BCP foi pioneiro, foi essencial a colaboração entre o MP e os reguladores, com destaque para o supervisor bancário. Antes do caso BCP, e em virtude da forma como o Banco de Portugal olhava para a própria supervisão no tempo da liderança de Vítor Constâncio, a colaboração com o MP era nula. A cooperação entre a CMVM e o MP foi sempre mais regular e produtiva.
No caso do BES, a proximidade entre o titular da ação penal e o Banco de Portugal tem sido intensa, permitindo um conhecimento profundo da realidade do banco e das instituições não financeiras através da transmissão de prova entre as duas entidades e o apoio técnico e de know-how mútuo. Ao fim e ao cabo, são duas entidades que têm o mesmo patrão: o Estado.
Esta colaboração entre o MP e os reguladores não é bem vista pelos juízes. Pelo menos, a julgar pelas recentes críticas do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferidas na abertura do ano judicial.
Henrique Gaspar diz que o contencioso económico e financeiro, entregue à competência de diversas regulações, “tem vindo a ocupar o espaço da jurisdição”, provocando uma “confusão de papéis”. O juiz conselheiro alertou, ainda, para o “risco de questionamento da legitimidade constitucional” e para o perigo de “captura do direito e dos seus princípios construtivos pela opressão subtil do tecnocentrismo”.
“As formas sensíveis de infração às obrigações e deveres, praticadas no âmbito de atividades sujeitas a regulação – os grandes interesses da finança e da economia, a concorrência, as comunicações ou a energia – foram entregues ao direito das contraordenações, que tem sofrido acentuadamente uma deriva na razão da sua natureza e dos seus fundamentos dogmáticos.
As sanções aplicáveis atingem valores elevadíssimos, e são previstas medidas cautelares ou acessórias que podem afetar intensamente direitos fundamentais. (…) Por isso, a aplicação de sanções tem de respeitar as exigências de tribunal independente e imparcial, do contraditório, da publicidade, e sempre com a possibilidade de recurso para os tribunais.”
As sanções aplicáveis atingem valores elevadíssimos, e são previstas medidas cautelares ou acessórias que podem afetar intensamente direitos fundamentais."
Outros juristas, como o especialista em direito penal, Jorge de Figueiredo Dias, defendem a figura das grandes contraordenações, uma espécie de lei penal para empresas, em mega-processos, tese que tem o apoio do presidente da CMVM, Carlos Tavares. E o “caso” BES/GES caberia nesta figura.
Excecional complexidade justifica mais testemunhas
O Banco de Portugal ainda só proferiu acusações em apenas dois processos de contraordenação, mas já existem 36 arguidos, entre entidades coletivas e pessoas. A maioria, como Ricardo Salgado e os administradores do BES que eram também gestores do Grupo Espírito Santo, aparecem nos dois como arguidos, mas terão de preparar defesas independentes para cada um.
Os arguidos apresentaram cerca de 100 testemunhas, das quais 92 são distintas (há pessoas chamadas por mais do que um arguido). A estrela do processo, Ricardo Salgado, convocou 27 testemunhas. A lei das instituições financeiras limita o número de testemunhas a três por infração e 12 no total, mas a defesa do antigo presidente executivo do BES invoca a excecional complexidade do processo para ultrapassar esse teto.
Um dos argumentos é a circunstância de os factos em causa envolverem várias jurisdições, Suíça e Luxemburgo, para além de Portugal, e um longo período de tempo que vai desde 2008 até 2014. Os advogados lembram, ainda, que Ricardo Salgado é o único arguido que está acusado por todos os tipos contraordenacionais (cinco) indicados neste processo.
A primeira audição do primeiro processo realizou-se esta semana (segunda-feira) e inquiriu testemunhas ligadas à ESAF – Espírito Santo Ativos Financeiros. A gestora de fundos de investimento do BES está no centro da primeira acusação, a qual incide sobre a falsificação de contas da Espírito Santo Internacional (ESI) e a venda de papel comercial desta desta holding do GES aos clientes do banco.
Três audições por dia
O Observador sabe que há um limite de três inquirições por dia, embora possa haver testemunhas chave cuja inquirição demore mais de um dia e outras que possam ficar despachadas em poucos minutos. O calendário indicativo destas audições aponta a conclusão até ao final de janeiro, estando prevista uma decisão do Banco de Portugal no final do primeiro trimestre de 2016.
O agendamento é “uma disciplina ciclópica”, admite um jurista, dada a necessidade de alinhar disponibilidades e agendas. No entanto, fontes da advocacia sublinham que os reguladores são em regra mais eficazes na fase de inquirição do que os tribunais. As sessões começam a horas e não há férias judiciais a atrasar. O ritmo de trabalho é mais disciplinado. De uma maneira geral, o Banco de Portugal convoca e as pessoas aparecem. Se não comparecem sem justificação, são sancionadas.
Em tese, em cada uma destas sessões podem estar todos os arguidos e seus advogados, para além dos responsáveis do Departamento de Averiguação e Ação Sancionatória. Mas nem todos os advogados estão interessados em ouvir todas as testemunhas. Ainda assim, podem ser mais de trinta pessoas numa sala das novas instalações do Banco de Portugal, na rua Castilho, em Lisboa.
