“Ou ignore [a questão]”. É desta forma que o Facebook, que agora se chama Meta, diz aos responsáveis para reagir a uma pergunta incómoda que lhes seja colocada. O melhor truque para vencer é estar sempre um passo à frente, e é isso que o Facebook mostra estar a tentar fazer com um guião interno a que o Observador teve acesso e que foi escrito para ajudar a defender a mudança de nome ou a evitar polémicas que envolvam a empresa. Ao todo, são 20 páginas com respostas a 73 perguntas criadas pelo Facebook que mostram a estratégia da Meta e em que pouco escapa a uma organização que teve dezenas de milhares de documentos internos revelados, luta contra querelas internas que minam a liderança de Mark Zuckerberg, o fundador e presidente executivo da empresa, e atravessa novas pressões para que o seu líder volte ao Congresso dos EUA para responder pelos alegados danos que a empresa tem causado com a proliferação de notícias falsas ou vício que as suas plataformas criam, principalmente em adolescentes.
Nas várias páginas, em inglês, prevêem-se grande parte das perguntas que podem ser feitas atualmente à empresa, desde as mais simples — “Quando é que isto [o metaverso] vai estar disponível?” —, às mais difíceis — “O vosso plano é apenas transformar a Meta no metaverso por meio de aquisições e roubando a inovação de outras empresas?”. No final, e com uma recomendação para ignorar perguntas de jornalistas, o objetivo do guião é um: convencer o público de que a Meta liderada por Mark Zuckerberg não quer criar os mesmo problemas que o Facebook levantou. Quais? Problemas como aqueles que a empresa assume no próprio guião que ainda tem de resolver: “(…) Onde traçar uma linha entre a liberdade de expressão e conteúdo ofensivo – ou como verificar a idade e ao mesmo tempo proteger a privacidade das pessoas”.
Demasiado Meta? O que é este futuro que Zuckerberg quer e como escapar
No mesmo documento, há ainda a menção a outros outros guiões que a empresa tem preparados para estes temas. “Para pontos de discussão executivos sobre os documentos que foram alvo de fuga de informação, por favor, veja aqui”, lê-se logo no início do documento, debaixo de uma secção intitulada “hot topics” (assuntos quentes). Nesta parte do documento, a empresa dá recomendações a quem tem de responder em seu nome a alguns assuntos sensíveis, ou “quentes”. O primeiro ponto diz respeito à aquisição da Within, uma startup de desporto em realidade virtual que levou a que o Facebook fosse acusado de “estar a comprar o metaverso”. A resposta? Como as outras do guião, é semelhante às que a empresa tem dado a perguntas oficiais.
Questionada sobre por que motivo a Meta recomenda que os seus responsáveis de comunicação ignorem questões, a antiga empresa chamada Facebook não respondeu. Mesmo assim, quanto à necessidade que a empresa sentiu de elaborar este documento, a Meta respondeu: “O nosso objetivo é comunicarmos de forma transparente com as partes interessadas e frequentemente usamos ferramentas, incluindo este documento de trabalho, para nos ajudar a responder com clareza às perguntas que recebemos”.
O Facebook quer comprar o metaverso? “A Meta investe fortemente na inovação”
“Porque é que a Within foi comprada?” é a primeira pergunta que surge no documento. Depois, há a resposta pré-feita da empresa: “A Meta e a Within acreditam profundamente na capacidade da realidade virtual para ajudar a promover a conexão social e comunidades colaborativas (…)”. Até aqui, e apesar de a empresa já demonstrar que está sempre um passo à frente, não há nada que não fosse esperado. Contudo, surge a segunda pergunta: “[No contexto das notícias da aquisição da Within] O vosso plano é apenas transformar a Meta no metaverso por meio de aquisições e roubando a inovação de outras empresas?”, escreve o Facebook no guião, antecipando outra possível pergunta.
O que é o metaverso de Zuckerberg?
↓ Mostrar
↑ Esconder
De acordo com a Meta, no futuro, a forma como interagimos com a tecnologia “vai ser mais imersiva”. “Quando estiver numa reunião no metaverso, vai sentir que está lá”, disse Mark Zuckerberg quando divulgou o novo nome. A sustentar esta afirmação, o líder da maior rede social do mundo aproveitou para anunciar um mercado digital no qual os criadores de conteúdos vão poder criar e vender produtos com os quais só se pode interagir com aparelhos como óculos de realidade virtual ou aumentada.
A visão do metaverso do Facebook é de tal forma ambiciosa que o executivo diz que, num futuro próximo, o trabalho remoto será feito com recurso a dispositivos de realidade aumentada. “Trabalhar de casa significa reduzir a pegada ecológica igual a menos uma viagem de avião por ano”, diz Zuckerberg.
