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Os pólos são um dos principais indicadores da velocidade a que o planeta está a aquecer. Mas, ao longo dos últimos anos, as sucessivas notícias sobre o degelo no Ártico já se tornaram tão banais que é possível que nos passem despercebidas. Este ano, contudo, dos extremos norte e sul do globo terrestre chegam sinais cada vez mais preocupantes — mesmo apesar da grande redução das emissões de gases com efeito de estufa registadas na primeira metade do ano devido ao confinamento.
A norte, o degelo no pergelissolo (ou permafrost, como é conhecido em inglês, o solo permanentemente gelado que caracteriza os pólos) foi suficiente para levar ao colapso de um tanque de petróleo com problemas de manutenção, causando a maior libertação de petróleo de sempre no Ártico; na Sibéria, nunca se tinham registado temperaturas tão altas como este ano — regiões onde habitualmente estão zero graus chegaram aos 30ºC —; e os estudos mais recentes mostram que, a manter-se a tendência atual, os ursos polares estarão extintos antes do final deste século.
Às preocupações com o pólo Norte estão a juntar-se as com o pólo Sul, que é muito mais frio e consistente. Da Antártida, chegam as imagens mais nítidas de sempre que mostram ao detalhe a forma como o continente gelado está a derreter. Nos mares da Antártida, o aumento das temperaturas está, inclusivamente, a provocar a libertação para a atmosfera de crescentes quantidades de metano armazenado no solo submarino, um gás com potencial para acelerar ainda mais o aquecimento da região.
Os círculos polares Ártico e Antártico são as duas regiões mais frias do planeta — e a velocidade a que o gelo que os cobre vai derretendo é o indicador mais visível do aquecimento global. Quase sempre com temperaturas perto ou abaixo dos zero graus, os pólos desenvolveram outras características únicas no mundo: o solo, permanentemente gelado, guarda milénios de história geológica que pode começar a vir ao de cima, com consequências potencialmente devastadoras (por exemplo, com a libertação de bactérias e vírus há muito considerados erradicados da face da Terra).
“Este está a ser um ano particularmente preocupante, que vem na sequência de vários anos preocupantes”, diz ao Observador o investigador Gonçalo Vieira, coordenador do Programa Polar Português. “A Sibéria, onde estão acontecer, como no ano passado, vagas de calor muito extremas que dão origem a grandes incêndios, é particularmente preocupante. Mas também na Antártida houve um verão com temperaturas muito altas. Eu estava lá em fevereiro e nunca tinha visto nada assim. Chegou a haver temperaturas entre os 9 e os 13ºC, quando habitualmente seriam de 2 ou 3ºC. Deixa-nos muito preocupados.”
Sibéria em chamas — e o problema do solo gelado
Verkhoyansk é considerado o lugar mais frio do mundo. Este ano, porém, registou temperaturas recorde no sentido oposto. A pequena vila fica na Sibéria, enorme região da Rússia que tem a sua parte norte dentro do Círculo Polar Ártico, e fixou o recorde negativo em fevereiro de 1892. Nesse mês, as temperaturas chegaram aos -67,7ºC. Em junho deste ano, os termómetros em Verkhoyansk atingiram os 38ºC — uma situação completamente anómala: os máximos anteriores estavam em torno dos 30ºC, mas em julho, e não em junho.
Pico de calor na Sibéria. Um dos lugares mais frios do planeta atingiu 38 graus
Mas as temperaturas em Verkhoyansk são apenas o sintoma de um problema muito maior: uma vaga de calor sem precedentes que atingiu praticamente todo o território siberiano (e, por isso, uma grande parte da região polar do Ártico). Várias cidades russas daquela região atingiram temperaturas acima dos 30ºC, e a onda de calor já era evidente em maio, mês durante o qual a média de temperaturas já estava 10 graus acima da média dos anos anteriores.
De acordo com o climatologista dinamarquês Martin Stendel, se não fossem as alterações climáticas, este tipo de temperaturas naquela região da Sibéria verificar-se-iam uma vez a cada 100 mil anos. As temperaturas anormalmente elevadas registadas na Sibéria deverão contribuir para que 2020 seja, oficialmente, o ano mais quente de sempre desde que há registos.
