Imprimiu o manuscrito uma dezena de vezes, colocou-o em envelopes, onde escreveu cada morada à mão, e enviou para várias editoras em Portugal. Lá dentro estava uma primeira versão de O Livro dos Homens Sem Luz, a estreia de João Tordo, publicada em 2004.
Quando a editora da Temas e Debates lhe disse apenas que deveriam falar, fez as malas e deixou Nova Iorque, onde vivia há mais de dois anos. Regressado a Lisboa, foi jornalista, guionista e, com o terceiro romance, As Três Vidas, venceu o Prémio José Saramago. Ao mesmo tempo que se tornou um êxito editorial, teve uma crise de identidade, condicionado pelas críticas. No entanto, logo a seguir chegaram sucessos como O Luto de Elias Gro, A Noite em que o Verão Acabou, Felicidade, e inúmeras outras distinções que se juntaram a ensaios, romances e thrillers.
O Nome Que a Cidade Esqueceu (editado agora pela Companhia das Letras) é o 20.º livro e assinala os 20 anos de carreira literária. Por coincidência, marca também o regresso a Nova Iorque, onde tudo realmente começou. A história desenrola-se em 1991, quando Natasha, refugiada da Guerra Fria, arranja emprego em casa de um homem que não sai do apartamento há anos. O único requisito: ler-lhe em voz alta a lista telefónica da cidade.
Da “pancada na cabeça” que sentiu quando leu O Ano da Morte de Ricardo Reis, e que o fez despertar de novo para a paixão de escrever, ao regresso aos guiões, com Rabo de Peixe, série da Netflix, passando pelos textos que mostrava às escondidas ao professor do nono ano e pelas mulheres que o influenciaram, nesta entrevista João Tordo fala da carreira de duas décadas e, por consequência, de tudo o que o marcou ao longo dos seus 48 anos.
Escreveu este livro durante a pandemia. Estará entre os que escrevem com mais antecedência.
Sou? Tive ali anos, entre 2013 e 2016, pouco produtivos, não me lembro bem porquê. Mas, a partir dessa altura, percebi que tinha uma série de coisas em que queria trabalhar. Reduzi as viagens e comecei a concentrar-me mais no trabalho do dia a dia, que é o que gosto de fazer. Pus-me a escrever e, de repente, percebi que já estava à frente da publicação. Em 2017 vi que tinha dois livros prontos e que ainda não tinham sido publicados. Quando cheguei a 2020, tinha três ou quatro livros de avanço. Este livro, terminei-o em 2020, mas era uma versão muito rascunhada e percebi que não conseguia trabalhá-lo logo [com a editora]. Entrou a pandemia em força, vacilei um pouco e parei umas semanas. Fui trabalhando nele devagar e só entreguei uma primeira versão em janeiro deste ano.
Porque é que na pandemia houve essa dificuldade?
Aquilo foi uma interrupção da corrente da vida quase, portanto ficámos todos um pouco perplexos. Para mim, o segundo confinamento foi o pior. Foi aí que baixei os braços e disse: “Não consigo fazer nada”. Mas ao mesmo tempo também nos esquecemos depressa. No outro dia, vesti um casaco que não usava há algum tempo, meti a mão no bolso e estava lá uma daquelas máscaras brancas, reforçadas. É estranho pensar em tudo aquilo.
Ficou em Lisboa?
Fiquei entre Lisboa e o Algarve, temos lá uma casa de família. Ia lá passar algum tempo, voltava, mas também não podíamos circular.
Só daqui a algum tempo é que vamos conseguir analisar melhor tudo o que aconteceu?
Talvez, não sei bem. A minha avó morreu em dezembro com Covid-19. Foi o último dos vírus que se apoderou dela mas era indiferente porque estávamos em 2022 e o estigma da pandemia já não estava tão presente. Depressa a Covid entrou na lista das doenças que as pessoas apanham e, quando se torna uma coisa normalizada, deixa de haver o pânico e o medo.
Não podemos constantemente viver com o pânico?
Não, e acho que se fosse ordenado um novo confinamento agora, as pessoas não obedeciam.
