Em teoria, a esquerda tem um plano na cabeça: aproveitar o fim do ciclo de Marcelo Rebelo de Sousa para voltar a Belém. O objetivo de acabar com o jejum presidencial foi assumido por Pedro Nuno Santos e é acompanhado por Bloco de Esquerda e Livre, que se mostram disponíveis para apoiar um candidato comum. Problema: os protocandidatos socialistas que circulam provocam hesitações no resto da esquerda e, com nomes como Augusto Santos Silva e Mário Centeno em cima da mesa, o Bloco de Esquerda já assegura que nesse caso se excluirá da equação – uma ameaça que, para o PS, vai acabar com os partidos vizinhos a ceder e a “engolir um sapo”.
A desejada harmonia à esquerda neste teste eleitoral fica, assim, em risco. No Bloco de Esquerda, a garantia é taxativa: “Nem Santos Silva, nem Mário Centeno”, asseguram várias vozes no partido. As reservas quanto aos dois nomes que são neste momento mais mencionados no PS – com o nome de Mário Centeno a ganhar gás junto de dirigentes socialistas de topo – não são novas e, garante-se no partido, não vão esmorecer.
Nem o surpreendente convite do Bloco de Esquerda para que Santos Silva participe na sua rentrée – o ex-presidente da Assembleia da República vai participar no Fórum Socialismo, no final do mês, para falar sobre o “combate” à extrema-direita – se traduz num sinal de apoio para as presidenciais, assegura-se no partido. “Nunca apoiaríamos Santos Silva para Belém”, garante fonte bloquista. Uma coisa é a vontade de mostrar que o evento é plural e acolhe vozes de toda a esquerda, incluindo a de Santos Silva, que enquanto presidente da Assembleia entrou várias vezes em confronto com o partido de André Ventura; outra seria apoiar um candidato que não é associado à ala esquerda do PS e com quem os bloquistas não se identificam.
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Quanto a Mário Centeno, figura que vai ganhando força nos bastidores socialistas, idem aspas: entre os partidos mais à esquerda garante-se que é impossível apoiar um possível candidato que é visto como o pai das contas certas e das cativações que tantos embates criaram entre os parceiros de geringonça. Centeno foi acusado inúmeras vezes pela esquerda de praticar uma espécie de austeridade escondida, pelo que é agora rejeitado como hipótese entre os bloquistas.
António Vitorino, senador socialista cujo nome também tem circulado como hipótese — embora haja dúvidas dentro do partido sobre a sua eventual popularidade numa corrida a Belém — começou este mês a presidir ao novo Conselho Nacional para as Migrações e Asilo a convite do Governo de Luís Montenegro (um dado que afasta os bloquistas de um eventual apoio a uma candidatura). Este mês, não respondia diretamente à pergunta sobre uma possível candidatura a Belém, constatando: “Temos muito tempo”.
Vitorino, que já foi o favorito de Costa para Belém, não entusiasma PS
Ainda assim, quem tem mais força nesta equação é, naturalmente, o PS, e entre as hostes socialistas o problema é desvalorizado e caracterizado como uma espécie de bluff da parte dos antigos parceiros. Por um motivo simples: entre dirigentes socialistas existe a forte convicção de que, entre um candidato da área da direita e um perfil socialista, ainda que identificado mais com o centro do que com a esquerda, os outros partidos terão de “engolir o sapo” – como em 1986 Álvaro Cunhal pedia aos comunistas para fazerem, votando em Mário Soares na segunda volta das eleições presidenciais em que enfrentou Freitas do Amaral. Se fosse preciso, deveriam tapar os olhos no momento de marcar a cruzinha no boletim, dizia então o líder comunista.
Desta vez, os socialistas confiam que o cenário pode ser semelhante, parecendo estar a contar com uma corrida renhida e que acabe em segunda volta. “Não há nenhum problema com o resto da esquerda. O candidato apoiado pelo PS, passando a segunda volta, terá o apoio de toda a esquerda”, vaticina um dirigente socialista. Outro alto quadro do PS reforça: “Ambos [Mário Centeno ou Augusto Santos Silva], nem que seja à segunda volta, teriam esse apoio”.
