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José Fragoso é diretor da RTP1 desde 2018. Encontramo-lo no gabinete, atarefado mas bem disposto. Há quem diga que tem uma postura conservadora. Outros reconhecem-lhe o mérito de levar o produto português mais além. Já tinha passado pela estação pública como diretor de programas, esteve à frente da informação em 2001 e como repórter nos anos 90. Foi sob a sua liderança que empresas como a Netflix começaram a abrir as suas portas a Portugal com Glória. Foi também com Fragoso que as séries portuguesas começaram a ter outra capacidade para produzir, introduzir-se noutros festivais e mercados, através de apoios como o que advém do Fundo de Apoio ao Turismo e ao Cinema.
Se em tempos assumiu compromissos de alto risco como Último a Sair, para 2024 José Fragoso prefere recentrar géneros como a comédia em apostas ganhas, usando o melhor que existe a nível nacional mas também com parcerias internacionais. Ambição e risco controlados. O futebol reina na grelha, mas 500 mil espectadores numa estreia de uma série satisfaz um dos líderes do serviço público. Nesta entrevista ao Observador, onde se falou de tudo — de séries, cinema, futuro, passado e de jornalismo — o diretor do canal público nega ter a tal postura conservadora em relação aos conteúdos que compra e promove, mesmo sendo um acérrimo defensor de um catálogo com a palavra “história” inscrita. Tal como não quer ficar atrás no digital e mantém a crença de que o serviço público deve liderar esta transição em todas as áreas. E quando a conversa volta à ficção nacional, que tanta concorrência tem lá fora, só lhe sai uma palavra: continuar.
Fragoso acredita que o canal tem tentado manter-se diverso e inclusivo, mas que há muita estrada para andar. “Claro que, a nível de representatividade, ainda existe um défice significativo, é preciso fazer esse trabalho de aproximação. Há um caminho grande a fazer na televisão portuguesa. E não é tanto aparecer uma pessoa de outra etnia para compor. Existe mesmo uma necessidade”, garante. Com a mesma certeza, diz que os portugueses gostam de séries portuguesas: “Uma série estrangeira na RTP2 faz 30 mil espectadores. O “Matilha”, na sua estreia, fez meio milhão de espectadores. Não sei em que se baseiam quando dizem que os portugueses preferem séries estrangeiras. Não sei mesmo”, finaliza. Ficção ou realidade?
Dos vários projetos que a RTP1 lançou em 2023, dois tiveram algum sucesso noutras plataformas sem ser na TV linear, excluindo o Pôr do Sol: Capitães do Açúcar e Emília. Projetos assinados por caras novas. Vamos ver mais vezes nomes novos na grelha principal? Ou foram casos pontuais?
Em primeiro lugar, não são casos pontuais. Temos uma estratégia para a ficção que começa com a RTP Lab, um laboratório que já é um formato que permite a quem nunca realizou, a quem acabou de sair da escola, concretizar um projeto de ficção. Permite introduzir novos conteúdos e pessoas na fotografia, na realização, no guionismo. Depois, temos a consulta de conteúdos anual onde retiramos projetos que são apresentados, como foi o caso da Filipa Amaro (Emília), que já tinha tido um projeto da RTP Lab, de financiamento baixo. Há vários em desenvolvimento e vão seguramente continuar a aparecer este ano. Em 2023, dessa consulta, retirámos quatro, com um número de episódios relativamente próximo do habitual: seis ou oito. E aí são usadas equipas com pouca ou nenhuma experiência. Ou de pessoas que já trabalharam como atores e querem realizar, como é o caso do Contado Por Mulheres, com dez telefilmes realizados por pessoas que nunca tinham realizado ficção. Queremos trazer gente nova para este processo, para que haja uma certa…
Renovação?
Prefiro chamar-lhe reforço. Precisamos de reforços permanentemente nesta área. Mas que já tenham dado provas com uma linguagem, com um interesse e com vontade. Esses dois projetos de que fala, foram lançados ao mesmo tempo, porque achamos que o público podia não perceber se fossem lançados em alturas diferentes. Foram lançadas com todos os episódios na RTP Play. Funcionou muito bem. Fizeram audiências muito razoáveis para uma emissão linear. Uma equipa do Porto e outra de Lisboa, é um momento para repetir. Aliás, está a ser repetido. Como disse, há pelo menos quatro grupos a trabalhar para 2024 e outros que trabalharam em 2023. Este ano teremos, por exemplo, o Sebastião Salgado a realizar uma série, algo que nunca fez.
Ou seja, o número de séries é para aumentar?