A onda de calor deu origem a uma onda de incêndios sem precedentes. Desde o início do verão já foram registados centenas de incêndios por toda a região da Sibéria, incluindo nas partes mais a norte, já dentro do círculo polar ártico. Além dos óbvios desafios colocados por um incêndio, um dos principais problemas do fogo em regiões que, em teoria, estariam demasiado geladas para arder é a tendência de aceleração do aquecimento. Atualmente, alerta o investigador Gonçalo Vieira, “a taxa de aquecimento no Ártico é duas vezes a média global”.
É aqui que é preciso recorrer ao conceito de “retroação positiva”, sublinha o cientista polar português: quanto maior for o aquecimento, mais rápido vai ser o aquecimento. Não é preciso sair da Sibéria para encontrar um dos exemplos mais flagrantes.
Em maio deste ano, o Presidente russo, Vladimir Putin, teve de decretar o estado de emergência numa região do norte da Sibéria depois de um tanque de combustível numa central de energia ter colapsado e despejado mais de 20 mil toneladas de gasóleo no rio Ambarnaya, junto à cidade siberiana de Norilsk. O desastre ambiental — um dos maiores da história recente na Rússia — tornou-se polémico pelo descartar de responsabilidades por parte da Norilsk Nickel, a empresa responsável pela fábrica (onde são produzidos platina e níquel), que argumentou que se tratou de um acidente provocado pelo colapso do solo.
Por outro lado, Vladimir Putin culpou publicamente a empresa pelo desastre — por não ter assegurado a manutenção atempada dos tanques e a análise do solo em que as fundações das instalações assentam. “Se os tivessem substituído a tempo, não teria havido o dano ambiental e a vossa empresa não teria de suportar estes custos tão elevados”, disse Putin em junho. As tentativas de conter o combustível foram relativamente mal sucedidas e o produto acabou por seguir caminho pelo rio até ao Oceano Ártico. O Governo russo já estimou que a recuperação integral dos ecossistemas locais possa demorar até dez anos.
Mas é preciso recuar e fazer a pergunta: porque é que o solo colapsou? Segundo Gonçalo Vieira — que além de coordenar o Programa Polar Português é também o vice-presidente da Associação Internacional de Permafrost —, cerca de 20% das regiões continentais do hemisfério Norte (nomeadamente o Ártico e o Subártico) têm a presença deste tipo de solo, assim designado por estar permanentemente gelado: ou seja, sempre a temperaturas abaixo dos zero graus.
“Se for a muitas regiões do Ártico durante o verão, o que vai ver é rocha, vegetação, até floresta. Há uma camada superficial que congela e descongela com as estações do ano. Mas, por baixo dessa camada, há o solo permanentemente gelado”, explica Gonçalo Vieira. “Este solo tem matéria orgânica congelada das últimas dezenas ou centenas de milhares de anos, que foram ficando congeladas e nunca se decompuseram.”
Agora, o aumento da temperatura no Ártico está a fazer com que essa camada comece, pela primeira vez, a descongelar — e as consequências podem ser catastróficas. “Imagine que vai mandando erva para o frigorífico até o encher e a erva fica lá durante muito tempo. Se faltar a energia ao frigorífico, vai sentir um enorme cheiro a podre, da decomposição da erva. Esse cheiro são gases da decomposição”, exemplifica o investigador.
É precisamente o que está a começar com o permafrost. “Há uma enorme área de solo permanentemente gelado, que ocupa grande parte da Sibéria, Alasca, Canadá, Escandinávia, que é rico em matéria orgânica. Se for pobre em matéria orgânica, ou seja, se forem essencialmente minerais, não tem um grande impacto climático. Mas, se for rico em matéria orgânica, ou seja, se o solo tiver milénios de cadáveres de animais e plantas congeladas, então a sua decomposição vai libertar gases. Esses gases são sobretudo o metano e o dióxido de carbono, que são gases de efeito de estufa”, sublinha Gonçalo Vieira.
Os gases de efeito de estufa contribuem para o aumento da temperatura atmosférica, que levam a um maior degelo do permafrost e consequente libertação de mais gases de efeito de estufa. É a este processo que se alimenta a si próprio que se chama uma retroação positiva: o fenómeno tem como efeito acelerar o próprio fenómeno. “É uma espiral”, diz o coordenador do Programa Polar Português.