Coincidiu que este livro, escrito nesse tempo estranho, seja o 20.º livro e o tenha levado de volta ao local onde acabou de escrever o primeiro livro, O Livro dos Homens Sem Luz. A cinta do livro diz “o autor regressa à cidade onde tudo começou”. Foi em Williamsburg, Brooklyn, que tudo começou?
Às vezes sinto necessidade de voltar a lugares que foram marcantes na minha vida, embora a Nova Iorque em que eu vivi já não exista, gentrificou-se. Na altura morava na avenida Bedford com a South Second. Era um bairro latino, muito distante da globalização que depois aconteceu aos bairros todos de Nova Iorque. Naquela parte era completamente o subúrbio, as pessoas andavam descalças e no verão de tronco nu. Eu vivia em frente a uma lavandaria onde havia negócios de droga à porta.
Como a lavandaria do livro?
Sim, era precisamente a descrição do prédio. Havia um certo lado sujo de Nova Iorque de que gostava muito e que me influenciou bastante quando comecei a escrever. Abandonei durante muitos anos, nunca mais lá fui mas, agora, de certa maneira apetecia-me voltar àquele ambiente.
Chegou a voltar àquele bairro?
Vivi lá entre 2002 e 2004, dois anos e meio. Voltei lá em 2007, em 2010 para uma residência, em 2018 para outra em New Hampshire, mas estive uns dias em Nova Iorque. É impossível não reparar na enorme diferença que 20 anos fazem. Em termos históricos não é quase nada, mas na nossa vida pessoal é muito. De repente há Instagram, redes sociais, nómadas digitais e isso mudou muito a face das cidades. Lisboa passou por isso também. No meu prédio éramos quatro ou cinco portugueses e um estrangeiro e, de repente, somos dois portugueses e quatro estrangeiros. Faz parte dos ciclos das cidades, a globalização torna o acesso a tudo muito mais fácil mas também descaracteriza o lugar, é o preço a pagar.
Como era a vida em Nova Iorque nesse início dos anos 2000?
Durante o dia ia para a universidade e à noite trabalhava num restaurante. Estive dois anos e tal no curso mas depois desisti porque não era exatamente o que queria.
O que estava a estudar?
Era Fiction Writing [escrita de ficção]. Fiz um ano e meio mas não estava a gostar, portanto depois passei lá um ano a trabalhar no restaurante e a escrever. E quando comecei a escrever percebi que finalmente tinha encontrado ali uma coisa qualquer que dava para um primeiro romance.
Escreveu-o todo lá?
Entre Londres e Nova Iorque.
Londres, onde antes tinha vivido durante quatro anos?
Sim, parei de escrevê-lo porque estava a estudar e depois retomei-o em 2002 ou 2003. Acho que tive uma aprendizagem muito lenta. Desde muito novo que lia, mais do que qualquer pessoa da minha idade, e passei horas intermináveis a imitar aquilo que lia. O Raymond Carver, o Fernando Pessoa, o [Fyodor] Dostoevsky.
Como é que se imita? É no tipo de linguagem?
Não temos ideia que estamos a imitar. Escrevi dezenas de contos em que tinha como referência o Carver e o [Anton] Chekhov. Escrevia, olhava para aquilo e pareciam aqueles tipos e eu pensava que isso era uma coisa original. Depois percebi que um dos passos para chegar a algum lado era ter uma tradição, como um músico ou um pintor. Não há ninguém que faça isto sozinho. Escreve-se com uma tradição de autores que ficaram para trás e nós somos os anõezinhos aos ombros deles. Depois, quando comecei, era quase exigido que fizesse uma coisa nova. Havia muito menos editoras em Portugal.
E menos espaço para autores novos?
Muito menos. Portanto, tinha de apresentar algo que nunca tivesse sido feito.
Como é que foi o processo para publicar o primeiro livro, O Livro dos Homens Sem Luz?