Vamos ter mais, mas a questão não é essa. Temos uma linha de produção que garante ter 10, 12, 14 séries por ano em emissão na RTP1. Há projetos que derivam do cinema ou vice-versa, como foi o caso do Pôr do Sol. Não temos como objetivo fazer vinte ou trinta séries. Queremos é que se perceba que há uma preocupação de diversidade nas abordagens, de equipas criativas e de produtoras envolvidas. Trabalhamos com cerca de 30 produtoras diferentes, umas estão a escrever, outras a preparar rodagens ou a montar. Queremos que esse processo seja mais dilatado no tempo. É por isso que as séries têm mais financiamento do que tinham há uma década. O tal reforço tem de surgir na dinâmica que estes conteúdos têm no linear e no não-linear. De sair para mercados internacionais, de atrair outros players como é o caso das plataformas de streaming que são hoje importantes no contacto com outros públicos. A série Abandonados recebeu duas distinções internacionais sobre Direitos Humanos. É esse tipo de viagem que queremos que as nossas séries façam. A ficção portuguesa não tem medo de se apresentar a nível internacional.
Aproveitando a referência internacional: nesse campeonato, um dos temas mais atuais é a diversidade. Se olharmos para os projetos lançados na RTP1 do ano passado vemos, sobretudo, homens. A inclusão é uma preocupação?
Temos dez milhões de habitantes e não 400 milhões como os Estados Unidos. Não nos podemos comparar. Nem a eles nem aos ingleses. As pessoas têm a tendência para achar que a ficção portuguesa se compara à americana ou britânica. Temos de fazer esse exercício com outras realidades. Voltando ao Contado Por Mulheres, sim, temos essa preocupação, uma obrigação do operador público em dar uma oportunidade a pessoas que nunca a tiveram. Sendo mulheres, tiveram menos oportunidades historicamente. Quando fazemos um telefilme, o Peixe Frito, só com atores negros, estamos também a enviar uma mensagem. E isso também está no entretenimento da RTP1 e noutros conteúdos. Claro que, a nível de representatividade, ainda existe um défice significativo, é preciso fazer esse trabalho de aproximação. Temos algumas primeiras obras que estão preocupadas com esta questão. Há um caminho grande a fazer na televisão portuguesa. E a questão não se resume a incluir uma pessoa de outra etnia, não branca, para compor. Existe mesmo uma necessidade. Se houvesse quotas dir-se-ia que era 10% ou 15%, só que não existem quotas oficiais nesta área. Somos um país com uma grande diversidade e essa representatividade deve estar na televisão.
Mas sendo a RTP1 um serviço público, não tem uma responsabilidade acrescida relativamente aos canais privados?
Temos mais, sim. A nível da dramaturgia, existe essa preocupação, por exemplo. Está espelhada em vários dos nossos projetos e digo-lhe que é até uma preocupação de vários produtores independentes, que são os únicos com quem trabalhamos. Não se produz nada na RTP1. O ano passado recebemos 162 projetos para séries de ficção e selecionámos até 22 que depois seguiram para concurso no Instituto do Cinema e Audiovisual. Ou então para irem a concursos europeus e conseguirem financiamento. Essa questão está mesmo presente nos produtores portugueses. E fazendo uma comparação com séries de anos anteriores, nota-se essa alteração.
Sobre o Contado Por Mulheres. Também há quem, dentro do meio, considere que é um exemplo de uma discriminação positiva que não beneficia necessariamente a diversidade de que fala.
Sou completamente contra quotas. Sou também o primeiro a admitir que, caso não existissem, também não passaríamos de determinado ponto. Tem de haver um esforço de auto-regulação, mas com resultados. Penso que estamos a atravessar o ponto em que até as empresas querem ter esse equilíbrio entre etnias e géneros. De pessoas a ganharem o mesmo, quer sejam homens ou mulheres. Confio que os players nesta área tenham essa sensibilidade.
Voltando à RTP Lab, como avalia o ano passado?
É um projeto que está dentro de uma equipa digital e não está diretamente ligado a nós. Mas há conteúdos que estão em desenvolvimento e na fase de financiamento este ano.
O que aconteceu com Casa do Cais, que nasceu nesse laboratório, tornou num fenómeno dentro de um universo particular e que passou na TV linear, é irrepetível?
Não estava cá na altura em que foi lançado. Mas quando há algo que se torna emblemático, fica como referência. A Casa do Cais vai ficar como referência. É possível que, eventualmente, apareça um projeto que rompa, mas não é fácil. O Pôr do Sol foi marcante, mas não se faz um todas as semanas. O Último a Sair, em 2011, também é outro caso: encontro-me ocasionalmente com o Bruno Nogueira e concordamos que é difícil fazer um projeto daqueles outra vez. Vai sempre ficar num pedestal como o Pôr do Sol ficará eventualmente. Outros surgirão, claro, no seu tempo.
