O grupo a que chamaram “família”, composto por 12 raparigas e seis rapazes carentes e crédulos, em cujo vértice se encontrava uma alma negra que eles escutaram como voz de anjo – Charles Manson, de 35 anos –, não terminou verdadeiramente depois do assassínio de oito pessoas, a 9 e 10 de agosto de 1969, num dos bairros ricos de Los Angeles, nos EUA. A Família Manson perdura na cultura popular, alimentou muitas lendas e devoções ao longo das décadas e está viva até no espírito de alguns dos seus membros.
Meses depois dos homicídios, a jovem Sandra Pugh, hoje conhecida como Sandra Good, nunca diretamente implicada, declarava aos jornalistas: “Ele era magnético. Os gestos que fazia pareciam mágicos.” Meio século depois, Lynette Fromme, outras das mulheres que naquele fatídico verão californiano estiveram envolvidas com Manson, e que muito mais tarde, em 1975, chegou a tentar matar o então presidente americano Gerald Ford, disse na televisão americana que o encanto não se quebrou. “Estava apaixonada por ele e ainda hoje estou. Sinto-me uma privilegiada por o ter conhecido, mas sei o peso que isso tem para os que o consideram o epítome do mal.”
Há quem se tenha arrependido, é certo, caso de Dianne Lake, que agora se diz manipulada e coagida por Manson, tal como outros se disseram. E houve uma pessoa pelo menos, Juanita Wildebush, que desertou a tempo, semanas antes da chacina. Mas todas e todos falam dele ainda. E revivem aqueles meses de um sono louco na comuna hippie que se propunha salvar o mundo.
A primeira notícia dos crimes apareceu no dia 10: “Morte trágica da vedeta americana Sharon Tate”, reza o título da primeira página do “Diário de Lisboa”. “Encontrada assassinada ontem na sua residência californiana, Sharon Tate, atriz de cinema, de 26 anos de idade, tornara-se internacionalmente conhecida pela sua interpretação no filme ‘Por Favor Não me Mordam o Pescoço’, dirigido pelo marido, o jovem realizador polaco Roman Polanski. Com o corpo da atriz, foram encontrados os cadáveres de quatro amigos seus. Entretanto, a polícia prendeu um criado da residência, de 19 anos de idade, que acusa do quíntuplo assassínio.”
Na segunda-feira, 11, o jornal volta ao tema, sempre através de notícias das agências internacionais. Polanski tinha entretanto chegado a Los Angeles, vindo de Londres. “Não houve cenas de orgia nem consumo de estupefacientes ou de álcool entre as vítimas ou entre elas e os assassinos.” Um facto novo, a letras gordas na primeira página: “Novo crime em Los Angeles com pormenores semelhantes à chacina em casa dos Polanski. Um casal foi morto na sua residência.” Não se pouparam pormenores: “Com o sangue foram escritas na porta do frigorífico as palavras ‘death to the pigs’ (morte aos porcos). O homem morto, cuja identidade não foi revelada, foi assassinado com um garfo de grandes bicos, dos utilizados para trinchar carne. No caso de Bel Air, a palavra ‘pigs’ estava escrita com sangue das vítimas na porta principal da casa dos Polanski.”
[excerto do documentário “Manson Women”:]
https://www.youtube.com/watch?v=FLYHGs17zzo
Da viagem à lua ao apocalipse de agosto
9 de agosto de 1969 foi um sábado e a primeira viagem à Lua tinha poucas semanas. A imprensa continuava a acompanhar a saga dos três astronautas da Apolo 11, Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins, que por esses dias estavam em quarentena para “assegurar que não são portadores de qualquer germe lunar prejudicial ao Homem”, assim escreveu o “Diário de Lisboa”, cujo suplemento cultural “A Mosca” destacava como “facto significativo” serem “anglo-americanos” os discos “mais procurados” da semana: “The Ballad of John and Yoko”, dos Beatles, em primeiro lugar, seguido de “Oh Happy Day”, de Edwin Hawkins Singers, e “Where Are You”, de Cat Stevens.
Nos EUA, 1969 tinha sido também o ano da chegada de Richard Nixon à presidência, da Revolta de Stonewall, em Nova Iorque, a 28 de junho, que muitos consideram o início dos movimentos políticos homossexuais. Em Portugal, ano da “Desfolhada”, de Simone, no Festival da Eurovisão; de Marcelo Caetano, chefe do Governo, com as primeiras “Conversas em Família” na RTP; da Crise Académica de Coimbra; de um grande sismo que viria a ser o de maiores proporções no nosso século XX.
Na Califórnia, o crime Tate-LaBianca, como hoje é conhecido, eclipsou atenções. Semanas de suspense, em direto nos jornais. Dia 13: “Os polícias continuam sem indícios certos sobre a carnificina ocorrida na luxuosa vivenda de Sharon”. Dia 14: “A polícia continuou a insistir que não havia qualquer ligação entre os assassínios de Sharon Tate e o duplo crime cometido 24 horas depois. O duplo assassínio deve ser levado à conta de um psicopata com a mania da imitação.”