Enquanto se mantiver no seu estado habitual — ou seja, permanentemente gelado —, o permafrost “comporta-se como rocha”, quando a uma temperatura superior seria “como lama”, explica Gonçalo Vieira. Contudo, “se houver um verão muito quente, com temperaturas muito elevadas, a camada que funde pode ser muito maior do que a que habitualmente descongelaria”. Isto significa que partes do solo que se considerou que não iriam derreter podem efetivamente fundir. Se nesse solo estiverem assentes as fundações de infraestruturas, pode haver problemas graves como o que aconteceu este ano no norte da Rússia.
“A questão das infraestruturas é um problema de há décadas. Há até uma engenharia específica para construir em permafrost. Mas quando há um degelo assim, como neste verão anómalo… Há cidades sobre permafrost em que há colapsos de edifícios em verões muito quentes”, lembra Gonçalo Vieira.
Mas da fusão do permafrost não podem surgir apenas gases de efeito de estufa. Há riscos muito imediatos para a saúde humana. “Em muitas destas áreas existe vegetação antiga que vai morrendo e restos de cadáveres de animais, que vão ficando enterrados e tudo cresce por cima”, sublinha o investigador. “Não vemos muito isto em Portugal porque existe decomposição e erosão. Mas em regiões mais frias, onde não existe a decomposição e há pouca erosão, os restos de seres vivos podem ficar congelados durante centenas de milhares de anos.”
“Há vírus e bactérias que estão congelados e sabe-se que alguns podem ser viáveis se o solo descongelar”, destaca Gonçalo Vieira. “Mas não ficam viáveis durante muito tempo às condições ambiente, se não encontrarem um hospedeiro. Por isso, só serão uma ameaça se infetarem logo alguém.”
Há doenças presas no gelo permanente do Ártico que podem escapar com o aquecimento global
Um dos exemplos mais notáveis foi o surto de antraz numa pequena vila da Sibéria em 2016. A bactéria responsável pela doença tinha estado ativa pela última vez em 1941, num surto que ficou conhecido como a “peste siberiana”, mas ficou durante décadas preservada em cadáveres (muitos de renas) enterrados no permafrost. Em 2016, a fusão do solo permanentemente gelado fez com que a bactéria tornasse a infetar renas que viviam na região — e a doença disseminou-se rapidamente para os seres humanos. Várias dezenas de pessoas foram infetadas e uma criança morreu. Milhares de renas morreram ou tiveram de ser abatidas para conter a disseminação do surto.
Por outro lado, a preservação de doenças no permafrost já se revelou muito útil para a ciência: foi graças à preservação de um cadáver infetado numa pequena vila do Alasca que, em 2005, um grupo de cientistas conseguiu reconstituir o vírus da gripe espanhola, que matou mais de 20 milhões de pessoas em 1918, de modo a perceber a sua origem e, mais importante, a desenvolver uma vacina capaz de impedir a repetição de surtos daquela estirpe do vírus.
Preocupações também no pólo Sul
Embora um ponto de vista leigo possa olhar os dois pólos do planeta como lugares semelhantes — extremos muito frios —, a verdade é que o pólo Norte e o pólo Sul são muito diferentes, observa Gonçalo Vieira: “O Ártico é um oceano gelado rodeado por continentes, com duas portas de entrada: uma no Atlântico norte, entre a Gronelândia e a Escandinávia, e outra no Pacífico, no estreito de Bering, entre o Alasca e a Rússia. No inverno está gelado, no verão a área gelada é mais pequena. Por outro lado, a Antártida é um continente com 14 milhões de quilómetros quadrados, maior que a Europa, que está coberto de gelo e rodeado por mar”.
Os dois pólos, completamente diferentes, “funcionam como uma espécie de refrigeradores da Terra”, possibilitando grandes trocas de massas de água entre as regiões polares e as latitudes mais próximas do equador — regulando as temperaturas dos oceanos em todo o mundo. Durante as últimas décadas, as alterações climáticas têm afetado de um modo muito particular as regiões polares. As atenções, porém, têm-se focado quase exclusivamente no pólo Norte.
Não é por acaso: a região gelada do Ártico tem camadas de gelo com alguns metros de espessura, enquanto a camada de gelo que cobre o continente da Antártida pode ter mais de três quilómetros. Isto significa que a Antártida tem uma altitude maior e que é muito mais fria: a mesma temperatura significa o desaparecimento de uma área muito maior de superfície gelada no Ártico do que na Antártida.