Não lhe parece difícil trabalhar com orçamentos tão reduzidos como os que a RTP Lab oferece [entre 10 a 20 mil euros por série, sabe o Observador]? Não contribui para a ideia de que em Portugal se faz muito com pouco?
Há um fio condutor entre quem começa a trabalhar nesse laboratório e um produtor que já fez cinquenta projetos para a RTP: acha sempre que os valores de financiamento são muito baixos. Claro que se compararmos com o que se faz lá fora, são baixos. Os orçamentos estão sempre na casa do meio milhão na América Latina. Uma série na Argentina ou no Chile parte dos 600 ou 700 mil euros por episódio. Um episódio de trinta minutos parte dos 400 mil euros. Cá, esse valor é praticamente inalcançável para uma produção média. Até mesmo para uma grande produção. São valores quase impossíveis de alcançar. É preciso somar o dinheiro da RTP, do ICA, de uma plataforma de streaming, de um EuroImage e isso é extremamente raro. Acontece uma vez por ano, por vezes, de dois em dois anos. O financiamento tem a ver com a dimensão do país.
Por uma questão de transparência, uma série portuguesa, sem o apoio de uma HBO ou de uma Amazon, quanto custa?
Por vezes, podem ter outras participações financeiras, como televisões. Este ano, temos um projeto com a RTVE, por exemplo, com um canal islandês também ou até de televisões mais pequenas na Galiza e nas Canárias. Mas respondendo: não deveria ser rodada cá por menos de 200 mil euros por episódio. E depois, dependendo das características, também participamos em séries internacionais que custam um milhão de euros por episódio. Só que a nossa posição é minoritária.
Não são séries portuguesas, então.
Não. Têm um recorte mais internacional. O Glória não andava no milhão de euros, mas estava acima de meio milhão por episódio e a nossa participação foi bastante baixa. O Operação Maré Negra, que vai para a terceira temporada este ano, tem várias televisões lá metidas, mais a Amazon. Tudo junto permite fazer episódios na casa do milhão de euros, com muita ação, muitos efeitos especiais, com submarinos e estúdios aquáticos. Em Portugal, o apoio vem do ICA, do PIC ou da RTP. O que é importante é dar escala. Mas, sim, diria que se consegue 200 a 250 mil euros por episódio.
Quando uma plataforma de streaming entra, o salto é muito grande?
Cá só investem três. A Netflix vai na segunda temporada de Rabo de Peixe, que será um projeto, na prática, de dois anos. Uma série que não consiga financiar-se no ICA pode virar-se para as plataformas de streaming. Se não a série nunca iria acontecer. A RTP sozinha não consegue alavancar projetos com essa escala. Nem pouco mais ou menos. São precisos vários parceiros. É o que acontece no mundo inteiro. O trabalho do produtor é estar atento aos mercados, estar nos festivais, nas sessões de apresentação, em pitchings de projetos. Depois, há quem consiga reunir essas vontades todas e viabilizar a série. Há, contudo, projetos que nunca saem do papel.
Uma das suas ambições era que a RTP apostasse forte nas coproduções. Trabalhamos principalmente com Espanha, mas não só. Matilha tem, por exemplo, um produtor islandês. É possível que o país consiga romper ainda mais esses mercados?
Falta-nos continuidade. Em Portugal nunca se fizeram séries de forma contínua. E os apoios nunca foram contínuos. Há períodos em que existe uma estratégia e outros em que essa mesma estratégia é invertida. Em Espanha essa regularidade existe. E sim, o castelhano é uma língua universal com muitos milhões de falantes. Uma série pode passar no Chile ou na Argentina sem nenhum problema. As portuguesas não passam no Brasil. Não têm leitura. Porque têm de ser dobradas ou legendadas. Não houve essa habituação. Nós, sim, habituámo-nos a consumir cultura brasileira. Era importante que um país com 200 milhões de habitantes recebesse os nossos conteúdos de forma aberta. Não acontece. O cash rebate tem sido alterado, provocou um movimento dos nossos parceiros internacionais. Só agora é que vamos rodar uma série que devia ter sido rodada em 2022. Porque, em determinado momento, parou. Isso é muito mais pernicioso para nós. Quando trabalhamos com players internacionais, como estações de televisão ou grandes distribuidoras, quando lhes dizemos que talvez não haja dinheiro, eles viram-se para outro lado. E, da próxima vez, não acreditam em nós. Há realizadores que ficam parados depois de um filme, até fazer, por exemplo, uma série. Se tivéssemos os três principais canais a fazer dez séries por ano, acontecia o que acontece em Espanha e em França. Ou em Inglaterra. Ou na Alemanha. Toda a gente produz séries. Aqui, não. Há um canal a produzir. Logo, não é possível comparar. A Netflix comprou agora uma segunda temporada de Rabo de Peixe, certo, mas ainda não temos escala.
