A antiga pivô Heather Unruh sentava-se diante das câmaras, como tantas vezes o fez. Naquele dia, enquanto mãe. Sentava-se para dizer: “[Kevin] Spacey enfiou a mão dentro das calças do meu filho e agarrou-lhe os genitais. Os esforços do meu filho para mover o seu corpo e tentar tirar a mão de Spacey tiveram apenas sucesso momentaneamente. O meu filho entrou em pânico, congelou. Ele estava embriagado”. Vencedora de vários prémios pelo seu trabalho enquanto pivô, Unruh expunha assim toda a história de como o filho, na altura com 18 anos, teria sido agredido sexualmente pelo ator norte-americano. É a história que vai levar Spacey a tribunal esta segunda-feira, dia 7.
Vestida de preto, segurava na mão um lenço branco com que ia limpando as lágrimas. Unruh tinha convocado uma conferência de imprensa, no dia 8 de novembro, para contar todos os detalhes sobre aquela noite de julho de 2016. “A vítima, o meu filho, era um jovem de 18 anos, heterossexual, encantado com as celebridades, que não fazia ideia que o ator famoso era um predador sexual ou que ele estava prestes a tornar-se a sua próxima vítima”, continuava a antiga pivô do canal de televisão WCVB-TV. Emocionada, Unruh deixava claro que o seu filho não tinha consentido aqueles atos, que considera criminosos.
Tudo terá acontecido no The Club Car, um bar no condado de Nantucket, no estado norte-americano de Massachusetts, onde o filho de Heather Unruh conheceu Kevin Spacey e ficou fascinado. A antiga jornalista admite que o filho disse, embora fosse mentira, que tinha idade legal para beber — nos Estados Unidos só é permitido consumir bebidas alcoólicas a partir dos 21 anos. Assim, Spacey “comprou-lhe bebida atrás de bebida atrás de bebida atrás de bebida”. “Quando o meu filho estava bêbado, Spacey deu o passo em frente e agrediu-o sexualmente”, continuou.
Terá sido uma mulher que ajudou o filho de Heather Unruh. Depois de o ter agredido sexualmente, segundo a antiga jornalista, Spacey deixou um convite: continuar a noite numa festa privada. O jovem terá então sido abordado, quando se dirigia à casa de banho, por uma mulher que assistiu ao sucedido e que “lhe disse para correr e foi o que ele fez — correu tão rápido quanto podia”. Até à casa da sua avó, não muito longe dali.
Já na casa, acordou a irmã e ambos ligaram à mãe, que se encontrava em Boston. Chegou no dia seguinte. “Nada poderia ter preparado o meu filho para como esta agressão sexual o faria sentir enquanto homem. Isto prejudicou-o e não pode ser desfeito. Enquanto ele foi tentando o seu melhor para lidar com isto, como ele costuma dizer, está sempre presente e continua a incomodá-lo. Ele não pode apagar isto”, desabafou Unruh, acrescentando que, embora o filho não tenha querido fazer queixa do ator na altura, “em grande parte pela vergonha e pelo medo”, fê-lo uma semana antes da conferência de imprensa.
A antiga jornalista, que estava acompanhada pela filha e pelo advogado, aproveitou ainda para mandar uma mensagem diretamente ao alegado agressor do filho. “Ao Kevin Spacey, quero dizer isto: devia ter vergonha pelo que fez ao meu filho. E devia ter vergonha por usar o seu pedido de desculpas a Anthony Rapp para se assumir como gay. Foi uma tentativa terrível de desviar a atenção daquilo que realmente é: um predador sexual. As suas ações são criminosas.”
[Veja o vídeo completo da conferência de imprensa de Heather Unruh, no dia 8 de novembro]
Foi a primeira vez que Unruh falou sobre o caso. A antiga jornalista já tinha levantado a ponta do véu, com um tweet feito a 13 de outubro. Tinha passado uma semana desde que o caso de Harvey Weinstein — que desencadeou uma onda de acusações de assédio sexual que viriam a originar o movimento #MeToo — tinha sido revelado. “O escândalo de Weinstein encorajou-me. É a hora da verdade. Eu era uma fã de Kevin Spacey até ele agredir um ente querido. É hora de os dominós caírem”, escrevia na publicação.
https://twitter.com/HeatherUnruh/status/918909971001217025?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E918909971001217025&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.boston.com%2Fculture%2Fnational-news%2F2017%2F11%2F08%2Fkevin-spacey-to-be-accused-of-nantucket-sexual-assault-wednesday-morning
O tweet de Unruh, que tinha passado despercebido na altura, tornou-se viral duas semanas depois, a 29 de outubro, quando o Buzzfeed publicou um artigo em que Anthony Rapp dizia que Spacey o teria agredido sexualmente quando tinha 14 anos e o ator tinha à volta de 20. Foi o primeiro caso de assédio sexual a envolver Spacey alguma vez revelado — na sequência do rol de casos a envolver grandes nomes de Hollywood. Muitos mais se seguiram. O número de pessoas a acusar o ator vencedor de vários óscares ultrapassa já as três dezenas.
