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José Carlos Pereira é o 11.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental
"Passei por todas as fases do engano e da negação."
"A partir do segundo copo, para mim já não existia limite. O meu cérebro dizia-me: 'Bebe mais, e bebe mais e bebe mais'."
"Quando percebemos que estamos sempre a prometer que vamos parar e não conseguimos, alguma coisa está errada."
"Na altura estava a gravar uma novela e decidi ir para uma clínica específica para tratamento de adição. Foi muito difícil. Muito, muito, muito, muito. Mesmo."
"Esse é o primeiro passo, o mais importante: pedir ajuda. Porque há muita gente que vive em negação e que diz que não precisa de ajuda até ao fim."
"Tenho de reconhecer que errei. Temos de nos perdoar, mas não vamos esquecer."
"Hoje escolho não beber, e até agora tem sido assim. Houve um dia em que escolhi beber e senti logo que estava a pecar."
"O medo de voltar ao passado é a minha melhor arma de defesa contra o meu futuro. Enquanto me lembrar daquilo que passei, não vou lá voltar, isso é garantido."
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José Carlos Pereira é o 11.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

José Carlos Pereira é o 11.º convidado do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

José Carlos Pereira e a adição. “Ter ficado rotulado foi uma das coisas mais difíceis de ultrapassar”

A notícia fez capa de revistas e títulos de jornais em 2014: José Carlos Pereira estava internado numa clínica de reabilitação para tratar a dependência de álcool e drogas. O ator estava, na altura, a gravar uma novela, que teve de parar. O mediatismo que tinha obrigou-o a lidar com o problema em público. Não se arrepende de ter assumido o que estava a viver, mas admite que com esse mediatismo veio também um rótulo que muitos ainda não conseguiram descolar-lhe da pele — e que foi, para ele, das coisas mais difíceis de ultrapassar em todo o seu processo de recuperação.

Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada na Livraria Déjà Lu, na Cidadela de Cascais, conta que, quando pediu ajuda, vivia em “roda livre”, num padrão de consumo semanal, sempre à procura de euforia e dias de festa. E relaciona os primeiros passos para esse padrão com a cultura daquela época, em que, como ator, era pago para sair à noite e beber. Preocupa-se, aliás, com o facto de agora ser “cool” beber, sobretudo pelo impacto que isso tem nos mais jovens, e lamenta que a dependência de substâncias como álcool e drogas (algumas legais) seja transversal a vários setores da sociedade.

Ator e agora médico — um curso que lhe estava “atravessado” e que entretanto conseguiu concluir —, vive focado em manter os objetivos de vida que traçou, “ser um bom profissional, um bom pai, um bom filho, uma boa pessoa”, sem nunca esquecer tudo o que aconteceu. O tratamento — “muito, muito, muito difícil” — obrigou-o a analisar todos esses momentos, sobretudo os danos que provocou em si próprio e nos outros, família, amigos e colegas de trabalho. Ter essa memória é “a melhor arma” que diz ter para não voltar atrás, ainda que recuse fazer previsões para o futuro. “Acho que o dia de amanhã nunca mais vai ser como antigamente, mas eu não sei o dia de amanhã, por isso foco-me só no dia de hoje, é isso que me interessa. Eu hoje não bebo, amanhã não sei.”

[Veja aqui a entrevista completa a José Carlos Pereira]

Lembra-se do momento em que percebeu que tinha um problema e precisava de ajuda?
Lembro-me do dia, até. Não foi em que percebi que precisava de ajuda, houve vários sinais à minha volta que me foram dizendo que eu não estava bem, porque neste processo todo há uma coisa que se chama “negação”, nós achamos sempre que estamos bem e os outros dizem que não estamos. Realmente, havia já ali um padrão e houve um dia em que acordei e disse “não posso continuar nisto”. Lembro-me perfeitamente, foi no dia da morte do Rodrigo Menezes, há quase 10 anos. E lembro-me perfeitamente de que foi nesse dia que pedi ajuda. Tinha acordado, disse “não posso continuar assim” e liguei a dizer “olha, preciso realmente de me ir tratar, porque isto não pode continuar”.

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Ouça aqui a entrevista em podcast.

José Carlos Pereira e a adição. “Experimentei voltar a beber, mas fiquei com medo. Senti logo que estava a pecar”

Ligou a quem?
Liguei à minha mãe, são normalmente as pessoas mais próximas que têm a perceção de que algo está errado e que nos vão dando indicações — “olha que tu não estás bem”. E nós continuamos “não, não, isto está tudo controlado, está tudo bem”. A verdade é que eu já tinha um padrão, semanal, só que esse padrão semanal era compulsivo. Porque as pessoas normalmente identificam esta coisa da adição como o toxicodependente de rua, aquele que consome diariamente. Não era o meu caso, só que o meu padrão era de sexta a domingo, sem dormir, sem parar. Três dias sem ir à cama. E, obviamente, isto depois tem repercussões na semana de trabalho.