Não tem, portanto, a ver com a qualidade das nossas séries.
Não. Tem a ver com regularidade. De recursos e de estratégia. De produção e de apoios regulados que têm de ficar ativos ao fim de dez anos. O produtor tem de saber quando chega o dinheiro, quando começa e termina o concurso. Os produtores portugueses desta área vivem em aflição permanente com a questão financeira. Têm um investimento significativo na parte criativa e depois desperdiçam muito tempo nas finanças.
Fala dos atrasos do ICA?
Os atrasos todos. É preciso ser-se muito resiliente para se ser produtor de ficção em Portugal.
Porque é que tardou tanto em abrir portas a uma coprodução internacional com o Brasil? E teremos mais depois de Codex 632?
As plataformas começaram a chegar a Portugal com visão de investimento há três ou quatro anos. O Codex 632 foi trabalhado durante a pandemia. Tínhamos várias hipóteses. Este era um projeto antigo, com mais de dez anos. Nunca se tinha conseguido porque a escala de financiamento pedia um parceiro com músculo. Quando a Globoplay chegou cá, fizemos a mesma abordagem que fazemos à HBO ou Netlix. Funcionou bem. Temos duas ou três ideias na cabeça para manter esta ligação. As plataformas dão escala ao financiamento, porque sem esta ajuda nós, sozinhos, não conseguimos alavancar este tipo de projetos. Cada plataforma tem também um público mais orgânico, o que garante que mais gente vai ver. No Brasil, a Globoplay tem milhões de assinantes, ou seja, o potencial de contacto é muito grande. É o que queremos.
Pode garantir que isto vai acontecer mais vezes?
Diria que vai acontecer, sim.
“Se não houvesse RTP, não havia ficção histórica”
Falemos do Livro Branco lançado no ano passado [diagnóstico e desafios do serviço público de televisão]. O estudo diz a certa altura que a RTP “é o canal onde mais indivíduos veem séries nacionais, mas a preferência recai nas séries estrangeiras com mais ritmo e interesse”. Com Rabo de Peixe manifestou-se uma dinâmica diferente. Mas está a falhar algo?
Ouvi muita gente a falar do Glória. Fiz um périplo pelas universidades com excelentes reações à série. Mas voltando à preferência por séries estrangeiras: não sei com que base se diz isso. Uma série estrangeira na RTP2 faz 30 mil espectadores. Matilha, na estreia, fez meio milhão. Não sei em que se baseiam quando dizem que os portugueses preferem séries estrangeiras. Não sei mesmo. Talvez seja uma perceção de grupo, talvez, mas não está baseada em número de espectadores. Pode pedir os números à GFK e logo vê.
Mas meio milhão de espectadores é um número que o satisfaz?
É o nosso objetivo. Temos várias novelas que fazem abaixo do meio milhão de espectadores à noite. Em termos de ficção, esse conteúdo era o que conseguia mais audiência. Somando ao meio milhão, temos de adicionar os números das plataformas de streaming. Ou seja, quase que atingimos um milhão de espectadores.
No ano passado, todos os programas mais vistos na televisão portuguesa foram jogos de futebol.
Não concorremos com isso. A ficção francesa não concorre com o futebol francês na Champions. Nem a espanhola com o Real Madrid ou o Barcelona. Não é uma conta justa de se fazer. Tem a ver com os horários de emissão, com várias coisas. Quando colocamos um documentário no ar, a nossa expectativa é muito mais baixa do que quando olhamos para o entretenimento, com programas como o The Voice ou o Preço Certo. Um jogo da seleção transmitido por nós faz 2.3 a 2.4 milhões de espectadores. É mais do que o programa do Fernando Mendes. Não se pode comparar as audiências do futebol com qualquer outra coisa. Nem aqui, nem em lado nenhum. Não emitimos séries em estreia depois das 22h00. Só para públicos adultos das 22h00 à 00h00. Costumam arrancar às 21h00. 90%, diria. Não sei quantos espectadores auditados teve Rabo de Peixe. Não sei. Mas uma série, mesmo numa plataforma, não consegue 400 mil espectadores. Se todas tivessem esse número era um sucesso de mercado.
A aposta numa matriz mais histórica tem-se revelado um sucesso?
