Passaram mais de dois meses desde que António Costa assinou o despacho que pedia que os presidentes das câmaras municipais fossem prioritários na vacinação, mas ainda há autarcas que nem sequer foram contactados pelas autoridades. A task force para a vacinação desconhece as falhas e responsabiliza as Administrações Regionais de Saúde (ARS). Questionada pelo Observador sobre os atrasos, a task force garante que “indicou às diversas ARS que gerissem este processo, no âmbito das suas estruturas locais, e que procedessem à vacinação dos Presidentes de Câmaras Municipais, através dos respetivos ACeS”.
Na mesma resposta, o grupo liderado pelo vice-almirante Gouveia e Melo conta uma realidade diferente da relatada pelos presidentes dos municípios: “Neste momento todos os autarcas que aceitaram ser vacinados terão sido inoculados com, pelo menos, uma dose“. Isto não corresponde ao que dizem os autarcas: a convocatória ainda não chegou a todos os presidentes de câmara, incluindo, por exemplo, o presidente da câmara Lisboa e o presidente da câmara municipal de Coimbra, que é também presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP).
Foi a própria ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, quem trouxe uma vez mais a lume o tema da vacinação dos autarcas ao criticar as “discussões demagógicas nomeadamente dos presidentes de câmara, que são os responsáveis da Proteção Civil dos seus concelhos, se devem ou não devem ser vacinados”, no funeral de Almeida Henriques, o presidente da Câmara de Viseu que morreu vítima de complicações relacionadas com a Covid-19.
Os que querem, os que não querem e os que nunca foram contactados
Setenta e dois dias depois é certo que nem todos os autarcas estão vacinados, mas há duas situações distintas: presidentes de câmara que não foram contactados — o que, segundo o despacho do Governo e a resposta da task force, não devia ter acontecido — e autarcas que recusaram a vacina por preferirem ser inoculados fora dos prioritários.
Quanto à primeira realidade, o Observador conseguiu reunir testemunhos de vários autarcas que ainda não foram sequer contactados para eventualmente agendar a vacinação. O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e o presidente da Câmara Municipal de Coimbra — e da Associação Nacional de Municípios Portugueses — Manuel Machado são dois dos exemplos. Fonte da assessoria do autarca de Coimbra referiu que Manuel Machado pretende ser “vacinado na sua vez” e sê-lo-á na condição de presidente de câmara, logo que seja contactado. Ainda não foi.
Já o presidente da câmara municipal da Guarda, Carlos Chaves Monteiro, também se insere no grupo dos autarcas “nunca contactados” e diz ao Observador desconhecer “alguma vantagem na vacinação” para os presidentes de câmara. “O facto de ser autarca e de ter a Proteção Civil não nos dá nenhuma vantagem no processo de vacinação”, afirmou, acrescentando ainda que “já foi vítima” da Covid-19 há umas semanas (tendo em conta as ordens superiores podia ter sido contacto antes disso) e que “não reclama nenhum privilégio nem nenhuma prioridade absoluta para os autarcas, sobrepõem-se critérios técnicos e científicos”.
A mesma opinião têm muitos presidentes de câmara que optam por não serem vacinados nesta qualidade, principalmente após a discussão sobre a vacinação de políticos e as polémicas sobre autarcas vacinados indevidamemente — já lá vamos. Tudo isto resulta no segundo problema desta equação. Ao Observador alguns autarcas confirmaram que, efetivamente, tinham sido contactados pelos ACeS (Agrupamento de Centros de Saúde) locais para serem vacinados, mas acabaram por rejeitar a vacinação prioritária.
Um dos casos é Isaltino Morais, em Oeiras, que foi contactado “há duas semanas”, mas considerando os 71 anos disse ao Observador preferir esperar pela sua vez — que não deverá tardar — na chamada pela idade, deixando críticas à forma como o processo foi conduzido. Considera o presidente da autarquia de Oeiras que o processo devia ter decorrido de outra forma e as “confusões que a vacinação dos políticos gerou” levaram o edil a rejeitar a convocatória antecipada.