Mesmo que, durante a semana, o padrão não se repetisse.
Durante a semana o padrão não se repetia, podia sair esporadicamente uma vez, porque tinha o trabalho, obviamente, e isto tinha repercussões ao nível do trabalho, por atrasos, por diversas situações. Mas começa a afetar todos os campos da nossa vida. Primeiro é só sexta e sábado, depois começa sexta, sábado e domingo, depois um dia durante a semana, depois já começamos a facilitar cada vez mais. E isto acaba por ter consequências e implicações graves na nossa vida pessoal, na nossa vida profissional, na nossa vida social e em nós mesmos, na nossa saúde — isso é o mais importante e é disso que se trata, de saúde. Não só física, mas também mental.

"Neste processo eu dizia sempre assim: 'Não, não vou fazer mais'. Mas na semana seguinte lá estava eu outra vez a fazer a mesma coisa, a repetir o padrão."

Estamos a falar de quê? Consumo de álcool, drogas?
Estamos a falar de tudo. Obviamente começa com o álcool, como uma coisa social. Ainda há pouco tempo referia isto, estive a olhar um bocadinho para trás e a perceber como é que tudo isto começou, e numa conversa percebi que houve uma altura — foi parte da cultura daquela altura, quando comecei a fazer novelas, tinha 21 anos — em que éramos pagos para sair à noite, pagavam-me para sair à noite, para beber álcool, para fazer presenças. Era “o barulho das luzes”, como eu lhe chamava. Tudo aquilo era tudo e muito. E nós deixamo-nos ir um bocadinho, porque somos novos, queremos divertir-nos. Começa com uma brincadeira, experimentamos uma vez, achamos piada. Depois, passado um mês, experimentamos outra, aquilo começa a tornar-se parte da normalidade — que não é, não é assim que deve ser, obviamente. E muito tarde apercebemo-nos de que realmente há qualquer coisa que já não está a funcionar, porque já não sabemos sair sem utilizar determinadas substâncias. Álcool e algumas drogas — não todas, mas algumas.

Quando diz que havia sinais de outras pessoas — a sua mãe, por exemplo, e imagino que os amigos mais próximos —, o que é que lhe diziam? Identificavam a dependência?
Identificavam a falta. Imagine: almoços de família, não aparecia porque ficava a dormir, porque me deitava às 10h00 da manhã ou porque não me deitava, e não aparecia. Compromissos laborais: imagine que trabalhava segunda-feira, mas tinha-me deitado domingo às 8h00, obviamente não acordava de manhã, ligava a dizer que estava atrasado. Tudo isto acaba por afetar todas as áreas da nossa vida. Não falamos de uma coisa específica, há vários sinais que conseguimos identificar. E depois o comportamento: acabamos por ter muito menos disponibilidade emocional, estamos muito mais irritados, porque há aqui um comedown — não vamos chamar ressaca, não é uma ressaca física, mas há uma ressaca “psicológica”. Sabemos que, fisiologicamente, temos uma libertação enorme de neurotransmissores e depois temos o comedown, que é o período de readaptação do corpo. E este período demora cerca de quatro dias até voltarmos ao nosso estado emocional mais ou menos normal, que demora muito tempo até recuperar a normalidade mesmo. Isto está estudado, está cientificamente comprovado que é assim que funciona.

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Nessa manhã em que acorda e toma essa decisão de pedir ajuda, quando se confronta com a noção clara de que há uma adição…
Já havia várias vezes em que acordava e pensava “isto já não me está a trazer nada de bom, só me está a trazer algumas coisas más”, já havia perdas. Nós começamos a perder. Há uma altura em que há uma fase cor de rosa — do “elefante cor de rosa”, como eu lhe costumava chamar — e há uma altura em que a parte ascendente começa a desaparecer. Há uma parte de estabilização e depois só vem a curva descendente. Aí começam as perdas a acontecer, as consequências do processo da adição.

Então confrontar-se com essa evidência, nessa manhã, não foi propriamente uma surpresa.
Não foi surpresa e já era uma coisa negociada, não só com os outros mas comigo próprio. Eu já estava em negociação, já estava a começar a pesar as coisas. Se bem que nós tentamos sempre protelar esta decisão, não é uma decisão fácil, perceber que temos um problema e que, se calhar, vamos precisar de uma ajuda mais séria, “se calhar vou ter de me retirar do meu meio, do meio em que me movimento, para poder isolar-me um pouco e ver se consigo fazer alguma coisa”. Porque neste processo eu dizia sempre assim: “Não, não vou fazer mais”, mas na semana seguinte lá estava outra vez a fazer a mesma coisa, a repetir o padrão. Portanto, quando percebemos que não conseguimos parar por nós próprios e estamos sempre  a prometer que vamos parar e não conseguimos, alguma coisa está errada. Mas há muita gente durante este processo que não identifica — e, aliás, há muita gente que, neste momento, está nesse processo. Mesmo aquelas pessoas que saem todas as semanas e que bebem álcool já não se apercebem de que já não conseguem sair sem beber álcool. E isso já é um processo de adição.