Somos os únicos a fazer ficção histórica. Se não houvesse RTP, não havia ficção histórica. Como também não havia documentários. Mas O Largo é contemporâneo, o Braga também, Curral de Moinas…
… Lusitânia, Histórias da Montanha, Abandonados, são históricas.
Temos sempre três ou quatro dentro desse género, sim. É uma das nossas linhas programáticas. Mas também temos thriller ou comédia. Se um português quiser ver uma ficção histórica sobre um autor português como O Crime do Padre Amaro, não vê em mais lado nenhum sem ser na RTP. Se não produzirmos, mais ninguém produz. Não teríamos memória em relação a temas tratados na ficção, de explicar aos mais novos a nossa história. Há muitos miúdos que tiveram contacto direto com os anos 60 e 70 por causa do Conta-me Como Foi. Há teses de doutoramento sobre esta série. Foi um marco na vida das pessoas. Não me passa pela cabeça, num ano inteiro, produzir só séries contemporâneas, que se passem na atualidade.
Não é mais complicado conseguir vender uma série histórica portuguesa no mercado internacional?
Sim, mas por exemplo, o Conta-me Como Foi…
Não se enquadra tanto na ideia de “série de época”…
Mas histórico não é só o The Crown. E os americanos têm recursos que nós não temos. Nunca, até hoje, conseguimos fazer um grande filme sobre o Luís Vaz de Camões.
Essa preocupação deve constar na carta dos operadores públicos de televisão, então.
Vários outros canais o fazem, como a BBC. Todos os operadores públicos o fazem. E vamos continuar a fazer porque não podemos ficar sem o nosso património audiovisual.
Qual é o problema do contemporâneo?
Não tem problema nenhum. Se fizermos doze séries, sete podem ser contemporâneas, por exemplo. O que digo é que não vamos fazer só um perfil de séries. Não vamos fazer só thrillers ou comédias.
Há uns anos, numa entrevista ao jornal Sol, disse que a RTP corria o risco de perder a sua relevância. Ainda acredita nisso?
Temos resistido bem. Quando olho para os nossos números de 2023, olhando também para a RTP2, não caímos de um ano para o outro. E foi um ano muito agressivo para todas as televisões. No serviço público há uma tendência para contrariar a perda de audiências. Até subiram. Claro que há sempre esse risco. Quando falei dessa perda de relevância sabia o que estava a dizer. Porque esse risco é de quem não está com atenção, de quem não segue os públicos e as tendências de consumo. Ou de quem não consegue tomar decisões no tempo certo. Se se espera por tomar uma decisão, pode ser tarde demais. Há um lado pioneiro, a nível digital, com a criação da RTP Play que funciona muito bem com os recursos que temos. A Netlix é o segundo operador de streaming em Portugal, nós aparecemos primeiro. Vejo países atrás de nós e outros à frente, em capacidade de ocupar estes espaços porque o público de hoje é muito móvel. Estão nos computadores, nos telemóveis, nas televisões inteligentes, nas aplicações. Temos acompanhado todos esses movimentos. E depois temos a vantagem da diversidade e da qualidade em todos os formatos. Sou suspeito, mas temos. O portfólio de entretenimento com Preço Certo, The Voice, Masterchef, Joker ou Got Talent, têm uma grande capacidade de ligação ao público.
Mesmo após tantas e tantas temporadas.
Sim.
Isso não mostra uma postura conservadora? Algo como “em equipa que ganha não se mexe”?
Há sempre alterações de formatos. Ainda há poucos dias estreámos o Got Talent e quem viu a última edição antes desta percebeu que parecem dois programas diferentes. Olha-se para o Taskmaster e parece um clássico, mas só há dois anos é que a primeira temporada se estreou. Estamos sempre a acompanhar novos formatos. Neste momento temos um talk-show à segunda-feira com o Fábio Porchat, outro à quarta-feira com o Herman José, à quinta-feira temos o Gilmário Vemba no Cinco Para a Meia Noite e à sexta-feira um talk-show de fados. É um privilégio porque são formatos de baixo custo com grandes nomes. Um é um dos melhores humoristas do Brasil, outro é dos melhores em Angola e o Herman José, o melhor humorista português de todos os tempos. Há programas que são até feitos dentro das nossas instalações. Isto é diversidade, de segunda à sexta-feira, o público reconhece.
Mesmo que reconheça, os quatro canais generalistas há dez anos tinham 59,4% do share e agora têm 41,5%. 30% dos espectadores procuraram outros formatos.
