Ariel Miranda tem 31 anos, nasceu em Havana, começou a jogar basebol em Cuba, desertou em 2015 para o Haiti, rumou aos Estados Unidos para jogar nos Baltimore Orioles, passou ainda na MLB (Liga Profissional de Basebol do país) pelos Seattle Mariners, mudou-se no ano passado para os japoneses do Fukuoka Hawks e representa agora os Chinatrust Brothers, de Taiwan. Em condições normais, tão cedo não seria notícia (muito menos na Europa), a não ser que fizesse uma daquelas exibições once in a life time que saltasse fronteiras. Hoje, mesmo que num plano sobretudo simbólico, Ariel Miranda é o nome do momento. E teve o seu pequeno momento de glória.

A China manda mesmo na Organização Mundial de Saúde?

O esquerdino fez o primeiro lançamento e também o primeiro home run na Liga Profissional de Basebol da China, uma das primeiras competições desportivas a ser retomada depois da pandemia mesmo com bancadas vazias no Taichung Intercontinental Baseball Stadium. “A adrenalina do jogo é diferente, sentes-te sozinho. É algo muito estranho mas foi o passo que teve de ser dado e da nossa parte devemos fazer os reajustes e trabalhar assim. Só quero que tudo isto passe para trazer a minha família”, comentou o jogador ao Los Angeles Times, falando de um recinto “decorado” com a fotografia de várias adeptos em cartão para dar outro colorido às bancadas.

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“É óbvio que sentimos falta dos espetadores mas isto só acontece porque fizemos um trabalho muito bom a nível de prevenção e combate à pandemia”, referiu à CNN Richard Wang, responsável pela transmissão televisiva do jogo que explicou ainda as “novidades” criadas para minimizar essa ausência de público. “Os jogos costumam ter muito barulho mas ainda temos música e robôs que tocam tambores. O clube arranjou essas figuras dos robôs para irem tocando tambores, algo que nunca tinha visto. Foi divertido!”, acrescentou. O próprio canal encontrou um slogan mais light para promover os jogos: “Não estejas triste… vê o basebol profissional de Taiwan!”.

Entre os milhões que assistiram ao jogo pela TV, houve uma espetadora especial. Muito especial: Tsai Ing-wen, a presidente da ilha com cerca de 24 milhões de pessoas que está politicamente separada da China há sete décadas apesar das ligações fortes no plano económico e que só é considerada como país independente por um grupo de Estados, que já antes colocara imagens na sua página do Facebook com o gato a ver basebol em casa. Uma líder que, no contexto Covid-19, ganhou outro protagonismo em termos internacionais pelo combate à pandemia.

“Taiwan é uma ilha de resiliência. Foram séculos de dificuldades que obrigaram a nossa sociedade a lidar, a adaptar-se e a saber sobreviver a circunstâncias difíceis. Descobrimos maneiras de nos preservarmos juntos em tempos difíceis juntos como nação e a pandemia da Covid-19 não foi diferente. Apesar da grande natureza infecciosa deste vírus e da nossa proximidade à sua fonte, conseguimos prevenir uma grande propagação. A 14 de abril, tivemos menos de 400 casos confirmados [número que ainda hoje se mantém, 395, com seis mortes”, começou por destacar Tsai Ing-wen num artigo de opinião escrito para a revista Time.

“Este sucesso não é uma coincidência mas sim uma combinação de esforços entre profissionais médicos, governo, setor privado e sociedade para defender o nosso país. As duras lições da SARS em 2003 deixaram-nos em alerta mais cedo. Em dezembro, quando surgiram indicações de uma nova doença respiratória contagiosa, começámos a monitorizar quem chegava de Wuhan. Em janeiro, tomámos medidas preventivas, desde restrições nas viagens aos protocolos de quarentena. A partir do primeiro caso, dia 21 de janeiro, fizemos uma investigação rigososa para haver um tracking histórico de todos os infetados e evitámos a sua propagação”, prosseguiu.

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“O setor privado, os franchises e os apartamentos das comunidades passaram a fazer controlos de temperatura, enquanto o governo fez um esforço para que todos os passes de desinfeção fossem tomados”, acrescentou, entre mais exemplos práticos daquilo que denomina de “Team Taiwan” (o trabalho conjunto feito pelo setor público e privado no combate à pandemia da Covid-19) como a produção e distribuição de máscaras cirúrgicas e de proteção, acessíveis em termos logísticos e financeiros a todos – e que permitiu ajudar países mais afetados em rutura de stock –, a qualidade do Sistema Nacional de Saúde ou os dados transparentes que são passados. Um exemplo prático: aquelas imagens que circulam hoje na internet com acrílicos que separam mesas já se tornaram parte do quotidiano dos estudantes universitários, que têm essa mesma barreira nas cantinas.

Taiwan conseguiu controlar a propagação do vírus no seu território, tendo menos de 400 casos do novo coronavírus (Foto: Getty Images)

Sem recurso a medidas draconianas como em tantos outros pontos do mundo, Taiwan conseguiu tornar-se num dos melhores exemplos no combate à pandemia e Tsai Ing-wen ascendeu a líder-tipo na gestão da Covid-19. Tudo por ter encontrado soluções. Mas essas soluções também se podem vir a tornar problemas.

Como dizia a BBC ainda no final de Março, Taiwan tornou-se uma questão incómoda para a Organização Mundial de Saúde (OMS), que não integra (por não pertencer às Nações Unidas) e onde nem sequer está como observador, como já aconteceu, e acusou mesmo a OMS de não ter partilhado o alerta que fizera para a existência prova de transmissão do vírus entre pessoas que atrasou a reação dos restantes países àquilo que começou como um surto e que se tornaria uma pandemia. “A OMS não teve informações em primeira mão para estudar e avaliar se houve transmissão de humano para humano do Covid-19, anunciou a transmissão entre pessoas com um atraso e perdeu-se uma oportunidade de aumentar o nível de alerta, na China e no mundo”, comentou Chen Chien-jen, vice-presidente de Taiwan e também epidemiologista, em declarações ao Financial Times.