"O álcool é de tal maneira insidioso que a ajuda, muitas vezes, só vem aos 50 ou 60 anos. E o alcoolismo prolonga-se e prolonga-se por décadas de consumo. E é altamente destrutivo."

A adição, sobretudo quando começa assim, com a bebida social, é silenciosa?
É completamente silenciosa. E não só silenciosa, é socialmente aceite, incentivada comercialmente, como nós vemos. Por muito que digam “beba com moderação”… Nós vemos os jovens hoje em dia e, infelizmente, não só por mim, mas por tudo aquilo que vejo, está muito disseminada a ideia de que beber é cool. Obviamente que não vou dizer para as pessoas não beberem, não é disso que se trata. Agora, essa moderação, quando se trata de uma substância, é muito complicado manter, porque o que é que é beber com moderação? É beber um copo de vinha à refeição, mas não é isso que se passa quando saímos à noite, temos essa perfeita noção. Há aqui uma displicência no que diz respeito à normalização do consumo de substância, neste caso o álcool, e assisto hoje muito mais a uma muito maior facilidade de acesso a tudo o que é substâncias nos meandros da noite. E não só, nos meandros profissionais em que me movo também, muito. Não só na parte médica, mas também na parte da representação. Não falamos só de drogas ilegais. Estamos a falar das benzodiazepinas, das ritalinas, de uma série de estimulantes que são comercializados hoje em dia e que é preciso ter um certo controlo.

Vê isso a acontecer também à sua volta? Às vezes fácil dizer “os artistas são uns loucos”, mas noutras profissões…
Eu só tenho duas profissões, sou ator e sou médico. Mas já vejo — e tenho colegas que me contam — que isto é uma coisa transversal, não vamos particularizar em nenhum ramo profissional. É uma coisa transversal, não só socialmente como profissionalmente. Existem vários campos, é um problema que está identificado. Agora, as medidas que terão de ser tomadas nesse sentido são muito complicadas de estabelecer, porque acaba por privar um bocadinho a liberdade de cada um, tem de ser o próprio a reconhecer que tem uma patologia, que se está a comprometer, que está a danificar e a prejudicar a sua vida e a daqueles que estão à sua volta. Isto acaba por ser uma doença, como eu lhe chamava, em autoclismo. É um remoinho que vai acabando por destruir tudo à sua volta.

Essa conversa com a sua mãe foi muito dura para si?
Acho que para ela foi quase um alívio. Para mim foi dura, mas para ela foi o alívio do assumir que estava realmente num processo e que já não tinha controlo sobre aquilo que estava a acontecer, porque a verdade é que estavam a acontecer perdas, a nível profissional, a nível pessoal, relações terminadas, falhas com os pais, acabamos por viver num mundo um bocadinho à parte. Eu por umas razões, outros por outras. E acabamos por nos rodear das pessoas que estão a fazer a mesma coisa que nós, queremos é estar com os amigos que também estão naquele processo. E é um erro, porque acabamos por alimentar aquele tipo de vida, que não é o correto. Agora, à distância do problema, consigo identificar. Na altura, não. Na altura não me fazia sentido estar com outras pessoas que não aquelas.

A conversa foi dura para si por alguma vergonha?
Sem dúvida, ainda mais na minha situação. Estamos a falar de uma exposição nacional, porque foi aquilo que aconteceu. Foi uma altura muito dura para mim, muito. Porque foi o assumir publicamente, ainda para mais numa fase precoce — acho que fui, talvez, a primeira figura pública a assumir assim mais veementemente ou a dar uma entrevista a dizer que tinha de me tratar. Abri o caminho para algumas pessoas, vieram outros depois e ainda bem que assim foi, porque é bom que seja desmistificado e que as pessoas saibam que não estão sozinhas e que há tratamento e a possibilidade de pedir ajuda. E esse é o primeiro passo, o mais importante, pedir ajuda. Porque há muita gente que vive em negação e que diz que não precisa de ajuda até ao fim. E há alturas em que já é tarde demais. E há outros que não querem ajuda. Agora vamos falar do álcool e não das outras, porque as outras são mais agudas, são mais destrutivas. O álcool é de tal maneira insidioso que a ajuda, muitas vezes, só vem aos 50 ou 60 anos. E o alcoolismo prolonga-se e prolonga-se por décadas de consumo. E é altamente destrutivo.