Ao prever esta pergunta mais “quente”, a Meta de Zuckerberg também dá a resposta que deve ser adotada: “O setor de tecnologia é um dos mais dinâmicos e disruptivos da economia americana”. E continua com a sua defesa: “Para cada serviço oferecido na Meta e na nossa família de aplicações, podem encontrar-se vários outros com milhões, senão milhares de milhões de utilizadores”. A empresa refere ainda que investiu milhares de milhões de dólares “para desenvolver uma gama de novas tecnologias e infraestrutura líderes mundiais”. Porém, não se fica por aqui e deixa mais 72 perguntas para que quem tenha de defender a empresa saiba estar preparado.
É na última questão prevista dos “temas quentes” que surge uma recomendação menos transparente. “A empresa X já se chama Meta e acredita ter direitos de marca registada. Têm algum comentário?”, prevê a empresa como uma hipótese de pergunta numa alusão às notícias — como a que publicou a Forbes – sobre pessoas que alegam que têm organizações com o mesmo nome e que o Facebook não as teve em conta. Qual é a resposta que a Meta tem preparada? Apenas uma recomendação para o responsável de comunicação: “Nenhum comentário on the record [que possa ser citado], ou ignore”.
Zuckerberg e Sandberg “estão horrorizados pelos danos que o Facebook causou”
“Meta não significa X [morte] em Y [hebraico] e respostas que só se dão “se houver insistência”
No mesmo documento não há só “tópicos quentes”. As 73 questões relativas ao Metaverso debruçam-se também sobre outros temas, como “assuntos gerais”, “mudança da marca”, “o produto” ou o “modelo de negócio”. E há a previsão de perguntas mais leves que a empresa considera “quentes”, como “Meta não significa X em Y?”, numa alusão a notícias como a que publicou o The Guardian sobre a palavra “Meta” significar “morte” em hebraico. Resposta recomendada: “Encontrar um nome que se aplique globalmente sem implicações existentes em qualquer idioma é uma tarefa difícil, se não impossível — isto nunca será perfeito”.
Há outras notas peculiares. Por exemplo, na pergunta 33 — “Esta é a mesma mudança que a Google fez com a Alphabet?”) –, que tem sido feita ao Facebook ainda a mudança de nome não tinha sido anunciado, a resposta que a empresa tem preparada é a seguinte: “Como nós, a empresa da Google tinha o mesmo nome de um de seus produtos mais populares. A mudança para a Alphabet mudou isso e criou uma marca distinta para a empresa. Estamos a fazer algo semelhante com a nossa marca”. A empresa tenta ficar por aqui, mas sabe que esta resposta não é totalmente esclarecedora. Por isso, admite que sejam dados mais detalhes mas apenas numa condição, que é referida em maiúsculas no documento: “SE HOUVER INSISTÊNCIA”. Se, de facto, existir essa “insistência” por parte dos jornalistas, então os responsáveis do Facebook poderão acrescentar: “A Meta não está a ser criada com a mesma estrutura legal ou financeira da Alphabet”. E também: “É muito comum que grandes empresas, como a nossa [Meta], façam alterações na arquitetura da marca para ajudar a informar e esclarecer como alcançar as pessoas de maneira mais eficaz. Na verdade, demos início a um movimento como esse em 2019, com o lançamento da nossa marca empresarial”.
Esta nota não teria tanto impacto se o próprio Facebook não tivesse previsto no mesmo guião o tópico sensível relacionado com esta questão. Com a primeira resposta, e ao referir “semelhante”, a empresa está a associar a mudança que fez recentemente à da Google, que criou uma nova empresa-mãe, a Alphabet, em 2015, numa reestruturação. Porém, ainda a mudança de nome do Facebook não tinha sido anunciada e a alteração já era comparada à mudança de nome da tabaqueira Philip Morris — um caso que também está previsto neste guião.
No final de outubro, vários órgãos de comunicação social — impulsionados por uma notícia do Washigton Post — fizeram uma analogia entre a mudança para Meta e o caso da tabaqueira. Em 2003, a Philip Morris mudou o nome para Altria numa tentativa de proteger outras marcas que detém (como a Kraft Foods ou Miller Brewing) da imagem negativa que ganhou devido a estar associada à indústria do tabaco. Ao mudar o nome para Meta, o Facebook, que tem ganhado uma imagem negativa, afastou outras plataforma que detém, como o Instagram e o WhatsApp, de um nome que está associado a casos como a Cambridge Analytica, entre outras polémicas.
Sendo este um guião de defesa, essas perguntas e respostas também estão contempladas: “Este é o vosso momento Philip Morris?/ Como é que isso é diferente do rebranding da PM para Atria?”. “Isto é mais Alphabet do que Altria” e “a aplicação do Facebook ainda se chamará Facebook”, escreve-se em dois pontos na resposta a esta pergunta mostrando a narrativa que a empresa quer defender.