Eu não conhecia bem o meio literário português, estava fora há uns cinco ou seis anos, mas cedo compreendi que da mesma maneira que outros autores da minha geração que fizeram coisas que ninguém estava à espera — como o Gonçalo M. Tavares, que escreveu um romance com um ambiente centro europeu com personagens com nomes estranhos que nunca tínhamos visto cá, no Jerusalém; e o [José Luís] Peixoto, com o Nenhum Olhar, fez uma espécie de gótico alentejano, uma coisa nunca antes vista; a Dulce Maria Cardoso, que escreveu um livro improvável, O Retorno —, eu também tinha a exigência de fazer algo inovador. Estamos a falar da transição do milénio, de 2000 até 2000 e pouco. Então peguei numa série de referências, que não eram as de um autor português, e transportei-as para um romance. Não sabia se o que tinha ali era bom ou mau, mas sabia que era diferente e pus-me a enviar o livro para várias editoras em Portugal.
A partir de Nova Iorque?
Sim, enviei envelopes de Nova Iorque para umas dez editoras ou talvez mais. Fi-lo de forma um pouco anárquica, como seria de esperar aos 20 e poucos anos. Umas editoras nunca responderam, outras deram uma resposta negativa, o normal. Até que um dia recebi uma resposta da Rosário Pedreira, que estava na Temas e Debates, na altura uma das únicas editoras a apostar em novos autores. Já tinha publicado o Peixoto, o Valter [Hugo Mãe]. Houve um leitor, daquelas pessoas que na editora fazem a pré-seleção, que leu o meu livro e que disse: “Olha, isto é uma coisa nova”. Ao mesmo tempo, fui-me aconselhando com algumas pessoas. Havia um professor em Nova Iorque que ia vendo as minhas coisas e dizia: “Isto está bom, mas guarda. Isto tem de esperar”. E, quando ele viu aquela coisa, parecida com o que está no primeiro livro, disse: “Ah, agora tens aqui o princípio de qualquer coisa. Tudo o que fizeste até agora eu sei o que é, e isto não sei”. Essa foi a indicação. Da Rosário recebi uma resposta, não positiva, mas que dava esperança. Disse: “Olhe, acho que o seu livro precisa de algum trabalho mas gostava de falar consigo”. E nas semanas seguintes fiz as malas e voltei para Portugal.
Mesmo sem uma resposta concreta?
Eu tinha visto ainda para um ano e meio, talvez, mas sentia que já só estava a perder tempo. A minha vida era isto, não era o que estava a fazer lá. Servir às mesas não é lá muito interessante.
Nessa altura [2004] voltou e trabalhou uns tempos como jornalista?
Sim, era freelancer. Escrevi para O Independente, para a Sábado, a Notícias Magazine. Mas rapidamente percebi que não era para mim.
Porquê?
Era desorganizadíssimo, não tinha agenda e tinha medo de telefonar às pessoas e incomodá-las. Não havia WhatsApp nem mensagens, tinha de ligar. Eu sinto o telefone como um incómodo, às vezes toca e fico irritado, e eu tinha de irritar as pessoas.
E nessa altura muitas vezes para casa, para o telefone fixo.
Ainda por cima. Portanto, percebi cedo que não tinha aptidão nenhuma para aquilo. Deixei o jornalismo em 2006, 2007, e comecei a fazer traduções e a trabalhar como guionista. Fui subsistindo assim, porque os livros não vendiam, ou pelo menos não o suficiente. Acho que o meu primeiro livro vendeu 700 exemplares no primeiro ano. Às vezes tenho a sensação que não fiz o suficiente, o que é uma coisa estranha, porque quando olho para o meu percurso, não sou assim tão velho, tenho 48 anos e 20 livros. Não são pequenos, alguns têm 500, 600, 400 páginas. Penso que é extraordinário, mas às vezes continuo a olhar para mim como se isto não fosse suficiente.
Porquê?
Padeço da condição de às vezes achar que sou uma fraude, que no fundo isto tudo foi só para aquecer. O que não é verdade porque vejo a energia que tinha aos 30 anos para escrever e vejo a que tenho agora, que é metade, sei que os próximos 20 serão muito mais lentos. Vou ter mais dificuldade em escrever, mas se calhar também vou usufruir mais de cada um.
Quando fala de energia, refere-se às ideias ou ao tempo que passava a escrever?