4Os mercados não são estáticos. Em 1990, a RTP tinha 95% dos telespectadores. Quando acaba o canal público, com a televisão por cabo, com a década de 2010, com gravações nas boxes, com a entrada do streaming, seria um absurdo imaginar um cenário em que, de repente, o número aumenta e os players tradicionais continuavam com os mesmos números.
Ou seja, com 30% até se consegue trabalhar.
É preciso não esquecer os outros canais dentro desses quatro, como a SIC Mulher ou a SIC Kids. Os canais temáticos somam público. Quando lançamos conteúdos no streaming, também o estamos a fazer. O Pôr do Sol tem uma relevância digital idêntica à do linear. O problema era se não estivesse atento, se andasse aqui a dormir, a fazer programas de televisão para meter às 21h00 da noite. Isso seria um erro absolutamente trágico e a tal perda de relevância da RTP. Lançar canais novos, ou até podcasts, é ir à procura dos espectadores. Ainda não conseguimos colocar o meio a pensar nisto tudo, depende sempre muito das audiências da GfK. Claro que internamente já pensamos na audiência em todos esses lugares. Com a inteligência artificial conseguiremos perceber melhor ainda. Se acompanharmos os produtores, do documentário ao telefilme, do entretenimento à informação de referência, vamos fazer esta transição. Do que se passa no mundo inteiro. Já não estamos nos anos 80.
Não é preocupante ter apenas 9% de pessoas dos 25 aos 44 anos a ver conteúdos na televisão linear?
Se tivesse zero pessoas no digital, aí sim, seria preocupante.
Referiu o Herman José. Como está o humor na televisão generalista? Há pouco falámos do Último a Sair e de como é difícil ter programas assim.
Aconteceu num determinado contexto. Nem quisemos fazer uma segunda versão desse programa. Também chegámos à segunda temporada de Pôr do Sol e interrompemos. Se fosse noutro lado fazíamos quatro ou cinco temporadas. Mas queremos que as pessoas fiquem com o sabor de que foi marcante. Fizemos o filme e acabou.
O sucesso dessa comédia não se explica por parecer uma espécie de oásis?
Não consigo dizer isso. Acho que tinha todas as condições para ser feito como foi, de funcionar como funcionou. Se tivesse sido este verão, funcionaria outra vez. Por exemplo, todos os anos, com o Bruno Nogueira, fazíamos um projeto novo. O Último a Sair não é replicável. É preciso encontrar projetos com esse lado inovador.
Não lhe têm chegado?
O Taskmaster também tem essas características.
Mas não é um produto original português.
A forma como o fazemos é original.
Tem também duas figuras de sucesso como o Vasco Palmeirim e o Nuno Markl.
Mais as quatro que participam. Funciona muitíssimo bem.
Falo de um programa de raiz autoral.
Estamos a trabalhar nesse sentido para este ano. O humor está em vários espaços. O Cá Por Casa do Herman é um formato de sketches fantásticos todas as quartas-feiras. Pode ficar no ar ainda muitos mais anos. Haverá propostas novas de humor. De infotainment, também.
O Programa Cautelar é para voltar? Ou é demasiado ambicioso?
Não é nada ambicioso. Estou muito satisfeito com a performance do programa. É um pouco camaleónico. É altamente estimulante para o espectador e também provocador. Questiona-o. Envolve-o. Está prevista mais uma temporada. Depois veremos. Esse programa faz parte da literacia mediática. O Pôr do Sol descodifica muitos processos, ensina as pessoas a ver televisão, de quem pode não ter esse grau de atenção. Ensina a ver dramaturgia na televisão. O programa da Filomena Cautela também tem essa vocação, com ingredientes e estéticas muito raras de conseguir neste formato. Demora muito tempo a montar, é um produto muito exigente.
É caro?
É muito exigente para quem faz. Muito tempo de preparação. Tem duas equipas de jornalistas e criativos. Um trabalho gráfico demorado. A atualidade, por vezes, obriga a mudar o programa. Não é aconselhável fazer temporadas grandes.
“Cada operador deve encontrar o seu espaço. É um país pequeno sem recursos extraordinários”
Voltando às questões da grelha e ao que falávamos sobre os jogos de futebol: a televisão ainda é “uma mesmice”, como disse uma vez?
Depois de ter dito isso numa entrevista muita coisa mudou no espaço televisivo. Já não poderia dizer a mesma coisa. A SIC fez uma grande reestruturação, a TVI mudou de proprietário. A RTP também fez alterações significativas. O streaming entrou no mercado e é óbvio que isso beneficiou, e muito, a ficção nacional. Todos os canais, da Ásia à América, tiveram de reagir. Sem a entrada desses operadores a realidade teria sido outra. Disse isso da “mesmice” num período de crise em Portugal. Estava tudo muito parado. Olhava para a televisão e não acontecia nada.