  • A entrevista foi gravada na Livraria Déjà Lu, na Cidadela de Cascais
    ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR
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Além da sensação física, o que é que o álcool ou as drogas que consumia lhe davam? Às vezes vemos a adição associada a pessoas que estão a passar por um período difícil e se escondem ali.
No meu caso era exatamente o contrário. Quando estava na parte triste e deprimida, jamais recorria. Para mim, sempre esteve ligado ao lado da festa, ou seja, sair à noite, estar com os amigos. Era uma busca de euforia, e mais euforia, e mais euforia e mais euforia. Era por aí. Nunca foi ao contrário, nunca foi um refúgio, foi uma abstração da realidade que vivia. Vivia uma realidade de trabalho de 12 horas diárias e a maneira mais fácil de conseguirmos desligar o botão imediatamente é consumir. Porque entramos numa outra realidade, não há problemas, não sentimos. É tudo bom, é tudo bonito — em determinada altura, não é? Porque é tudo uma ilusão. Sabemos que isto é tudo químico no nosso cérebro, é uma substância que nos está a fazer acreditar numa coisa que não está a acontecer, basicamente. Mas era isso, desligar o botão o mais rapidamente possível e aproveitar os dois dias que tinha de festa, porque segunda-feira estaria a trabalhar novamente. É um bocadinho desligar da realidade e não estar preocupado com aquilo que somos e que temos de fazer e com aquilo que temos de cumprir.

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O que é que é exatamente a adição para quem a vive? Uma urgência de? Uma vontade incontrolável de?
Temos de diferentes tipos, cada caso é um caso. Para mim, como é que eu identificava e identifico? Não conseguir divertir-me, sentir que não estava a ter prazer num determinado momento sem estar sob o efeito de determinadas substâncias, seja álcool, seja drogas.

E teve algum momento de pensar “eu hoje vou a este jantar, mas vou cedo para casa, não vou beber”?
Esse é o maior engano que podemos dizer a nós próprios. Há uma altura em que sabemos perfeitamente. Não há super-heróis. Pode haver um ou outro caso, mas ninguém sozinho consegue dizer: “Vou para o mesmo sítio, com as mesmas pessoas e não vou fazer”. Isso não existe, temos de mudar comportamentos e hábitos.

Passou por esse engano?
Claro que sim, passei por todas as fases do engano e da negação. “Eu hoje vou, não vou beber; hoje vou, venho para casa cedo”. Isso não existe. E depois há uma coisa: a adição tem uma componente que é a compulsão, e a partir do momento em que começamos, não paramos. Conheço pessoas que conseguem beber e parar — eu experimentei várias vezes, “vou só beber um copo e depois já não bebo”. Não, a partir do segundo copo, para mim já não existia limite. A partir do segundo copo, o meu cérebro dizia-me: “Bebe mais, e bebe mais e bebe mais, e agora vais fazer tudo o resto”. Era assim que acontecia.

"Foi muito difícil. Muito, muito, muito, muito difícil. Mesmo. Foi muito bom, por um lado, de reconhecimento, na parte espiritual, na parte da resiliência, de autoconhecimento. O isolamento é muito complicado, a privação da liberdade é uma coisa que... às vezes nem gosto de me relembrar."

E o que é mais difícil de controlar: o corpo ou a mente?
A mente. Há substâncias que não são aditivas em termos físicos. E aquelas que eu consumia — posso nomear: álcool e cocaína, basicamente eram as duas mais presentes e andavam sempre juntas, era um upper e um downer, uma controla a outra, vamos andando para cima e para baixo — não têm uma grande ressaca física. O álcool, em extremos, no alcoolismo, tem, mas não era o meu caso porque, como era um consumo agudo e compulsivo de dois ou três dias, não tem a outra parte. É muito mais a componente psicológica de não saber estar ou de não me saber divertir numa determinada situação que começa a mexer connosco interiormente. Vemos toda a gente a divertir-se e nós também queremos. Portanto, se não queremos sentir aquilo, temos de nos afastar, não há outra maneira. Diz-se isto muitas vezes: aqui não há super-heróis. Quando se fala deste tipo de situações, primeiro: ninguém consegue sozinho, por isso é que existem os pedidos de ajuda e existe ajuda específica para este tipo de casos. E há um processo todo que tem de se fazer, afastarmo-nos de determinados ambientes, mudar estilos de vida, mudar de hábitos. E por isso é que há um tempo em que é necessário fazer determinadas coisas e só esse tempo é que nos vai ajudar a conseguir mudar aquilo que era o nosso padrão anterior.

Isso significa que, se o que é mais difícil de controlar é a mente, é uma luta permanente consigo próprio?
E para sempre. Ouvi isto muitas vezes nos sítios onde estive, fiz um programa de 12 passos, do qual tirei muita coisa boa e aprendi muito — é um programa espiritual que está normalmente descrito e escrito para pessoas com problemas de adição e alcoolismo, mas é um programa espiritual e que devia ser muitas vezes aplicado a muita gente e no nosso dia a dia, eu ainda consigo aplicar muita coisa. Mas é uma luta contra nós próprios e para sempre. Obviamente que o tempo nos ajuda a minimizar os efeitos e as vontades de hoje, reaprendemos a viver de outra maneira. Neste momento, faço desporto todos os dias, a mudança de hábitos é extremamente importante para esta recuperação. Mas sim, é uma luta constante. Imagine estar num ambiente de festa e ver toda a gente a beber — o que é normal e não vamos dizer às outras pessoas “não bebam, por favor”. Vou jantar, as pessoas bebem, é um reaprender. É dizer que é uma opção minha, não é “eu não posso”, é “eu não quero, não vou beber”. E não bebo. E se me sentir incomodado, vou-me embora, tenho a liberdade de o fazer. Agora, não vou estar ali a lutar contra mim próprio, isso não se faz. Porque isso é estarmos a alimentar a doença, estarmos a forçar aquilo, é estarmos a dizer ao macaquinho para nos falar ao ouvido e dizer “vá lá, tu já estás bem, bebe lá mais um copo”. Isso não se faz.