Acordava de manhã disposto a ir logo para o computador, muitas vezes sem pequeno-almoço. Agora, se começar a escrever às 9h é uma sorte, antes era às 7h, era um frenesim um bocado obsessivo. Tenho um amigo que diz que eu sou compulsivamente criativo, com ênfase no “compulsivamente”. O que é verdade quando estou a escrever.
Como é que se desliga esse lado compulsivo de criar? Também é preciso descansar.
Desligo quando durmo.
Às vezes dormir não é sinónimo de descansar.
Sim, é verdade, às vezes acordo durante a noite e o circo continua.
É adepto do Benfica. O futebol serve para esse escape?
Sim, ver uns tipos a correr dentro de campo é hipnótico. Qualquer coisa que seja hipnótica acaba por me tirar do modo habitual de turbilhão. Gosto de ir à natação, o exercício físico ajuda. Tocar guitarra também.
Voltemos então a 2007.
Sim, trabalhei como argumentista na SP Televisão durante dois anos. As traduções não estavam a dar o suficiente e eu precisava de um emprego que me desse um salário consistente, mas também senti, como no jornalismo, que aquele caminho estava um pouco desviado do que queria fazer. Foi nessa altura que foi publicado As Três Vidas. Nesse verão lembro-me de pedir um tempo para trabalhar no livro, deixei a empresa durante dois ou três meses e fui para o Algarve acabá-lo. Voltei, estive na empresa mais uns tempos e despedi-me. Mas um bocado sem rede. Eu sabia que se ficasse mais tempo, certamente me habituava ao conforto do salário ao final do mês. Foi um salto no escuro, mas se não fosse naquela altura, não seria mais.
Uns meses depois chegou o Prémio José Saramago.
Despedi-me em dezembro de 2008 e recebi o prémio em setembro ou outubro de 2009, o que foi um grande balão de oxigénio.
De repente, as vendas dos livros dispararam mas com isso veio também a pressão do que iria escrever a seguir.
Talvez porque ele [José Saramago] também ainda estava vivo, o prémio que tinha uma enorme importância e passava a estar sob o manto dessa figura tutelar que é talvez o escritor português mais importante de sempre, juntamente com o Eça e o Pessoa. O livro que publiquei depois do prémio [O Bom Inverno] vendeu dez vezes mais que o anterior, foi uma coisa quase ridícula. Tinha 33 ou 34 anos e foi um pouco assustador. O livro a seguir foi um pesadelo, tive uma crise de identidade. O meu subconsciente pensava: “Agora tenho de escrever um livro tão bom como As Três Vidas”. Não frequentava pessoas do meio, só tinha publicado três livros e acabei por dar um tiro no escuro que teve repercussões estranhas. Tentei por todos os caminhos escrever um romance pós prémio e nada funcionava. Passei quase um ano nisso. Até que pensei “que se lixe, vou escrever o livro que me der na gana e que seja a resposta a esta incapacidade que estou a sentir”. O Bom Inverno teve um sucesso comercial enorme mas foi também a primeira vez que a crítica me desconchavou. Um escritor que acaba de ganhar o Saramago não é suposto escrever uma coisa daquelas, um noir, quase psicologicamente perturbador.
Mas também nisso foi diferente.
Acho que nos últimos 10, 15 anos se percebeu que a crítica — de livros, discos — já andava cá há demasiado tempo e, de certa forma, foi substituída pelo mundo dos comentários, dos posts, toda a gente pode dar a sua opinião. Qual é a diferença entre alguém que lê muito e escreve para o Público e alguém que lê muito e escreve na sua rede social? Nenhuma. Mas na altura de O Bom Inverno fiquei aterrorizado. Saiu uma crítica no Expresso que desancava o livro e o jornal nessa altura era lido por 250 mil pessoas. Fiquei destroçado e desorientado em relação ao meu futuro. Depois percebi que o que faz um livro passar de boca em boca são os leitores. E esses continuei a tê-los do meu lado. Estão nos lançamentos, nas Feiras do Livro. Isso é uma coisa extraordinária.
Aos 48 anos também já se tem uma capacidade diferente dos 33 para lidar com as críticas.
Agora já não ligo nenhuma, há anos que não leio críticas, mas quando se é um jovem escritor, aquilo dói.