Há telejornais a copiarem-se uns aos outros, temos formatos como o Big Brother que ainda estão no ar. Isso não é uma mesmice?
Não quero falar dos conteúdos dos outros.
Certo, mas tenho de fazer a pergunta na mesma.
Sim, mas não vou falar. Cada operador deve encontrar o seu espaço. É um país pequeno sem recursos extraordinários. O nosso privilégio é trabalhar com equipas diversas, fora e dentro da RTP. O meu dia, de manhã à noite, é muito preenchido com atividades muito diferentes. Não é igual a trabalhar num operador privado. E eu fi-lo. Claro que há situações exóticas, como o tempo dos telejornais, que não é o caso do nosso canal. Mas há uma gama informativa muito interessante comparando com outros países suportados por investimentos em equipas de investigação. Há jornalismo de proximidade. Capacidade de estar nos grandes acontecimentos com um olhar português. A rádio já não o consegue fazer. Os jornais, pouco ou nada. Não é por acaso que a informação continua a ser muito vista no pequeno ecrã. Nos canais generalistas. O noticiário das oito é uma referência para milhões de portugueses todos os dias. Essa oferta preenche lacunas.
Acha que a taxa do audiovisual, que não é atualizada desde 2016, deveria aumentar face aos custos com a inflação?
Não vou falar de gestão da RTP.
Falemos então sobre a ideia que tem corrido sobre a chamada “televisão de prestígio” americana, de séries emblemáticas como The Wire ou Breaking Bad, estar à beira do fim. Várias plataformas de streaming entraram numa rota de despedimentos coletivos. A Netflix cortou cerca de cem programas o ano passado. A publicidade vai entrar. O serviço público pode ganhar aqui uma nova oportunidade ou está condenado nesta luta de tubarões?
Trabalho em televisão há mais de 30 anos. Começámos a escrever à máquina, hoje estamos a falar em inteligência artificial. Temos de oferecer os melhores conteúdos nas várias áreas de distribuição. A capacidade de oferta centrada nas plataformas está mais virada para a quantidade do que para a qualidade. De se desenharem séries a partir de algoritmos, dando ao espectador exatamente o mesmo tipo de conteúdo. Provoca cansaço. Estamos a chegar a um ponto de maturidade. Não foram só os canais generalistas que sofreram erosão. Há muitas, muitas plataformas na Europa e nos Estados Unidos.
Mesmo em termos de assinaturas o streaming não sofreu assim tanto como se esperava com o fim da partilha de contas. Estão até a pegar no modelo televisivo com a entrada da publicidade.
Há um perigo do cansaço do espectador por ter conteúdos semelhantes. Claro que faltam séries de prestígio. As televisões ainda têm uma capacidade grande de agregação. Quando se lança uma série, é vista por muita gente. Se séries lançadas em 2008 tivessem sido compradas por várias televisões estrangeiras, provavelmente teriam um sucesso que hoje não têm. As pessoas não conseguem acompanhar o ritmo de lançamento de conteúdos. Há, por isso dois perigos: saturação do espectador e mesmice de conteúdo. O que pode acontecer é que a próxima série pode vir a ser desenhada com o mesmo modelo e isso vai alterar a diversidade.
Existe uma oportunidade para os países pequenos ou estamos só a correr atrás do prejuízo?
O facto de a nossa oferta comercial ser ainda marcada por conteúdo monotemático, como é o caso da novela, abre uma oportunidade para a ficção nas séries e no cinema. Há, depois, a tendência de se investir em entretenimento e em desporto nas plataformas. Como será a distribuição daqui a dez anos? Pode estar tudo na internet. Ou só vamos ver televisão por streaming.
Já se anunciou a morte da rádio, há quem fale da morte da televisão. Um exagero?
A televisão nunca desapareceu. A rádio também não. Olhamos para o streaming como olhámos para o cabo. Quando tivemos o satélite fizemos a RTP Internacional. Era impossível antes. Nos anos 80 apareceu a tecnologia de distribuição das ondas de rádio em FM, muito fáceis de comprar e baratas, qualquer pessoa podia comprar um emissor, punha a antena no telhado e tinha uma rádio local em casa. Posso fazer um canal de televisão em casa, se alguém vê, é outra história. Há poucas marcas a extinguirem-se. Há marcas americanas que vão todas para um século de existência. São compradas, mas continuam a ser grandes.