Vamos então olhar para o tratamento. Tem essa conversa com a sua mãe, diz-lhe “preciso de ajuda”. O que é que acontece em termos de tratamento a seguir?
No meu caso, fui para tratamento. Ou seja, tive de parar as gravações, na altura estava a gravar uma novela, e decidi ir para tratamento e fui durante quatro meses, numa clínica específica para tratamento de adição.

Foi difícil?
Foi muito. Muito, muito, muito, muito difícil. Mesmo. Foi muito bom, por um lado, de reconhecimento, na parte espiritual, na parte da resiliência, de autoconhecimento. Mas o isolamento é muito complicado, a privação da liberdade é uma coisa que… às vezes nem gosto de me relembrar, porque gosto de uma parte e não gosto de outra, porque realmente custou-me muito.

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Por vezes há uma visão um bocadinho cinematográfica desses momentos, em que alguém entra numa clínica de reabilitação.
É. Nos Estados Unidos nem tanto, cá sim, ainda temos um bocadinho esse estigma — “ai, foi para reabilitação, meu Deus!”

"No meu caso, foi das coisas mais difíceis de ultrapassar, não lhe vou mentir. Foi ter ficado rotulado, porque a verdade foi essa, acabamos por ter um rótulo. E depois, nos primeiros dias cá fora, não deixamos de ter a profissão que tínhamos e a imagem pública, mas temos de levantar a cabeça e viver."

Como é que foi para si? Tinha regras, não podia ter contactos, não podia sair?
Não se pode sair. Nós temos sempre a liberdade de poder sair, mas temos de lutar contra essa vontade de querer sair. Não é vontade para vir cá fora fazer qualquer coisa, é a privação da liberdade, não poder estar com pessoas. Há uma altura, passado três semanas, em que já achamos que estamos bem, “já passou, já percebi tudo, já me quero ir embora, já sei como isto funciona, quero-me ir embora”. E não é assim que funciona. E depois é lutarmos contra a nossa vontade própria, é uma das coisas que nos ensinam. Porque nós temos muita vontade própria, todos nós, e é começar a ouvir o que os outros nos estão a dizer. É muito complicado. É um processo mental que não lhe consigo explicar exatamente, mas temos de vencer várias barreiras contra nós próprios que são muito complicadas. É uma prova de humildade brutal, é uma prova de resiliência enorme, é uma reaprendizagem de muita coisa — e uma viagem de autoconhecimento, então, muito maior. É confrontarmo-nos com tudo aquilo que andámos a fazer, escrever, minuciosamente, e começarmos a ler. Porque ao pormos num papel aquilo que fizemos, começamos a ter uma perceção diferente daquela que temos mentalmente. Porque enquanto andamos em roda livre, em euforia, parece-nos tudo completamente normal e minimizamos os danos que causámos. “Deixa lá, já passou. Não fui àquele jantar ou ao aniversário da minha mãe, também não interessa.” Escrevendo, começamos a ter a verdadeira consciência daquilo que se passa. Não vou especificar os processos por que se passa, porque são coisas de cada um, mas é uma viagem ao nosso passado que vamos ter de aceitar — não esquecer, mas aceitar. E depois esse confronto com os danos que causámos acaba por mexer muito connosco, mas esse mexer é importante para termos a real consciência daquilo que andámos a fazer e a real noção do quão nocivo e destrutivo aquilo estava a ser na nossa vida — na nossa e na dos outros que gostam de nós.

É uma forma de ter uma imagem clara desse passado para garantir que não se quer voltar lá?
É. Há uma frase feita que se diz no tratamento: “Irei aceitar o meu passado, mas não o irei esquecer”. E basicamente é isso. Aceitamos, temos de nos perdoar um bocadinho, depois de todo este processo, porque vamos olhar para muita porcaria que fizemos. Temos de nos perdoar, mas não vamos esquecer. Há uma coisa que diz que um adito que não esteja grato por estar bem hoje em dia rapidamente acaba por lá voltar outra vez. E a verdade é que temos de pensar no bom que temos — e eu hoje tenho muito trabalho, tenho os meus filhos, tenho a minha vida, sou médico, que era uma coisa que sempre quis alcançar. Obviamente, enquanto andamos naquele… eu vou chamar àquilo um limbo. Enquanto andamos naquele limbo, nada é possível porque não andamos em lado nenhum. Andamos em todo o lado e não estamos em lado nenhum, não estamos focados, não temos a noção do que se passa. E aquilo tira-nos um bocadinho a noção da realidade — mesmo sem estarmos sob o efeito. Porque se não estamos sob o efeito, estamos no processo de recuperação semanal e não estamos ainda bem. E há este padrão semanal, portanto nunca acaba.