Seguiu-se Anatomia dos Mártires, em 2011, mas ainda demorou algum tempo até encontrar o foco, certo?
Acho que esse foi o pior período. Entre O Bom Inverno e Anatomia dos Mártires. Foram livros mal recebidos pela crítica. Depois saiu O Ano Sabático [2013], que gostei muito de escrever, foi uma espécie de mini libertação. Nessa altura até foi a Rosário que me ajudou, dizendo: “Você está a ir por um caminho em que está a prestar demasiada atenção às coisas que dizem de si. Concentre-se mais naquilo que é”. Quando entrei na trilogia [que começa com O Luto de Elias Gro, 2015], pensei: “OK, eu consigo sair deste registo e ir para outros”. A partir daí, as coisas começaram a avolumar-se porque me libertei dos preconceitos e comecei a escrever exatamente o que me apetecia escrever, até chegar a 2018 e escrever um policial. Há uma voz, que é própria, minha, que conquistei à custa de muito trabalho e fracasso. Encontrar aquela coisa, quase uma essência que não se explica, mas que é a nossa e que os leitores reconhecem… Até posso escrever de trás para a frente ou com palavras esquisitas mas está lá. É uma espécie de Santo Graal dos escritores. Por exemplo, é como nas redações, é lançado um tema. É preciso ter uma ideia, explicar e, se possível, voltar à ideia inicial para fechar o círculo. Se tudo fosse escrito com estes princípios, muita da literatura que hoje se escreve e que passa por cima da cabeça das pessoas seria mais compreensível. Há pessoas que fazem frases fantásticas com floreados, são ótimos na linguagem, mas lemos e ficamos com uma sensação estéril de que não se passou nada ali.
Por falar em redações, que tipo de coisas escrevia na escola?
Aconteceu-me escrever contos que mostrava ao meu professor do nono ano. Mas fazia-o quase à socapa, para não ser visto, porque não era uma coisa muito comum para aquela idade. Quando era ainda mais miúdo, lembro-me de as minhas personagens serem todas polícias, detetives, seres de outra galáxia. Eram coisas um pouco rocambolescas, mas também divertidas. Muito do que tenho vindo a fazer nos últimos anos é incorporar esse lado divertido que a escrita pode ter. Às vezes faço coisas mais sérias e profundas, como este novo livro, mas também gosto de uma escrita leve.
À socapa, porque um miúdo do nono ano devia estar a fazer o quê, jogar à bola?
Sim, era suposto os miúdos terem outro tipo de vivências, mas eu sempre fui muito introvertido.
E, em casa, mostrava os textos a alguém?
Às vezes o meu padrasto e a minha mãe liam. O meu padrasto sempre foi muito encorajador. Dizia: “Faz, escreve, pratica”. Essa ideia foi muito útil para conseguir ter um percurso sem grandes hiatos. Se fico dois anos sem escrever, bem…
Como é que se pagam as contas?
Exato, como é que pago as contas? Daí ter recorrido a outras formas de subsistência.
Como os guiões?
Sim, embora me tenha afastado um bocadinho do meio audiovisual porque não é o meu meio.
Mas ainda há pouco teve um grande sucesso, Rabo de Peixe, na Netflix.
O sucesso é do Augusto [Fraga, criador da série]. Nós [juntamente com Hugo Gonçalves, Fernando Mamede e Francisco Lopes], somos apenas os escritores. Se as pessoas pensam que isso [o sucesso] nos dá alguma contrapartida financeira, estão enganadas. Ganhamos zero com o sucesso.
Mas vale reconhecimento. Não abre outras portas?
Em Portugal não. Estão a fazer agora a parte dois [de Rabo de Peixe], mas já não estou envolvido. Quis voltar aos livros porque estava a ficar angustiado com a distância da produção literária.
E portas no mundo do streaming internacional?
Rabo de Peixe foi um pequeno oásis que, acho, tão cedo não volta a repetir-se. Uma coisa feita em Portugal, falada em português, que seja vista por tanta gente… O meio audiovisual tem constrangimentos do dia a dia que para mim são difíceis, os orçamentos, os deadlines, a escolha de autores…
É uma escrita mais condicionada?