A mesma postura têm Alberto Mesquita, presidente da câmara de Vila Franca de Xira, Alda Correia de Carvalho (Castanheira de Pêra), Carlos Pinto Sá (Évora) ou José Farinha Nunes (Sertã), que também recusaram a vacinação prioritária que António Costa tinha pedido.
Já Carlos Carreiras, presidente da Câmara de Cascais, que tem insuficiência cardíaca, diz ter sido “sondado logo no início do processo de vacinação”, não devido à condição de saúde, mas por ser presidente da autarquia e rejeitou ser vacinado “sem que a mãe e a sogra ou profissionais na linha da frente” o tivessem sido antes. Ao Observador diz que tomará a vacina “quando chegar a vez no âmbito da vacinação geral à população”.
Os presidentes das câmaras municipais de Leiria, Gonçalo Lopes, e a presidente da câmara municipal de Matosinhos, Luísa Salgueiro, também foram contactados, mas optaram por não tomar a vacina.
O presidente da autarquia do Porto, Rui Moreira é um dos autarcas já vacinados. Transplantado há 35 anos, Rui Moreira questionou a Administração Regional de Saúde do Norte sobre qual o motivo pelo qual estava a ser contactado e remeteu também um relatório médico com a história clínica detalhada. Numa das respostas, à qual o Observador teve acesso, a ARS Norte confirma que Rui Moreira reunia “duplo critério” para a vacinação: “insuficiência renal em pessoas com mais de 50 anos e titulares de órgãos de soberania”.
Em Tomar, a presidente Anabela Freitas já recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Ao Observador explica que o processo foi organizado pela Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (que também preside), que contactou os vários autarcas para perceber se queriam ser vacinados.
O Observador questionou a task force também sobre números concretos de autarcas já contactados e vacinados (com uma e duas doses), mas não obteve mais informações sobre o processo de vacinação deste grupo prioritário.
Um processo irregular desde o início
É preciso recuar ao início do ano. Portugal estava a braços com a terceira e mais dura vaga de Covid-19 no país e os elementos do Governo com Covid-19 começavam a multiplicar-se. A ministra do Trabalho testou positivo ao novo coronavírus no dia 14 de janeiro, seguiu-se o ministro das Finanças passado dois dias. No dia 19 do mesmo mês, era a vez de o ministro da Economia e da Transição Digital ter um teste positivo. Ao mesmo tempo, já os ministros do Ambiente e do Mar estavam em isolamento profilático por contactos de risco com infetados.
Por esta altura, o primeiro-ministro já tinha passado 14 dias isolado em São Bento, onde passou o Natal sozinho, por ter estado em Paris com o presidente francês, Emmanuel Macron, que testou positivo ao novo coronavírus. Ainda longe da segunda vaga, em outubro o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior também tinha testado positivo e em novembro foi a vez do ministro do Planeamento.
Os casos de governantes com testes positivos ou obrigados a isolamento profilático cresciam e Portugal, que não tinha incluído a vacinação de membros dos órgãos de soberania na primeira fase — ao contrário de outros países — resolveu avançar com esta medida.
No despacho n.º 1090-D/2021, de 26 de janeiro, o primeiro-ministro solicitou “às entidades competentes a indicação de prioridades na vacinação contra a Covid-19, relativamente às pessoas que asseguram serviços essenciais nos respetivos órgãos”. Além do Presidente da República, dos governantes, dos deputados e funcionários da Assembleia da República e de vários membros de órgãos de soberania, no despacho pode ler-se que “naturalmente” estão incluídos “os presidentes de Câmaras Municipais, tendo em conta que são os responsáveis principais da proteção civil”.
Por parte dos responsáveis pelo pelo plano de vacinação nunca houve dúvidas de que os autarcas passaram a ser prioritários com o despacho do primeiro-ministro. No início de fevereiro, Francisco Ramos, à data coordenador da task force, disse ao Observador não existir um modelo específico para a vacinação dos presidentes de câmara e realçou não haveria uma abordagem particular. “Vão ter de ir com as outras pessoas, não há uma forma de vacinação específica para os presidentes de câmara“, disse Francisco Ramos, que na altura rejeitou também a possibilidade de deslocação de profissionais de saúde às instalações das autarquias para administrar a vacina.