Ou seja: o PS até admite que numa primeira volta há outros partidos à esquerda que podem recusar-se a alinhar numa candidatura comum e avançar com nomes próprios ou com um candidato alternativo, mas está confiante em que, se desta vez houver uma segunda volta, a esquerda voltaria a unir-se para o objetivo final: impedir que Belém volte a receber um candidato de direita.
Livre quer saber se Ana Gomes ou Sampaio da Nóvoa estão na corrida
No caso do Livre, que tem defendido abertamente que a esquerda se una em torno de um candidato – até porque se tem estado fora de Belém nos últimos 20 anos, nos consulados de Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, também é porque “não se tem organizado como devia”, como já defendeu a dirigente Isabel Mendes Lopes – a porta não fica fechada, mas há avisos a fazer.
Ao Observador, reconhecendo que tomar já uma decisão sobre candidatos presidenciais será “prematuro”, o porta-voz do Livre Rui Tavares frisa que tudo dependerá das pessoas que se “apresentarem” a estas eleições – uma vez que formalmente esta é uma eleição unipessoal, que não depende de partidos – e do que “disserem do seu entendimento das funções presidenciais”. Mas há outras condicionantes: “Depende de candidatos que já apoiámos quererem ser candidatos de novo – temos esse respeito e deferência com quem trabalhámos muito bem em eleições passadas” – e de que haja ou não figuras do Livre que queiram abraçar este desafio.
É o próprio Rui Tavares que recorda que, apesar de não ser uma regra escrita nos estatutos do Livre, até agora o partido optou por decidir, depois de falar com os “candidatos da área progressista e da ecologia com quem sente mais afinidade”, estes apoios através de um referendo interno – foi o que fez nos casos de António Sampaio da Nóvoa e Ana Gomes, ambos candidatos da área socialista que não tiveram o apoio oficial do PS e que o Livre acompanhou. Coisa que, a julgar pelas declarações de Rui Tavares, voltaria a fazer se estes quisessem voltar a tentar uma corrida a Belém, mesmo sem apoio do PS.
Ainda na última campanha legislativa Sampaio da Nóvoa fez, de resto, questão de correr as campanhas dos partidos mais à esquerda, enquanto traçava em declarações aos jornalistas as características que definiriam um bom Presidente da República.
Sampaio da Nóvoa corre campanhas da esquerda. Presidenciais em mente?
Rui Tavares faz o mesmo, revelando que nos encontros com os restantes partidos da esquerda que marcou falou no assunto, ainda que de forma “embrionária”: um candidato apoiado de forma transversal pela esquerda tem de ser “muito firme nas questões da defesa da democracia e do Estado de Direito”, uma pressão que não existia da mesma forma em eleições anteriores, e de saber lidar com uma política “mais agressiva, mais polarizada, com a emergência da extrema-direita”. “Se o Livre não ouvir uma perceção muito clara destes desafios será uma causa para desapontamento”, avisa.
PS vê potencial de votos mais à direita em Centeno
Por agora, a altura é de testes e avaliações. No caso de Centeno, um nome cada vez mais mencionado nos bastidores socialistas, há uma possível vantagem que é tida em conta para ajudar a compensar o desagrado mais à esquerda: o legado das contas certas pode ir buscar votos ao centro e à direita, tornando Centeno um candidato com um potencial eleitoral mais transversal.
Pelo menos, são essas as contas que vão na cabeça de dirigentes do PS que leram da mesma forma que o PSD a entrevista que o governador do Banco de Portugal deu ao Expresso este verão: ao dizer que gostaria de ficar no cargo para um segundo mandato, sabendo que o Governo muito dificilmente o manteria lá, Centeno pode ter ganhado “ganhar capital de queixa” para se lançar a Belém. “Assim a direita liberta-o para Belém”, sintetiza, em modo irónico, uma fonte socialista.
O resto dos nomes que têm circulado estão em condições diferentes: António Costa acaba de ser eleito para o Conselho Europeu e sempre rejeitou liminarmente uma corrida a Belém; António Guterres é popular nas sondagens, mas é secretário-geral da ONU até 2026. Os dois nomes mais bem avaliados nos estudos de opinião colocam-se assim fora da corrida — resta saber quem conseguirá a popularidade necessária para voltar a desafiar a direita na corrida a Belém.
“Desfaçatez”. Ensaio presidencial de Centeno não comove o Governo (nem o PS)