Rapidamente, a pista do “criado” é abandonada, com a libertação deste após interrogatório, passando as suspeitas a recair sobre um dos mortos: o “cabeleireiro de homens” Jay Sebring. Aventa-se que os assassinos fossem “viciados em drogas ou pessoas excêntricas convidadas pelo cabeleireiro para a casa da artista”. A seguir, outra hipótese: “Um polaco, amigo de Voytek Frykowski, uma das vítimas, deu ontem elementos do envolvimento de Frykowski no tráfico de estupefacientes”. E ainda esta: o suspeito seria o “hippie” Thomas Steven Harrigan.
A 28 de agosto, ainda no “Diário de Lisboa”, lê-se que a polícia “não descobriu ainda qualquer pista”, porém, Truman Capote, autor de A Sangue Frio, habituado a falar de tudo com língua solta, expões a sua teoria: “Foram assassinados por um paranóico que agiu sozinho”, declarou no talk show de Johnny Carson. Até outubro, continuaram suspeitas, pistas e ideias soltas a alimentar um noticiário tão perdido quanto a investigação da polícia.
Se hoje a cultura popular americana gosta de regressar de tempos a tempos a este caso, e é disso exemplo o novo filme de Quentin Tarantino, “Era Uma Vez… em Hollywood”, com estreia portuguesa marcada para quinta-feira, 15 – um desfile de estrelas: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Al Pacino, Kurt Russell e Margot Robbie, esta no papel da malograda atriz –, a verdade é que Manson e os assassinos não tiveram entrada direta no imaginário coletivo. Foi preciso esperar até outubro de 1969.
[trailer de “Era Uma Vez… em Hollywood”:]
O miúdo perdido criou a própria família
A história abreviada inicia-se a 12 de novembro de 1934, quando Charles Milles Maddox nasce em Cincinnatti, estado do Ohio, filho de uma adolescente de 16 anos que vem a casar-se pouco depois com William Manson. Foi esse apelido que o filho adotou por toda a vida. A narrativa que fica é a de uma família disfuncional, a dependência do álcool por parte da mãe – dizia-se que seria prostituta – , o rapazinho criado por uma avó e uma tia, a fugir da escola sempre que podia, atraído pelo pequeno crime logo aos 9 anos até ser preso aos 17 pelo roubo de um automóvel. Charles Manson chega a casar-se, tem um filho, dois, três, talvez quatro, sempre de mulheres diferentes que vai conhecendo e que se afastam depressa, uma por uma.
Continua a roubar, é preso, sai, regressa ao crime. Envolve-se em prostituição como proxeneta, estuda cientologia numa das prisões em que se encontra, tenta ser músico e dizem que lê livros de auto-ajuda sobre como falar em público e manipular pessoas. Em março de 1967, com 33 anos, chega a São Francisco, na Califórnia, onde o movimento hippie conhecia o esplendor. Tinha acabado de largar mais uma prisão e convence Mary Brunner, recém-conhecida, a juntar-se a ele para iniciarem uma comunidade, depois descrita como culto, seita, comuna. Era o início da Família Manson – “drug-fueled apocalyptic cult”, registaria um obituário de Charles Manson, em novembro de 2017.
Uma vez na Califórnia, começam por se estabelecer em Haight-Ashbury. Manson estava cada vez mais interessado numa carreira musical, daí a guitarra que foi imagem de marca, e por causa disso se aproximou de músicos, incluindo Dennis Wilson, dos Beach Boys, banda de culto que chega a gravar um tema escrito por ele (“Never Learn Not To Love”, em 1968). Crescia o ascendente sobre as jovens mulheres de que se rodeava, fazendo-se profeta à medida que os meses passavam, assim reza a lenda.
Embarca numa vida nómada pela Califórnia. Depois aparecem Lynette Fromme, Ruth Anne Moorhouse, Patricia Krenwinke, Susan Atkins e muitas mais, quase todas adolescentes de famílias da classe média, querendo trocar o tédio das suas vidas por aventuras de amor livre. O grupo vive de expedientes, recolhe restos de comida no lixo e nas lojas, dorme em edifícios abandonados.
De Haight-Ashbury, a poucos minutos de San Jose, mudam-se para o Spahn Ranch, propriedade rural nos arredores de Los Angeles. Fins de 1968. E é aí que começam a apresentar-se como Família Manson pela primeira vez. Ocupam o rancho, simplesmente, a seu bel-prazer, porque o dono do espaço, um octogenário que estava a ficar cego, anda com medo. “Não me conseguia livrar deles”, disse o velho George Spahn em 1969. “Tinha medo dele até dizer chega, medo que me atacasse e, pelos vistos, estava certo.”