Quatro meses depois, tem alta.
Sim, uma alta terapêutica.

Sente-se medo nesse momento?
Sente-se medo, porque a nossa realidade passou a ser a outra de lá de dentro. Eu chamo àquilo um “Big Brother”, mas acabamos por ter uma nova realidade, estamos num ambiente protegido. E as primeiras saídas cá para fora são complicadas, porque não sabemos bem o que vai acontecer.

Há uma fase de sair e voltar?
Eu saí imediatamente. Há casos que têm uma segunda fase, casos com muitos anos. E há diferentes tipos de tratamento para cada pessoa, há uns que vão para uma segunda fase, em que ainda estão controlados, têm uma reeducação social — aqueles que já perderam trabalhos, que muitas vezes acabam na rua, sem casa — e têm uma segunda fase de reinserção social, se assim lhe quisermos chamar. No meu caso, não. Tive alta terapêutica, continuei acompanhado com consultas quinzenais ou semanais, e sempre em contacto, obviamente, com as pessoas que nos acompanharam, se houver algum problema ligar, etc.. E não é um processo que acaba por ali, porque a verdade é que a vida volta a acontecer e há muitas situações que vão acontecer. Há muitas pessoas que, passado um ano, ou dois anos, voltam a experimentar bebida e conseguem beber normalmente; há outras que recaem; há outras que nunca mais bebem. Cada processo é um processo individual.

Teve recaídas?
Não. Experimentei voltar a beber, mas fiquei com medo. Achava que já podia, bebi uma cerveja, mas sempre me dei com amigos do tratamento, sempre me chamavam à atenção, sempre fui muito balizado e continuo a ser balizado. Continuo a manter contacto com as pessoas e são elas que me chamam à terra. Há reuniões cá fora, de Narcóticos Anónimos (NA) e de Alcoólicos Anónimos (AA), que frequentava regularmente — já estamos a falar de há sete anos, não é? Nos primeiros dois anos frequentava com assiduidade, entretanto veio a Covid, que piorou isto tudo, deixou de haver as reuniões. Mas eu, até à Covid, frequentava semanalmente. Uma vez por semana, pelo menos, fazia uma reunião. E isso volta-nos sempre a chamar à terra. E depois temos aquele compromisso da “irmandade”, como nós chamamos, que nos permite manter a humildade de perceber de onde vimos e quem somos. Não nos deixamos ir em liberdade total, se quisermos dizer assim.

Quer naqueles meses na clínica, quer, por exemplo, nessas reuniões, a sua imagem pública pesava-lhe?
Muito. Muito. Ainda hoje, se quer que lhe diga a verdade. No meu caso, foi das coisas mais difíceis de ultrapassar, não lhe vou mentir. Foi ter ficado rotulado, porque a verdade foi essa, acabamos por ter um rótulo. E depois os primeiros dias cá fora, não deixamos de ter a profissão que tínhamos e a imagem pública, mas temos de levantar a cabeça e viver, e assumir aquilo que tinha acontecido. Há uma expressão que se diz que é o “fake it to make it“, e muitas vezes temos de fazer isso. Foi isso que fiz. Se queremos chegar a algum lado, temos de ser persistentes e resilientes no caminho, e foi isso que fiz. Voltei a trabalhar, voltei a tentar fazer tudo outra vez. E recuperar aquilo que, inevitavelmente, tinha perdido. Não só a imagem — obviamente, as coisas levam todas o seu tempo. Ao perdermos uma coisa, pode ser num dia ou numa noite, mas para recuperá-la pode ser imenso tempo, a chamada Fénix, renascer das cinzas. E foi um bocadinho essa a imagem que tive. Sabia que tinha de batalhar muito, trabalhar, trabalhar, trabalhar, fazer por mim — trabalhar não só no campo profissional, trabalhar na minha vida pessoal, trabalhar na minha vida de adição, fazer as reuniões semanalmente, e pôr a nossa adição em primeiro lugar, pormo-nos a nós em primeiro lugar, isso é o mais importante.

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Sente que enfrentou muita desconfiança por parte das pessoas quando regressou?
Inevitavelmente, sim. Não vou dizer que foi direta, tive muita gente que me recebeu bem, não me desacreditando, mas a desconfiança é inevitável porque vimos de um processo em que as pessoas já não confiavam de qualquer das maneiras, já tinhamos tido falhas. E temos de fazer com que voltem a acreditar em nós — e não é por palavras. Não vale a pena dizermos “olha, eu já estou bem, ajuda-me lá”. Não, não é assim que funciona. É por provas, é por trabalho. Nós provámos por A+B que não estávamos bem, agora temos de provar por A+B que estamos bem.

