Discurso de João Ferreira
A situação que o País enfrenta exige que a eleição do Presidente da República não passe ao lado dos portugueses, como alguns gostariam.
Logo no primeiro parágrafo, João Ferreira aponta ao PSD, mas sobretudo ao PS. O PSD não se empenha muito por achar que são favas contadas para Marcelo, mas é o primeiro-ministro e secretário-geral do PS que mais tens desvalorizado as eleições presidenciais. Tem, aliás, marginalizado o mais que pode esta corrida. Após Costa ter lançado a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa numa visita à Autoeuropa, o Partido Socialista demorou até tomar uma posição sobre o apoio a algum candidato e acabou por decidir não apoiar ninguém. Em várias entrevistas ou outras intervenções públicas, o líder socialista optou por destacar as eleições regionais dos Açores e as autárquicas como os dois escrutínios essenciais para o PS em 2021, lembrando que as eleições presidenciais não dizem diretamente respeito aos partidos. O PCP não ficou alheio à postura do primeiro-ministro e acusa o PS de querer que as eleições presidenciais “passem ao lado dos portugueses”.
“Um Presidente da República comprometido com o juramento que faz – de defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição – não pode deixar, no âmbito das suas competências e responsabilidades, de mobilizar o povo português para uma mudança de curso na vida nacional. Mobilizar o povo português para a construção de um caminho de desenvolvimento que assente: Na valorização do trabalho e dos trabalhadores; Na concretização do direito à saúde, reforçando o Serviço Nacional de Saúde; Na democratização do ensino e da cultura; no direito à habitação; Na plena utilização e modernização das forças produtivas; no controlo público, democrático, de empresas e sectores estratégicos, de acordo com o interesse coletivo; Na igualdade, que não tolera nenhuma discriminação ou violência; Na proteção da infância, da juventude, da velhice e dos cidadãos portadores de deficiência; Na coesão de todo o território nacional, sem esquecer os portugueses da diáspora; Num ambiente sadio e ecologicamente equilibrado; No aprofundamento da democracia e no fortalecimento das suas raízes na sociedade portuguesa; Na defesa da soberania e independência nacionais.”
Já no discurso de apresentação da candidatura João Ferreira tinha deixado claro que esta candidatura tinha por objetivo apresentar aos portugueses uma alternativa que com um mandato presidencial de maior influência do Presidente da República na governação, num reforço do semi-presidencialismo. Não se imiscui, até, de apresentar algumas das áreas de governação (que compete ao Governo e não ao Presidente) nas quais — no entendimento do comunista — o chefe de Estado deveria ter um papel mais ativo, numa interpretação mais lata e interventiva do magistério de influência do Presidente da República. Ao mesmo tempo, logo nesta fase do curto discurso, João Ferreira deixa a primeira de várias críticas a Marcelo, dizendo que não teve um mandato “comprometido com o juramento que fez”.
De tudo isto é feito o projeto de desenvolvimento inscrito na Constituição da República Portuguesa. Tudo isto está, de facto, inscrito nas páginas da Constituição. Nada disto pode ser letra morta nas páginas da Constituição, como alguns gostariam. Tudo isto tem de ser realidade concreta na vida do país.
Quando volta a repetir a expressão “como alguns gostariam”, João Ferreira aponta à direita — onde inclui o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa — que acusa de não cumprir aquilo que é defendido na Constituição. Não cumprir ou mesmo violar a Constituição é uma acusação recorrente do PCP aos partidos de direita, em particular ao PSD, ao CDS, aos quais junta também agora os seus “sucedâneos” (Iniciativa Liberal e Chega).
Mas estes são elementos que não tiveram acolhimento na ação do Presidente da República. Uma ação [de Marcelo Rebelo de Sousa] que contribuiu, direta e indiretamente, para degradar as condições de vida dos trabalhadores que deixou mais vulneráveis os jovens em busca da sua autonomia e realização pessoal, com a promulgação de alterações gravosas às leis laborais, sem fiscalização prévia do Tribunal Constitucional; Uma ação que contribuiu sempre para conter e nunca para promover a necessária evolução dos salários, num país em que muitos empobrecem a trabalhar; Uma ação que contribuiu para pôr em causa o Serviço Nacional de Saúde, caucionando o desvio de recursos públicos para alimentar o negócio da doença. Uma ação que, no confronto que opõe o interesse público, ou os interesses dos micro e pequenos empresários, aos interesses dos grupos económicos e financeiros, tomou sempre o partido destes últimos.
E a partir deste momento, o candidato comunista deixa um rol de críticas ao mandato do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Quase metade do discurso de João Ferreira, que não foi longo, é a atacar o atual chefe de Estado. O candidato presidencial acusa Marcelo Rebelo de Sousa de contribuir para “degradar as condições de vida dos trabalhadores” quando promulgou as alterações às leis laborais (resultado de uma coligação entre PS e PSD na anterior legislatura), de impedir o aumento dos salários e de colocar em causa o Serviço Nacional de Saúde, também aqui em prol do interesse dos grandes grupos económicos. E a crítica ao favorecimento dos grupos económicos em detrimento do interesse público e dos micro e pequenos empresários adensa-se na última frase, acusando Marcelo de escolher sempre os grupos económicos financeiros. Aqui João Ferreira quer vincar o “nós” (trabalhadores) e o “eles” (o grande capital” e diz claramente que Marcelo está do lado deles, do capital.