“Manson é um homem de pequena estatura, 1 metro e 70, cabelo escuro pelos ombros, e nos últimos dois anos viveu com um grupo de jovens nómadas, sobretudo raparigas, que obedecem aos seus caprichos e vontades em servil devoção”, descreveu o New York Times num longo artigo em dezembro de 1969. “Nasceu na solidão”. Um padre que o conhecera em miúdo fez um resumo em tons negros: “Procurava atenção e afeto, parecia um menino angelical e tinha muita vergonha da mãe.” Para ele e para os seguidores, a Família Manson era o ponto alto de um percurso errante, finalmente a família acolhedora que nunca tinham tido.
“A composição da família mudava constantemente, mas regra geral consistia em 12 raparigas e seis rapazes que levavam uma vida indolente de sexo fácil (vários bebés nasceram entretanto) e muita marijuana (drogas duras em pequena quantidade)”, relato do diário nova-iorquino. Tidos como enjeitados, mais ou menos com percursos de vida errantes, os seguidores ficavam. Elas rendiam-se ao sexo, tudo lhes era permitido. Em entrevistas que mais tarde deu a partir da prisão, Manson afirmou sempre que havia uma grande diferença entre aquilo que se passava na família e aquilo que as pessoas que falavam deles desejavam ter feito se acaso lá tivessem estado.
LSD, Beatles e a cadeia
“Eu sou um deus, cada pessoa é deus, vocês são deuses”, palavra atribuídas ao guru, que seria lobo em pele de cordeiro. Pregava paz e amor, disseram testemunhas que o conheceram no rancho, mas também podia explodir de indignação perante os que o contrariavam. Dirigia discursos raivosos contra ricos e bem-sucedidos, odiava o “sistema”, tinha receio do então fortíssimo movimento cívico pelos direitos dos negros, os Black Panters, porque ele “iriam tomar conta da América”.
Nas vésperas dos crimes, registam-se incidentes entre Manson, outros membros da família e vários dealers que os forneciam de canábis e LSD (e as doses não seriam pequenas). As alucinações apocalípticas de Manson fazem-no supor que se aproxima o fim do mundo, que os Beatles já o anunciam através do White Album. Diz aos outros membros da família que Hitler tinha razão, o mundo precisava de uma purga. “Nunca disse diretamente que era a reencarnação de Jesus Cristo, mas tenho a certeza de que o insinuava”, recordou Juanita Wildebush.
Hipnótico e magnético. Não é difícil perceber quanto perante as singulares performances de Manson em entrevistas que veio a dar na prisão, ora num registo descontrolado, provável doença mental, ora com retórica de líder de massas que move o mundo só à força das palavras.
[Charles Manson entrevistado em 1981 por Tom Snyder:]
Na madrugada de 8 para 9 de agosto, três membros da família – Charles “Tex” Watson, Susan Atkins, Patricia Krenwinkel e Linda Kasabian – entram na casa onde então vive Sharon Tate, grávida de quase nove meses. Ela, Jay Sebring (26 anos), Voytek Frykowski (37), Abigail Folger (26) e Steven Parent (18) são mortos a sangue frio, com tiros e facadas. Alegadamente, Manson tinha ordenado aos membros da família que se dirigissem àquela casa, em Cielo Drive, por nela ter vivido Terry Melcher, jovem produtor de música que meses antes teria recusado a Manson uma oportunidade para gravar um disco. “Ele não sabia quem lá vivia, mas a casa era um símbolo de rejeição”, dirá Susan Atkins em tribunal.
Na noite seguinte, em localidade próxima, tiram a vida ao empresário Leno LaBianca (44 anos) e à sua mulher, Rosemary (38), crime em que terão participado diretamente Charles “Tex” Watson, Leslie Van Houten e Patricia Krenwinkel. Linda Kasabian, Steve Grogan, Susan Atkins e Manson estiveram lá, assaltaram a casa, mas saíram antes dos homicídios.
São todos detidos apenas em inícios de outubro de 1969, e a princípio por suspeitas de roubo de um carro. O julgamento acontece no ano seguinte, durante sete meses, com leitura de sentença em janeiro de 1971. O júri será composto por sete homens e cinco mulheres. Manson recusou sempre a autoria material ou moral dos crimes. “Culpados são eles”, disse sobre os membros do júri, no dia em que ouviu a sentença. Os seguidores admitiram sem arrependimento e continuaram a jurar fidelidade e admiração ao guru, considerados “seres robotizados e zombies” pela acusação.
Acabaram condenados à morte, mas uma mudança na lei californiana, em 1972, comutou a pena em prisão perpétua. Susan Atkins morreu de cancro em 2009. Patricia Krenwinkel continua presa, assim como Leslie Van Houten e Charles Watson. Linda Kasabian funcionou como testemunha-chave do julgamento e acabou absolvida. Charles Manson foi condenado por homicídio na forma tentada e, mais tarde, nesse ano, por autoria de outras duas mortes: do músico Gary Hinman (em julho, antes da chacina em Los Angeles) e do duplo de cinema Donald Shea (em fins de agosto). Morreu na prisão a 19 de novembro de 2017.