Mas é justo dizer que, na fase em que estava nesse limbo e isso o foi destruindo nas suas relações profissionais, pessoais, e que por isso falhou, que não foi suficientemente compreendido?
Não podemos pedir às pessoas que percebam. Nem todos são família. Trabalhamos com outras pessoas, que têm a vida delas, e a verdade é que acabamos por “afetar” a vida delas. Vamos falar no compromisso profissional: se tem colegas à espera para gravar e se não aparece numa gravação, tem as pessoas à espera. São meus colegas, não estão na minha vida pessoal, não são o meu pai, não são a minha mãe, não são o meu irmão, não são a minha namorada ou a minha mulher. Portanto, obviamente, a essas pessoas pedi desculpa, não sou uma pessoa que não pede desculpa. Quando erro, peço desculpa, sempre tive isso. Mas, inevitavelmente, acabamos por prejudicar, seja quem for, da maneira que for. Eu tenho de assumir os meus erros. Agora, cabe-nos a nós não voltar a errar. Esse é que é o meu processo, que não cabe aos outros. Cabe aos outros, sim, perdoarem-me ou não.

O ator esteve vários meses numa clínica de reabilitação para se afastar do álcool e das drogas. Diz que a luta principal é contra a mente e, por isso, nunca acaba

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Não põe esse peso nas outras pessoas, de achar que possam ter sido injustos consigo.
Não posso pôr porque eu errei. Eu tenho de reconhecer que errei. O julgamento cabe a cada um fazer, eu tenho de fazer o meu caminho, tenho de cumprir as minhas obrigações, tenho de ser um bom profissional, tenho de ser um bom pai, um bom filho, tenho de ser uma boa pessoa.

Isso é uma carga enorme.
É uma carga que todos temos. Ao fim e ao cabo, cada um tem a sua opção. Eu opto por ser isto e tento fazer o melhor que consigo, e às vezes não consigo ir a todo o lado. A verdade é que cabe a cada um de nós tentar ser o melhor possível neste campo. Agora, quando estamos naquele processo, esqueça. Não somos nada, somos “escravos” do tipo de vida que andamos a levar, porque, no fundo, é isto que acontece. Nem espiritualmente estamos alinhados para conseguirmos ser seja o que for, porque não estamos. Não posso ser o melhor pai, nem o melhor filho, nem o melhor profissional se estiver subjugado a um determinado padrão e a uma determinada substância, é impossível.

Qual foi a forma que escolheu para lidar agora com isto? Não bebe de todo?
Neste momento, não bebo de todo.

Admite a possibilidade de que pode chegar a um momento do seu processo em que…
Não vou admitir nada, não sei qual vai ser o meu processo, vivo um dia de cada vez.

Isso não é uma coisa que o preocupe? Não está já a pensar no que vai fazer a seguir?
Não, vivo um dia de cada vez. Hoje escolho não beber, e até agora tem sido assim. Como lhe disse, houve um dia em que escolhi beber e achei logo que estava a pecar, senti logo.

E as pessoas à sua volta?
Não sei. Já passaram alguns anos, há muita gente que faz estes tratamentos e consegue reeducar-se. Há um período agudo, em que a pessoa não tem esta consciência e é alertada para tal. E há pessoas que conseguem voltar a beber. Não quero que me interpretem mal, atenção, porque há muitas escolas neste tipo de patologia. O programa diz que não se deve nunca voltar. Eu conheço pessoas que voltaram a beber e que bebem agora socialmente, conheço outras pessoas que nunca mais beberam e conheço outras pessoas que voltaram a beber e aquilo correu pessimamente. Portanto, não há aqui uma regra. Sabe-se que, se não se beber, não se volta ao antigamente. Agora, cada caso é um caso e eu neste momento da minha vida opto por fazer assim e tento alinhar-me de uma determinada maneira. Opto por fazer desporto, opto por não beber e opto por manter a minha vida o mais saudável possível e o mais profissional e dedicada a outras coisas que não isso. Obviamente que espero que o dia de amanhã não venha a ser como antigamente e acho que nunca mais vai ser, mas eu não sei o dia de amanhã, por isso foco-me só no dia de hoje, é isso que me interessa. Eu hoje não bebo, amanhã não sei.

"Não tenho nada a esconder. O meu passado foi o meu passado, neste momento sou esta pessoa. O rótulo, as pessoas podem pôr ou não, isso já não me incomoda muito."

Isso implicou deixar toda uma vida para trás e não voltar a ela? Alguns amigos, alguns sítios…
Durante muito tempo, à vontade três anos, implicou muita coisa. Neste momento, vou jantar fora, ainda ontem fui, não me privo, porque tenho uma perfeita noção daquilo que aconteceu. E se há um sítio aonde não quero voltar, é lá. O medo de voltar ao passado é a minha melhor arma de defesa contra o meu futuro, disso não tenho dúvida nenhuma. Enquanto me lembrar daquilo que passei, não vou lá voltar, isso é garantido.