Quem são as testemunhas? Quem são os ausentes?
Para quem acompanhou de perto a comissão parlamentar de inquérito aos atos de gestão do BES, a maior surpresa poderá vir dos nomes ausentes da lista de 92 testemunhas chamadas pelos arguidos. A falta mais evidente é a da testemunha estrela que passou no Parlamento, o homem que, à porta fechada, implicou diretamente Ricardo Salgado na intenção de falsificação de contas da ESI. O contabilista mais famoso de Portugal, Francisco Machado da Cruz, não é chamado por ninguém.
Outro ausente, pelo menos na lista do ex-presidente do BES, é Pierre Butty, funcionário da ES Services, cujo testemunho terá sido umas das principais peças da primeira acusação do banco central contra Salgado. Já José Castella, o responsável de tesouraria do GES, que também foi ouvido pelos deputados à porta fechada, numa sessão em que corroborou a versão dada pelo antigo homem forte do grupo, está na lista do antigo líder do BES.
Fernando Nobre, presidente da AMI, Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, e Carlos Silva, líder da UGT, são também chamados por Ricardo Salgado, estes dois últimos com indicação explícita de que serão ouvidos como testemunhas abonatórias, ou seja, para falar sobre o caráter do arguido. A defesa do homem que foi conhecido como o “dono disto tudo” deixa o desabafo em nome do antigo banqueiro.
“O Dr. Salgado sabe que já não terá mais o privilégio de aparecer em fotografias ao lado de um primeiro-ministro e que a maioria daqueles que o rodearam com honras e solicitações fingirão nunca o ter conhecido ou dirão que se enganaram anos a fio. Foi igual no PREC”.
Algumas das testemunhas deverão ser inquiridas através de carta rogatória emitida pelo Banco de Portugal com perguntas indicadas pela defesa. Uma destas testemunhas é uma funcionária da Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia.
Outras personalidades que dão nas vistas são os ex-ministros das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos e Eduardo Catroga, os dois chamados por José Maria Ricciardi, o único gestor da família Espírito Santo que se mantém à frente de um banco (o BESI que passou a Haitong).
Os arguidos podem ser também inquiridos, a seu pedido, mas o seu testemunho está sempre limitado pela preocupação de não se incriminarem.
Já o papel desempenhado pelas entidades coletivas – BES (bad bank), Espírito Santo Financial Group e a ESAF são acusadas de diversos ilícitos – é diferente do que costuma acontecer no processo penal. As entidades coletivas têm interesse em colaborar com as investigações do Ministério Público e muitas vezes apresentam queixas contra antigos gestores na qualidade de lesadas pelas suas ações. No processo contraordenacional, contudo, os arguidos coletivos estão mais próximos dos seus antigos decisores. Uma condenação individual tem quase sempre uma tradução coletiva e com coima mais alta.
21 mil páginas em línguas estrangeiras
Mas não é só o número elevado de testemunhas que marca este caso. O processo tem também um enorme peso, literalmente, em documentação. Contas feitas pela defesa de Ricardo Salgado. “Estamos perante um processo de contraordenação com uma dimensão tão gigante, constituído por 12 volumes principais e 230 anexos, num total de 58.368 folhas”. E quase 40%, ou 21 mil folhas, estão em línguas estrangeiras (inglês, francês e espanhol), circunstância que é uma das fundamentações para o pedido de nulidade do processo.
No site do escritório da Uria Menéndez – Proença Carvalho, os perfis de dois dos três advogados de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho e Adriano M. Squilacce, revelam que estes juristas dominam o inglês e espanhol.
Apesar do gigantismo do processo, a defesa nota a ausência de vários documentos que considera fundamentais e pede ao Banco de Portugal que obtenha essas provas documentais junto de entidades terceiras, incluindo estrangeiras. Uma prática normal em todos os processos contraordenacionais, em que as defesas requerem a produção de prova de acordo com a sua visão da realidade em causa.
Os advogados requerem, ainda, que o supervisor confirme junto de quatro entidades estrangeiras (fundos de investimento) a disponibilidade que mostraram, numa reunião com o governador, Carlos Costa, em investir no BES em julho de 2014. Uma solução que teria, na tese de Salgado, evitado a aplicação da bomba atómica: a resolução.
Outro argumento invocado a favor da nulidade são as famosas gravações secretas das reuniões do conselho superior do GES, que Ricardo Salgado afirma não serem do seu conhecimento e não terem a sua autorização expressa, pelo menos no início.
Tal como o Observador noticiou, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que as gravações das entrevistas dadas à auditora PricewaterhouseCoopers (PWC) pelos antigos gestores da Portugal Telecom podem ser usadas na investigação criminal que foi aberta ao investimento de 897 milhões de euros da operadora telefónica em papel comercial da RioForte. Esta decisão poderá ter importância na apreciação do recurso da defesa de Salgado, visto que o MP e o Banco de Portugal alegam que as gravações foram realizadas com o conhecimento de todos os membros do Conselho Superior do GES.