Mark [Zuckerberg] muda de função? “Não”. Outras respostas que o Facebook tem preparadas para os tópicos mais e menos sensíveis
Todas as perguntas têm tópicos ou respostas para direcionar quem representa a empresa a conseguir responder a jornalistas mantendo a mensagem que a Meta quer passar. Se possível, sempre “on background” (“como contexto”, o que impede o jornalista de atribuir a alguém específico a informação), como está no topo do documento. Algumas são mais desenvolvidas, outras têm apenas pontos. No entanto, uma questão destaca-se: “O trabalho de Mark Zuckerberg vai mudar?”. Aqui, a resposta preparada é simples e direta: “Não”. Além disso, na pergunta seguinte, quanto à possibilidade de a mudança de nome ter sido feita para proteger a empresa de “regulação antitrust“ (abusos de posição dominante no mercado), a resposta é também curta: “Não. A nossa estrutura organizacional não vai mudar”. Isto não aconteceu com a Google quando mudou de nome, por exemplo, mas isso não é aprofundado nessa resposta pré-feita.
Quanto ao resto, as respostas vão ao encontro ou são iguais àquilo que se tem lido neste último mês quanto à mudança de nome do Facebook. “Não queremos que as pessoas fiquem presas no metaverso da Apple, no metaverso Epic, no metaverso Meta ou no metaverso do Google”, refere a empresa quanto à sua visão aberta desta ideia do futuro, por exemplo. Ou, noutra resposta a uma pergunta que prevê: “O nome Meta mostra para onde a nossa empresa está a ir e o futuro que queremos ajudar a construir”.
Mesmo assim, as respostas preparadas não respondem a todas as perguntas que o guião do Facebook tem planeadas. Na pergunta 49, por exemplo, na secção “privacidade” (que tem apenas duas perguntas pré-feitas), surge a questão que a Meta sabe que vai continuar a ser feita: “O metaverso não é apenas a última maneira de a Meta adquirir dados [pessoais]?”. Na resposta que a empresa tem planeada, refere como quer ser “transparente relativamente a dados” e o que vai fazer com eles. Depois, usando os óculos com câmara integrada que lançou em conjunto com a Ray-Ban para exemplificar que as pessoas sabem “quando uma gravação está a acontecer”, diz que o “controlo” dos dados é das pessoas. O problema é que, neste caso, não tem sido bem assim.
Como avançaram vários órgãos de comunicação social que experimentaram estes óculos, desde internacionais, como o Engadget, a nacionais, como a SIC Notícias, no programa “Futuro Hoje”, não é claro para toda gente que vê alguém com estes óculos que há uma câmara embutida que pode estar a gravar o que vê. Mesmo assim, o Facebook utiliza este produto como exemplo de que tem como objetivo proteger a privacidade das pessoas.
As fugas de informação do Facebook e a informação “on background“
Frances Haugen, que trabalhou no Facebook e é a mais recente denunciante da empresa, tornou-se no último mês a cara das fugas de informação que têm assombrado a organização liderada por Mark Zuckerberg. Ainda esta terça-feira, a empresa foi acusada de continuar a direcionar publicidade para adolescentes, como avançou o TechCrunch — Na base da notícia está um estudo de uma associação australiana que teve acesso a essa informação. A Meta (Facebook), porém, nega a história.
Facebook “pôs lucros astronómicos à frente das pessoas”. A audiência da denunciante no Congresso
Há duas semanas, em Lisboa, na Web Summit, foi Haugen que subiu a palco para, mais uma vez, acusar o Facebook de não estar a fazer o suficiente para mudar, o que leva a que sejam revelados mais documentos como os que deu a conhecer. Apesar de ter aparecido por videoconferência, logo no dia seguinte e no mesmo palco, Nick Clegg, vice-presidente para assuntos Globais da Meta, disse que a empresa tem feito “um progresso significativo” para controlar estas fugas de informação.
O documento mostra também que a atual diretriz da empresa é que informação seja facultada “on background“. “Compartilhe as respostas com a imprensa sem ser citado e indique materiais públicos sempre que possível”. Este termo — que significa algo como “sem ser citado diretamente”, permite, por exemplo, atribuir informações a empresas. Porém, tem criado algumas confusões.
Na semana passada, o The Verge, um dos mais conhecidos jornais online de tecnologia e que divulgou vários histórias que expuseram o Facebook (ainda na terça-feira publicou um que mostra que a empresa está a aumentar o secretismo), anunciou que ia mudar a sua política em relação a informações “on background“. De acordo com este órgão de comunicação social, esta forma de comunicação tem sido utilizada extensivamente evitando que os leitores “recebam fontes claras de informação”, explica o mesmo site.
Mesmo assim, no mesmo documento há a nota para que se “insista [push] para as fontes existentes”, como materiais publicados nos canais oficiais da empresa. Além disso, é deixada a ressalva para qu,e se “for necessário” citar algum material “on the record” (em que se pode ser citado), não há problema”. No entanto, ao insistir na questão “on background” — que se tem tornado uma prática quase uniforme na comunicação de empresas tecnológicas –, levanta estas questões sobre poder-se conseguir fontes claras de informação para os leitores.