Do ator Anthony Rapp aos colegas de House of Cards
O primeiro caso relatado terá acontecido em 1986, quando a alegada vítima, o ator Anthony Rapp, tinha apenas 14 anos e Spacey tinha 26. Ter-se-ão tornado amigos e Spacey terá convidado Rapp para várias festas. Numa delas, o jovem terá ido para o quarto ver televisão porque achou que a festa estava muito aborrecida. No final da festa, Spacey foi até ao quarto: “Ele ficou parado à porta, como que a balançar-se. A primeira impressão que tive foi que estava embriagado… pegou em mim como os noivos pegam nas noivas. Mas eu não saí logo, porque só pensava ‘o que é que se está a passar?’. E depois ele deitou-se em cima de mim”, relatou Anthony Rapp ao BuzzFeed News.
Spacey reagiu de imediato, usando o Twitter para pedir desculpa, apesar de não se lembrar do episódio: “Honestamente, não me lembro desta ocasião, foi há mais de 30 anos. Mas se eu de facto me comportei como ele descreve, devo-lhe o mais sincero pedido de desculpas por aquilo que terá sido um comportamento alcoolizado e profundamente inapropriado, e lamento todos os sentimentos que ele descreve ter carregado com ele todos estes anos”.
Ao mesmo tempo, Spacey anunciava estar a viver como homossexual depois de ter tido relações com mulheres e homens. “Esta história encorajou-me a falar sobre outros aspetos da minha vida. Sei que há histórias sobre mim a circular por aí e que algumas delas foram motivadas pelo fato de ter sido sempre tão cuidadoso com a minha privacidade. Como as pessoas mais próximas de mim sabem, tive relacionamentos com homens e mulheres. Amei e tive encontros amorosos com homens durante toda a minha vida e agora escolhi viver como um homem gay“, escrevia Spacey. Este anúncio viria a ser alvo de críticas, um delas por parte de Unruh, pelo facto de o ator tentar desviar a atenção da acusação.
— Kevin Spacey (@KevinSpacey) October 30, 2017
Depois disso não pararam de ser conhecidos novos casos, com vários detalhes em comum: um primeiro interesse numa amizade, convites para ir a sua casa ou a festas, o contacto físico crescente, a presença de álcool e Spacey a encurralar as vítimas. Ao todo, são mais de três dezenas de pessoas a acusar o ator norte-americano. A vítima mais nova teria 14 anos quando foi agredida sexualmente por Spacey. Alguns quiseram ficar no anonimato, outros nem tanto: Kate Edwards, Justin Dawes, Mark Ebenhoch, Tony Montana, Kris Nixon, Ari Behn, Harry Dreyfuss e Daniel Beal.
Em novembro de 2017, o teatro londrino Old Vic — onde Kevin Spacey foi diretor artístico a partir de 2004 –, anunciou ter recebido denúncias de, pelo menos, 20 jovens que davam conta de comportamentos inapropriados por parte do ator. A maioria dos casos aconteceram com jovens atores ou profissionais no começo da carreira. Uma jornalista contou ao BuzzFeed que foi agredida sexualmente “de forma agressiva” por Spacey, no escritório no Old Vic, onde tinha combinado uma entrevista com o então diretor artístico.
Oito pessoas que trabalham ou já trabalharam na série de televisão “House of Cards” contaram à CNN que Spacey tinha um comportamento “predatório”. As alegadas vítimas explicaram que o ator assediava ou iniciava contacto físico não consensual com a equipa de produção, tendo como alvo homens jovens. Uma delas disse que Spacey a tocou de forma inadequada durante as seis temporadas da série, apesar de lhe ter pedido para parar.
Quase um ano desaparecido, Spacey surge em vídeo: “Não vou pagar pelo que não fiz”
Na sequência do escândalo sexual a envolver o ator Anthony Rapp, a Netflix dispensou Spacey e suspendeu a série “House of Cards”, em que o ator interpretava o papel de Frank Underwood — a série acabaria por ser retomada já sem Spacey. O realizador Ridley Scott, em conjunto com a produtora Sony Pictures, decidiu substitui-lo no filme “All The Money In The World”, a cerca de um mês da data de estreia. O seu agente rescindiu o contrato com ator. Kevin Spacey desapareceu e nunca mais foi visto.
Kevin Spacey. Polémicas, segredos e rumores do misterioso ator
Até ao passado dia 24 de dezembro — o mesmo dia em que o procurador Michael O’Keede anunciou que Kevin Spacey seria formalmente acusado de agressão sexual e lesão corporal ao filho de Heather Unruh. Nesse dia, o ator publicou um vídeo chamado “Let Me Be Frank” (“Vou ser franco”, em português) — um trocadilho com o nome da sua personagem na série “House of Cards”, Frank Underwood. Usando a voz do seu personagem, o ator defende-se de acusações,sem deixar claro se se está a referir às acusações que enfrenta na vida real ou da sua personagem que teve uma morte planeada. “Estão mortos por me ouvir declarar que tudo o que disseram é verdade e que tive o que merecia. Mas não vou pagar pelo que não fiz”, diz, deixando claro que, em breve, será conhecida “toda a verdade”.
Let Me Be Frank https://t.co/OzVGsX6Xbz
— Kevin Spacey (@KevinSpacey) December 24, 2018
É o caso do filho de Unruh — cujo nome nunca foi revelado — que vai levar o ator a uma audiência no tribunal de Nantucket no estado norte-americano de Massachusetts, esta segunda-feira. Spacey chegou a pedir um requerimento para não comparecer fisicamente no tribunal, justificando-se com o facto de não residir no estado onde irá decorrer a audiência e por acreditar que a sua presença “irá ampliar a publicidade negativa já gerada em conexão com este caso”. O juiz negou. Kevin Spacey já deixou claro que vai declarar-se inocente.