Os avanços de Taiwan no sistema digital de cuidados de saúde

Antes, Joanne Ou, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan, já tinha pedido à OMS, numa entrevista à Reuters, para “rever ou melhorar as restrições irracionais com base em questões políticas”. Aí, havia apenas a informação de um email enviado à OMS, em dezembro, para ter em consideração o que se estava a passar na China, facto rebatido pela organização da ONU dizendo que a tal mensagem referia que não parecia ser SARS mas que não apontava em nenhuma parte a possibilidade de transmissão de humano para humano, algo que as autoridades de Taiwan dizem que seria impossível tendo em conta que não havia casos no seu território. Mas o que dizia então o email, citado pela Fox News? O próprio Ministério da Saúde colocou-o no Twitter.

“Novas informações de hoje [31 de dezembro de 2019] indicam que foram reportados pelo menos sete casos de pneumonia atípica em Wuhan, na China. As suas autoridades de saúde disseram aos media que acreditavam não se tratarem de casos de SARS; no entanto, as amostras estão ainda em investigação e os casos foram isolados para fazerem tratamento.

Gostávamos de saber se têm informação relevante que possam partilhar connosco.

Obrigado desde já pela atenção em relação a este assunto.”

Tedros Adhanom Ghebreyesus, líder da OMS, chegou a acusar Taiwan de “motivar” ataques racistas durante dois ou três meses à sua pessoa com as insinuações de que a organização poderia ter agido mais cedo e evitado de certa forma o nível de pandemia mundial a que se chegou. Ing-wen respondeu de forma célere: “Taiwan sempre foi o oposto de todas as formas de discriminação. Durante anos fomos excluídos das organizações internacionais e sabemos melhor do que ninguém o que se sente por sermos discriminados e exilados”. Esta guerra, entretanto, ganhou dimensões na “Diplomacia das Máscaras”, como o FP descreveu, com Trump a aproveitar a denúncia de Taiwan para cortar o financiamento à OMS e a China a deixar sinais de que não se revê nas críticas feitas.

Polémicas diplomáticas à parte, Taiwan está e ficará como um dos melhores exemplos no combate à pandemia (e sem ter de utilizar medidas mais agressivas a nível de confinamento), sobretudo com quatro lições que deixa ao mundo, como resumiu a CNN: estar preparado; ser rápido; testar, fazer tracking e quarentena; estudar os dados e adaptar os mesmos à tecnologia. E foi também à boleia desse sucesso que Tsai Ing-Wen assumiu um cada vez maior protagonismo que lhe permitiu por exemplo passar a barreira de um milhão de seguidores no Twitter. Até porque esta quinta-feira, segundo o Taiwan News, foi anunciado que o Instituto de Pesquisas Tecnológicas desenvolveu um kit que permite fazer testes e saber resultados com 90% de fiabilidade e menos de uma hora.

A primeira mulher a liderar Taiwan foi reeleita em janeiro para o cargo quando já se registavam 41 casos em Wuhan (Foto: Getty Images)

Como destaca o El Mundo, na noite de 12 de janeiro em que Tsai Ing-wen, advogada de 63 anos, revalidou o mandato, numa escolha que colocava em disputa uma proximidade maior ou não à China, já existiam 41 infetados e um morto em Wuhan por causa de uma estranha pneumonia, que se pensava então ser transmitida de animais a humanos. Filha mais nova entre 11 irmãos de um pai que geria uma oficina de automóveis, estudou Direito na Universidade de Direito de Taiwan, tirou o mestrado na Universidade de Direito de Cornell, nos Estados Unidos, e completou depois o doutoramento em 1984 na London School of Economics, em Inglaterra. Quando voltou a Taiwan, foi professora universitária, foi apontada para a Comissão de Comércio e para a Comissão de Direitos de Autor, tendo ainda feito o princípio de acordo para as relações governamentais com Hong Kong e Macau.

Líder do Partido Democrático Progressista desde 2008, quatro anos depois de ter integrado o partido, e assumida defensora da independência com a China, Tsai Ing-wen voltou também a surpreender em termos nacionais por outro dado pouco falado mas que se revelou de extrema importância para o controlo da pandemia: logo na fase inicial, encarregou a ministra do Digital, Audrey Tang, de formar uma equipa com os melhores especialistas informáticos para não só rastrear os percursos dos casos positivos mas também propiciar à comunidade um sistema em tempo real de locais a evitar ou lugares para recolha de máscaras. A isso juntou uma sobreposição entre dados dos seguros de saúde e da imigração que se juntavam a toda a análise feita e permitiam dividir a comunidade em três grupos, com informações por SMS: suspeita e confinada; de quarentena; e com via verde para circular.

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Como recordava o El Mundo aquando da reeleição da política para a presidência (a primeira mulher a liderar Taiwan), os rivais descrevem-na como “Desgraça de Taiwan” e as publicações chinesas apelidam-na de “Mulher Malvada” mas Tsai Ing-wen, a “Merkel da Ásia” ou “A Dama dos Gatos” (de nome Think Think e Ah Tsai), voltou a dar uma demonstração de força utilizando o know how do mundo ocidental que aprendeu enquanto estudava para lidar como poucos com uma pandemia que colocou o território como melhor exemplo e que até começa a regressar à vida normal no desporto, com a líder no cadeirão da sala a acompanhar pela TV.