Vítor Emanuel e a depressão. “Fui trabalhar com o meu pai a conduzir e a minha mãe atrás a dar-me a mão”

E ao mesmo tempo que deixou de se rodear de determinadas pessoas, passou a rodear-se de outras?
Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és. sei que é um bocado um chavão, mas acaba por ser verdadeiro. Neste momento tenho um grupo de pessoas com quem corro todos os dias às 5h da manhã e esse hábito que tenho todos os dias permite-me ter um estilo de vida saudável, é uma coisa que gosto de fazer, que me preenche e que está alinhada com a minha filosofia de vida neste momento. É isso que quero fazer, é assim que me sinto bem. Não quer dizer que não saia à noite. Não é meu costume sair muito à noite, mas não quer dizer que não me divirta e não vá a um jantar, mas tem de haver barreiras, como existe para toda a gente. Se calhar, na altura, eu é que não tive barreiras e não me soube defender de determinadas coisas. Hoje em dia, considero-me uma pessoa que consegue fazer tudo, não tenho privações, não estou a pensar “eh pá, não posso ir ali”. Não, vou jantar fora, estou com amigos, quando acho que está na altura de ir para casa, vou. Aliás, hoje em dia até vou mais cedo para casa porque acordo às 5h, portanto às 2h já estou de rastos, já nem consigo aguentar mais. Aliás, eu às 8h da noite já estou de rastos.

Faz tudo o que quer porque deixou de querer aquilo que lhe fazia mal?
Basicamente, é isso. Não quero mesmo voltar àquilo que me fazia mal.

O que é que ganhou com tudo o que aconteceu?
Ganhei tanta coisa. A origem é má, mas ganhei muita coisa. Ganhei um autoconhecimento maior, ganhei humildade, ganhei gratidão, que às vezes ainda não a pratico da melhor forma possível. Às vezes queixo-me muito daquilo que ainda não tenho e daquilo que quero fazer, e não agradeço aquilo que tenho, e isso é muito importante. Agora ganhei muita coisa, ganhei uma força interior muito grande, ganhei uma drive, a força de saber aquilo que quero e uma capacidade de trabalho muito grande, porque quis recuperar muito aquilo que tinha perdido. E batalhei muito, mesmo. Estes últimos anos foram anos de muita luta. Não me estou a fazer aqui um mártir da causa, mas foram de muita luta para conseguir voltar a recuperar o meu trabalho, acabar o meu curso, que era uma coisa que me estava aqui atravessada, mas que nem sequer queria pensar muito. É um esforço para a parte boa da vida e não para a parte má. A outra parte também requer muito esforço, mas é um esforço mau. E, neste caso, não, é um esforço para a parte boa da vida, foi isso que eu consegui recuperar e quero continuar a construir ainda mais e ser melhor pessoa.

"Quando começamos a pensar se temos um problema, já o temos, garantidamente. Porque nós somos os últimos a identificá-lo."

Acha que algum dia vai conseguir perder o rótulo?
Não sei. Eu vivo em paz comigo, neste momento. O rótulo? Também lhe disse, quando aceitei fazer a entrevista: não tenho nada a esconder. O meu passado foi o meu passado, neste momento sou esta pessoa. O rótulo, as pessoas podem pôr ou não, isso já não me incomoda muito. Obviamente que há pessoas que se vão sempre lembrar, como eu me lembro, por causa da exposição mediática que tive na altura. Agora, acho que a vida se vai fazendo dia a dia, e nós vamos provando — não por palavras, as coisas requerem tempo, solidez, requerem alguma consistência. Só essa consistência é que vai conseguir mudar alguma coisa. De resto, os rótulos as pessoas põem se quiserem, não põem se não quiserem. Se for estar a pensar nos rótulos que me põem, rapidamente vou desmotivar, não quero que isso aconteça. Tenho é de pensar se estou alinhado com aquilo que quero, se estou feliz com o que estou a fazer comigo e, se não estiver, mudar o meu caminho. Isso é que é importante.

Há muitas vezes um conselho associado à adição, que as pessoas gostam de dar, que é “se tiveres força de vontade, tu vais conseguir”.
É mentira. Mais um chavão de NA: há uma frase que diz “só juntos conseguimos aquilo que sozinhos nunca fomos capazes”. E a verdade é que, para quem está em processo de adição, sozinho é muito, muito difícil. Não vou dizer que não há quem não tenha conseguido, mas é extremamente difícil. Primeiro, não só pela negação. Segundo, porque nós sozinhos não sabemos parar, para onde vamos, o que fazemos. E depois há aquela ideia geográfica, “ah, vou sair daqui e vou conseguir”. Mesmo que a pessoa mude de sítio, o problema vai dentro dela, a patologia continua lá. Há um processo de ajuda que tem de ser direcionado e tem de ser feito. E essa ajuda só é conseguida quando assumimos que temos um problema e pedimos ajuda.

Seria esse o melhor conselho que teria para dar a alguém?
Sem dúvida nenhuma. E principalmente outra coisa: quando começamos a pensar se temos um problema, já o temos. Não vale a pena estar a esperar muito mais, já está. Quando começamos a pensar se temos, já o temos, garantidamente. Porque nós somos os últimos a identificá-lo.

Agradecimentos: Pestana Hotel Group

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos

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