“O jornalismo para ser bom tem de ser muito exigente”
Sobre a atualidade do jornalismo português, passou por vários meios de comunicação e já se mostrou crítico da realidade que vivemos. Episódios como termos um ministro a ligar para RTP a fazer perguntas sobre um cartoon, como se relaciona com esta questão?
Posso dizer-lhe que não ligou para mim. Esse episódio já foi bem explicado, as pessoas, hoje em dia, já percebem. Houve alguma emoção do momento mas o que tinha de ser feito, foi feito. O cartoon foi emitido, continua a ser emitido e portanto não houve alteração de rumo.
Esteve na TSF, que enfrenta salários em atraso, tal como todo o grupo do qual faz parte, o Global Media. É um caminho difícil de inverter?
Estive na equipa fundadora da TSF. Há pouquíssimos exemplos no setor privado com rádios. Estava a tentar lembrar-me e não me lembro. Rádios de informação com a ambição da TSF, de estar presente e de serem projetos privados. Pode haver casos. Mas a TSF é all news. Estação de informação. Portanto, tem limites de audiência naturais. Sempre os ultrapassou. É uma grande marca, fortíssima, que está presente no quotidiano de muitos portugueses. Penso que vai ultrapassar este tempo difícil e espero que as pessoas que fazem parte da TSF tenham essa resiliência. Essa capacidade de dar a volta.
O setor deveria fazer uma auto-análise? Tivemos agora o congresso de jornalistas…
Não existe um jornalismo, existem muitos jornalistas. Existem muitos conteúdos… como é que hei de dizer isto… “alegadamente jornalísticos” que passam por essa designação, mas que têm muito pouco de jornalismo. Estão lá misturados. Ainda sou jornalista e muito crítico. Até mesmo dentro dos locais onde trabalho. O jornalismo para ser bom tem de ser muito exigente, ter atividade 24 horas por dia, ter envolvimento das equipas. Tem de estar sempre atento a movimentações que tentam mentir e manipular. É obrigatória uma relação de confiança com o ouvinte, o leitor e o espectador. Com um código inabalável do ponto de vista ético. É extremamente difícil de conseguir. As redações têm pouca gente, as tecnologias misturaram um conjunto de soluções que passam ao lado da profissão. A dependência da publicidade. Porque quando não há, ou quando temos muitos players à procura dela, não é fácil manter o rumo consistente. A imprensa escrita tem sido muito afetada pela área digital. No mundo inteiro. É importante que se olhe para estes projetos não como um negócio, mas como uma atividade fundamental. Não quero estar a dizer banalidades muito repetidas, é mesmo fundamental.
A RTP tem também sido notícia por casos de precariedade dentro das redações mesmo que apresente resultados positivos nos seus relatórios de contas. Claro que os custos operacionais aumentaram por causa da integração de pessoas nos quadros da empresa. Mas o serviço público tem de dar o exemplo?
Sim e temos dado. Claro que há situações que têm de ser corrigidas. Quer na área do jornalismo como de recursos humanos. Mas não é a minha área, não quero estar aqui…
E sobre uma eventual quota de cultura nas notícias, faz sentido?
Não, não faz. Essas são decisões das equipas dos noticiários. Que definem o alinhamento. Haver uma obrigação à cabeça de três minutos de economia, quatro de política, cinco de desporto, seria uma intermissão completamente absurda.
E o cheque para os portugueses pagarem jornais? Ou a Lusa passar a ser gratuita para os jornais?
Não sei se são medidas suficientes. Existem países na Europa com soluções de apoio transversal. Há quem apoie rádios locais para a transição tecnológica. É sempre possível ser mais criativo. E no país também, claro.
Já deixou cargos de chefia por cansaço. Como se sente agora?
Não saí apenas por estar cansado. Havia outros motivos. Fiz uma transição de um projeto para outros. Tenho estado envolvido em muitos ao longo da vida. Trabalhei na generalidade dos grupos de média em Portugal. Sempre muito estimulante. Quando entrei na RTP em 2018, já tinha estado cá. É a quarta vez. Em 1988 como repórter, como diretor de informação em 2001 e diretor de programas entre 2008 e 2011. Há sempre projetos novos. Agora é um período dinâmico, há outros mais parados. É muito apelativo trabalhar nesta área agora. Muita coisa a acontecer. Há uma perspetiva de um mercado global. Há uns anos competíamos pela atenção dos espectadores com a TVI e a SIC. Agora, não. Combatemos contra grandes consórcios de entretenimento, de desporto e por aí. Estamos sempre a pensar em muito mais conteúdo do que antigamente. Quando preencho uma grelha de 24 horas não é a mesma coisa que preencher uma plataforma que não tem limites. Não posso colocar mil séries no ar, mas é um grande momento para se viver.