“Uma ação em que a preocupação com o interior abandonado só chegou depois da catástrofe, faltando-lhe outra regularidade e consequência”.
O episódio trágico dos incêndios de 2017 em Pedrógão e noutras zonas do interior do país não fica de fora das falhas que João Ferreira aponta ao mandato presidencial de Marcelo. Numa referência clara ao momento em que Marcelo Rebelo de Sousa se dirige ao interior do país para visitar as zonas afetadas, sendo que acusa o Presidente após essa fase mais difícil não ter continuado a visitar e apoiar esse interior com a “regularidade e consequência” que se exigia ao chefe de Estado. João Ferreira acusa assim Marcelo de ter chegado tarde ao interior e de ter de lá saído depressa demais.
Uma ação que, num momento crítico como o que vivemos, contribuiu para fragilizar direitos, liberdades e garantias, intrínsecos ao regime democrático, algo que a emergência sanitária não justifica.
O PCP tem-se manifestado contra todos os estados de emergência (à exceção do primeiro em que optou pela abstenção) e João Ferreira acusa aqui Marcelo Rebelo de Sousa de ser um dos pilares que ajuda o Governo e os partidos do Centrão a dar corpo a esta emergência que — no entender do PCP — contribui para fragilizar direitos, liberdades e garantias. E diz com as letras que “a emergência sanitária não justifica” todas as limitações impostas. Contra o decreto de estado de emergência — já que para o PCP, o recurso à da lei da proteção civil e ao sistema de vigilância em saúde pública seria suficiente — João Ferreira dá aqui o sinal de que — se fosse ele o Presidente — não haveria estado de emergência nesta altura. Apesar do esforço de António Filipe, na sexta-feira, na intervenção em Congresso, em demonstrar que o PCP não é “negacionista”, é responsável e leva a sério a pandemia, João Ferreira deixa claro (tal como também tinha feito António Filipe) que a luta à pandemia não passa pelo estado de emergência e pisca o olho ao eleitorado descontente com esta limitação de direitos.
Os problemas estruturais que Portugal arrasta não serão resolvidos com a política de direita que os criou, nem obviamente com as variantes demagógicas, populistas e assumidamente antidemocráticas dessa política.
Além das críticas ao candidato da direita, João Ferreira a dirigir-se também às “variantes demagógicas, populistas e assumidamente antidemocráticas”. Há um extremo oposto ao PCP na corrida presidencial — que os comunistas acusam de ser a extrema-direita, e um movimento fascizante — e João Ferreira não o ignorou no discurso frente aos delegados. Esta é uma indireta a André Ventura, candidato do Chega, partido que, a par da Iniciativa Liberal, o PCP tem classificado de “sucedâneo” ou “variante” do PSD e do CDS. Jerónimo de Sousa disse mesmo, em entrevista ao Observador, que, com o acordo nos Açores, o “Chega voltou à barriga da mãe”. Um parágrafo, foi quanto mereceu Ventura no discurso de João Ferreira.
Um povo que aclamou o Mestre de Avis, resgatou do domínio espanhol a independência nacional, derrubou uma monarquia decrépita e instaurou a República, combateu o fascismo e forjou esse tempo luminoso de Abril, e que saberá encontrar e percorrer os caminhos do desenvolvimento e do progresso, que concretizem as suas mais fundas aspirações.
Há algum tempo que o Mestre de Avis tinha desaparecido dos discursos comunistas, mas não está apagado da memória, como prova aqui João Ferreira. Álvaro Cunhal no livro “As Lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade Média” teoriza sobre a Revolução de 1383 e o apoio do povo ao Mestre de Avis, como se esta revolta fosse quase um antecedente histórico do próprio Partido Comunista séculos antes do seu aparecimento. João Ferreira, como Cunhal, lembra assim o mestre de Avis. Parte da força do PCP é a sua história e o candidato presidencial sabe isso quando relaciona este episódio histórico com a Revolução de Abril, que pôs fim a um regime que o PCP combateu durante toda a sua existência na clandestinidade.
A candidatura que assumo a Presidente da República, impulsionada por um amplo e generoso coletivo, com uma inigualável e centenária história de luta em defesa dos trabalhadores, do povo e do país, que continua a ter mais projeto que memória, (esta candidatura) mais do que necessária, é indispensável e insubstituível! A força que transporta é a força do povo, a força de uma vontade indomável, que ninguém calará, e que se ergue pela construção de um futuro melhor!
Na apresentação da candidatura João Ferreira já tinha posto de parte desistir da corrida presidencial para apoiar outro candidato e, neste discurso para dentro do partido frisa mais uma vez a importância da candidatura apelidando-a de “necessária, indispensável e insubstituível”. Portanto, se dúvidas houvesse sobre a hipótese de o PCP não apresentar um candidato às presidenciais de 2021, João Ferreira explica uma vez que faz parte do ADN do partido ter um candidato próprio. Para o PCP, a candidatura não é só a do partido, mas a candidatura que representa o povo e os trabalhadores em geral. É a candidatura do proletariado.