Todas essas regras condicionam muito a escrita, mas a minha escrita de livros também não é livre. Tenho uma série de leitoras, sobretudo a Clara [Capitão], a editora da Penguin, que conheço há anos, que faz alterações e sugere muita coisa. Portanto, a versão final de um dos meus livros é uma versão altamente modificada daquilo que é o manuscrito original.
Escrever um livro é um processo solitário. Um guião já não é tanto assim. Custa abrir mão desse controlo?
Na equipa de Rabo de Peixe éramos muito poucos — ainda não havia produtora, nada, eram só quatro gajos numa sala a tentarem escrever sobre o que se tinha passado em Rabo de Peixe —, e desde a conversa preliminar que o Augusto teve comigo, no início de 2021, achei que o que ele queria era que eu levasse o romancista para a sala e isso foi uma coisa que me deu muito prazer, ele não precisava necessariamente de ideias que coubessem na tradição contemporânea daquilo que é um guião. Estivemos quatro ou cinco meses a trabalhar numa sala, ainda por cima em Zoom. Foi duro, porque trabalho melhor sozinho, mas também recompensador.
Escreve sobretudo em casa ou sobretudo fora de casa? Cada livro pede um sítio específico?
É isso. Por exemplo, A Noite em que o Verão Acabou [2019], que é um policial, foi escrito nos EUA. Estava em New Hampshire, numa residência, e dei um grande avanço ao livro aí. Felicidade [2020] foi escrito num café onde se passa o princípio da ação, em Lisboa. O primeiro terço de Cem Anos de Perdão [2022] foi escrito na Finlândia, aliás a ação começa em Helsínquia. Vou alternando para ter outros ambientes.
Está num jantar de amigos, tem uma ideia. Como é que a regista?
Gravo no dictafone, no telefone, para não me escapar nada. Mesmo à noite, se me lembro de alguma coisa, gravo. É mais fácil do que estar a teclar. Detesto, é uma coisa que me faz espécie.
É daquelas pessoas que manda áudios no WhatsApp então, em vez de escrever?
Mando muitos áudios, sim.
É um saramaguiano confesso. Qual foi o primeiro livro que leu de José Saramago?
A Jangada de Pedra.
Tem uma ideia inicial surpreendente [O que aconteceria se a Península Ibérica se descolasse do resto da Europa e começasse a seguir à deriva pelo oceano]. Porque não começou pelo Memorial do Convento?
É por isso que depois não gostam de Saramago. É o romance dele de que gosto menos, embora saiba reconhecer que está feito de maneira extraordinária. Comecei pela Jangada e quando estava em Londres. Li O Ano da Morte de Ricardo Reis e foi como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Pensei: “Uau, este homem é um génio”. Teve um poder sobre mim que me fez reconquistar o prazer de escrever. Nesse momento estava estagnado entre o jornalista que não queria ser e a viver em Londres, num apartamento rasca, já tinha acabado os estudos mas não sabia bem o que queria fazer da vida. Estava a trabalhar num pub e fazia legendagem de DVD. E muitos que se viram em Portugal no final dos anos 90 foram traduzidos por mim.
Por exemplo?
Não me lembro, eram muito maus. Mas era um trabalho bem pago. Ia lá uma vez por semana e traduzia e legendava um filme. Trabalhava num pub à noite e andava perdido na vida, mas precisei de passar por isso para depois encontrar O Ano da Morte de Ricardo Reis e outros livros que me fizeram reforçar a ideia daquilo que eu já sabia que queria fazer desde a infância, mas de que tinha tentado fugir. Fugi disto durante muito tempo porque é uma vida que dá medo.
Quase foi viver para o prédio onde o próprio José Saramago viveu. Como é que isso aconteceu?
Foi em 2020. Ele viveu durante alguns anos na Rua da Esperança, em Santos. Fui ver uma casa que era no primeiro andar e o Saramago tinha vivido no quarto. Estive quase, quase, mas depois pensei: “Não, é muito pequena. O único valor que me vai trazer é dizer às pessoas que vivi no prédio do Saramago e a Rua da Esperança depois da pandemia vai ser um caos, porque é Santos”.