Porém, também o pólo Sul começa a enviar sinais preocupantes. Em fevereiro deste ano, um grupo de cientistas brasileiros registou a temperatura mais alta alguma vez verificada no continente gelado: 20,75ºC. Embora a medição tenha de ser olhada com cautela, uma vez que não representa todo o território do continente nem é alheia a fenómenos meteorológicos específicos, uma coisa é certa: o recorde consolida a tendência de aquecimento que se tem vindo a verificar na Antártida. Ao longo dos últimos 30 anos, o pólo Sul aqueceu ainda mais rapidamente do que o Norte: três vezes mais rápido do que a média global.
Outra das retroações positivas que se registam nos dois pólos está relacionada com o albedo: a capacidade dos materiais para refletirem a luz solar, com base na brancura. A neve e o gelo, por serem muito brancos, refletem muito a luz solar. Materiais menos brancos, como a água e vários tipos de solo, têm menos capacidade de reflexão da luz solar, absorvendo-a. Com a redução do mar gelado e com os glaciares a perder massa, há cada vez menos área de gelo e neve. O albedo deixa de ser tão elevado, mais energia é absorvida pelos oceanos e pela terra e isso faz com que os oceanos e os continentes aqueçam mais: novamente, um fenómeno em espiral.
“Os principais problemas estão relacionados com o Oceano Austral e as interações entre oceanos e glaciares. Até há uns anos, achava-se que a Antártida ia reagir lentamente às alterações climáticas, mas está a observar-se que a velocidade a que está a ser drenado o manto antártico é muito maior. O contributo da Antártida para a subida do nível do mar é muito maior do que se achava”, diz Gonçalo Vieira.
Uma outra preocupação a sul relaciona-se com um fenómeno semelhante à fusão do permafrost no Ártico, mas debaixo de água, no oceano que circunda o continente gelado.
Segundo o investigador Gonçalo Vieira, apesar de a maioria do permafrost estar em terra, existem partes deste solo permanentemente gelado no fundo do oceano em torno do continente antártico. “Este permafrost submarino é uma fonte de metano”, por ser rico em matéria orgânica, sublinha o cientista. Recentemente, foi descoberto o primeiro episódio de libertação de metano a partir do fundo do mar no Oceano Austral, o que significa que o fenómeno de fusão do permafrost já está a ser verificado também no pólo Sul.
“Isto ainda não está a ser incluído nos modelos climáticos”, diz Gonçalo Vieira, avisando que não está a ser prestada atenção suficiente aos fenómenos do pólo Sul. “O oceano Antártico é muito importante para refrigeração de todos os oceanos do mundo. Se formos buscar água ao fundo do Atlântico junto à costa portuguesa, encontramos água da Antártida. É um grande ar-condicionado do planeta.”
O solo permanentemente gelado tem sido o principal objeto de estudo de Gonçalo Vieira, que lidera um programa polar que se debruça sobre um conjunto muito abrangente de tópicos, incluindo áreas como as dinâmicas de erosão nas regiões polares ou as questões relacionadas com a biodiversidade específica nos extremos frios da Terra (por exemplo, os processos de adaptação dos peixes às temperaturas sentidas nas águas dos pólos).
Há mais de dez anos que o Propolar — Programa Polar Português procura (embora com um financiamento curto, de cerca de 200 mil euros anuais) encontrar meios para enviar investigadores portugueses para as bases científicas no Ártico e na Antártida, uma vez que Portugal não tem nenhuma base fixa própria. Uma das formas utilizadas pelo programa português é a organização de voos antárticos nos quais viajam cientistas portugueses e estrangeiros. Este tipo de parcerias permite que os investigadores portugueses possam depois trabalhar nas bases de outros países.
Todos os anos, o Propolar lança o desafio a todos os cientistas portugueses que queiram apresentar projetos de investigação — e Gonçalo Vieira garante que os projetos são avaliados puramente com critérios científicos, e não com condicionalismos de objeto de estudo. Esse será um dos motivos para que Portugal se destaque da maioria dos países que estudam os pólos num aspeto: há mais projetos portugueses no pólo Sul do que no pólo Norte.
“Para o Ártico há muito mais financiamento, há calls específicas, há muitos interesses em jogo, por exemplo, o estabelecimento de rotas marítimas comerciais através do Ártico”, explica o investigador. “No programa português, as calls são abertas porque o processo é baseado na qualidade científica. Não se abre uma call específica para estudar temas definidos no Ártico. Não temos uma estratégia geopolítica, apenas científica.”