Dois meses depois, novamente ao Observador, a task force responsável pelo plano de vacinação explica então que delegou a tarefa nas Autoridades Regionais de Saúde (ARS) e que, do que tinham conhecimento, todos os autarcas que quiseram foram vacinados.
A polémica que antecedeu as recusas
“Não vou passar à frente de ninguém”, “prefiro dar a minha vez a quem realmente precisa”, “há pessoas que precisam mais e ainda não foram vacinadas”. As justificações repetem-se em muitas das conversas com presidentes de câmara que recusaram a vacinação prioritária e resolveram ser incluídos nas listas ditas normais. Mas porquê? Não se coloca em causa a posição de cada autarca, mas a verdade é que este tema tem dado muito que falar, principalmente devido à tomada indevida de vacinas.
O presidente de Câmara de Reguengos de Monsaraz, José Calixto, foi vacinado ainda antes de os autarcas serem considerados prioritários e justificou a toma por ser dirigente de um lar de idosos. A 1 de fevereiro já a presidente da câmara de Portimão, Isilda Gomes, tinha recebido as duas doses de vacina contra o SARS-CoV-2. A autarca garantiu que fazia parte da lista de vacinação dos profissionais que iriam trabalhar num hospital de campanha que foi erguido no recinto do Portimão Arena.
Francisco Araújo, presidente da Assembleia Municipal de Arcos de Valdevez e provedor da Santa Casa da Misericórdia local ou de Elisabete Adrião, vereadora da Câmara do Seixal e responsável pelo Núcleo Local de Inserção de Sesimbra (NLI), também fazem parte da lista.
Em Lisboa, a polémica acabou por levar à demissão do vereador da Proteção Civil da Câmara Municipal, Carlos Castro. O político e a diretora do departamento de Higiene Urbana da capital portuguesa foram vacinados com doses que sobraram dos lares de idosos de Lisboa.
Além dos autarcas, as irregularidades multiplicaram-se um pouco por todo o país, de dirigentes de lares, a funcionários da Segurança Social e do INEM. Aliás, foi uma destas questões que levou à demissão do primeiro coordenador da task force, Francisco Ramos, que admitiu que a decisão esteve ligada a “irregularidades no processo de seleção para vacinação de profissionais de saúde do Hospital da Cruz Vermelha”, do qual é presidente da comissão executiva. Entre as irregularidades detetadas terá estado a vacinação de um médico que estava de baixa há um ano e de um médico reformado.
Já a nível da Assembleia da República, também não foi um processo nada fácil. A lista de deputados prioritários para vacinação começou por ser de 50, depois passou para 35 (quando uma parte dos deputados do PSD disse que não queria) e ficou ainda mais encolhida com a recusa de vários deputados do PS. Depois de ter estoirado a polémica inicial sobre a vacinação da classe política, o ambiente na hora da vacinação foi de discrição. Primeiro o Presidente da República e o presidente da Assembleia da República, seguidos do primeiro-ministro, de alguns ministros e dos deputados que aceitaram levar a vacina.
Vacinação. Task force vai propor que políticos estejam no grupo de prioritários
O processo da vacinação de políticos foi de tal forma atribulado que até na hora de criar um grupo de trabalho para o gerir houve problemas. Apesar de ter sido anunciado por Eduardo Ferro Rodrigues, apesar de ter sido confirmado por Maria Luz Rosinha, porta-voz da conferência de líderes e apesar de a socialista Edite Estrela ter sido anunciada como coordenadora, afinal, o grupo de trabalho que devia coordenar o processo de vacinação dos deputados nunca existiu. Edite Estrela ficou com a função de garantir que existe uma linha bem definida entre o plano de vacinação da Assembleia da República e o plano nacional. Até agora, não há mais informações sobre a restante vacinação de deputados.