Há os saramaguianos e depois há o tordismo. Há fãs com t-shirts e tudo. Que fenómeno é esse?
Foi uma fã bastante simpática que fez t-shirts e bonés, tornou-se uma “mini coisinha” nas redes sociais. Fico muito feliz que as pessoas gostem, que vão às Feiras do Livro, mas são coisas exteriores. Para mim, e para me manter saudável e com os pés assentes no chão, aquilo é que importa. E estou a apontar para o livro.
Também dá aulas de escrita. O que é que os alunos procuram?
Há pessoas que procuram validação, outras procuram desenvolver-se enquanto escritores e outras ainda só querem perceber o que isto é, porque a profissão continua a causar alguma perplexidade. Muito poucas pessoas vencem neste percurso e é assustador.
O próprio João teve medo da profissão durante muito tempo, há pouco disse que sabia o que queria desde a infância mas tentou contrariar. Qual é a memória de infância mais longínqua que tem?
Lembro-me de um quadro em casa dos meus pais, na Rua da Saudade, onde vivi só três anos. Era de Picasso, era o Guernica. Era um bocado assustador para uma criança.
Tem uma irmã gémea. Eram próximos ao crescerem ou sempre foram muito diferentes?
Em termos de personalidade, a Joana era muito mais extrovertida, voltada para o exterior. Eu era o oposto. Mas, sendo gémeos, há sempre muitas coisas comuns que nos fazem estar juntos: tínhamos a mesma turma, os mesmos aniversários, etc.
Cresceu com muitas mulheres à sua volta.
Havia a minha mãe, a minha avó, a minha irmã e as tias avós. O meu padrasto apareceu quando tínhamos três ou quatro anos, mas eram muitas mulheres. Ser rapaz e crescer com tantas mulheres à volta… há sempre uma dose de insegurança, mas como tinham várias idades, acabei por ganhar uma perspetiva muito interessante. Isso ajudou-me a ter como protagonistas mulheres.
A narradora de O Nome Que a Cidade Esqueceu volta a ser uma figura feminina.
Sim, mas nem foi ela que apareceu primeiro, foi um artigo do The New York Times que li em 2015. Contava a história de um homem descoberto em casa pelos vizinhos, morto, depois de ter estado sete anos sem sair. Era um acumulador. Essa história interessou-me, mas também queria contar a história de uma rapariga refugiada de um país de leste no final da Guerra Fria. As duas ideias acabaram por coincidir e liguei duas personagens que não têm nada a ver uma com a outra. Faço isso muitas vezes para ver como convivem.
Sobre a escrita, disse numa entrevista: “É como em todos os ofícios, é algo que se pratica, que se treina. É um processo que demora 20 ou 30 anos a aprender e depois leva-se o resto da vida a aperfeiçoar.” Já passaram 20 anos, em que fase está?
A aprender ainda, muita coisa só aprendemos com a experiência, mas também há certas coisas que já estão mais ou menos encontradas. Com 20 anos disto tenho uma vantagem muito grande em relação ao escritor que era quando comecei. Passei muito tempo a tentar chegar a um ponto em que compreendo a harmonia, usando uma analogia musical, e consigo simplesmente ser, já não preciso de estar sempre à procura.
A dada altura vê-se a ser o escritor com uma casinha isolada no meio do monte ou vai ser sempre citadino?
Não faço ideia. Acho que às vezes preciso de silêncio e isolamento, mas acho que vou ter de ir variando. Gosto da cidade porque me dá estímulos e coisas inesperadas, mas também preciso de um sítio onde consiga estar em silêncio, sem interferências exteriores.
No início falava do facto de ter sempre uns livros de avanço, portanto provavelmente poderemos ler o que está a escrever agora daqui a dois anos. Quer explicar um pouco a ideia e daqui a dois anos retomamos a conversa a partir deste ponto?
Deverá ser um policial. É o regresso de uma personagem que os leitores gostam muito, a Pilar. Ainda não sei muito bem como integrá-la na narrativa, mas ela terá de aparecer a dada altura. Provavelmente não será tanto tempo, no próximo ano falamos.