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O cadáver 235 chega à sala de autópsias dentro de um saco preto. É colocado na mesa. Abre-se o fecho. É um homem, tem cabelo castanho e uma palavra tatuada no pescoço. Os dados que acompanham o cadáver indicam que estava enterrado numa vala comum, juntamente com dezenas de outros corpos — e nada mais. Idade aparente? Entre 20 e 30 anos. Na cara, alguns arranhões. As mãos estão atadas atrás das costas, foram atadas ainda antes de morrer — a folha de anotações, base do relatório final, começa a compor-se. Em cada joelho, marcas do impacto de um disparo com uma arma de fogo. É uma lesão muito comum em cenários de guerra. Tê-lo-á impedido de fugir, mas também deu origem a grandes infeções às quais não conseguiu sobreviver. Relatório de autópsia concluído: o cadáver 235 é colocado num saco novo e limpo e mantido em contentores frigoríficos até que o tribunal determine o que fazer com aqueles restos mortais.
Foi assim após a guerra dos Balcãs. É assim em cenários com múltiplas vítimas mortais — nos quais se inclui a guerra da Ucrânia — mas também em desastres naturais. É um trabalho metódico e tem de ser feito de forma sistematizada para que nada escape e para que se consiga atingir os dois objetivos: identificar os cadáveres — mais difícil nestes casos de conflitos armados — e detetar sinais da prática de crimes de guerra. O resultado traduz-se em centenas ou milhares de relatórios de autópsias, um por cada cadáver, que se vão somando à investigação que está por trás deste trabalho forense, crucial para levar a julgamento os responsáveis por crimes de guerra. “Pomo-nos na década de 20 do século XXI, estamos noutro conflito armado, o que vai acontecer? Certamente isto. O que se fez no ano 2000 vai repetir-se na Ucrânia, certamente: ir às valas comuns, fazer exumações, retirar os cadáveres e fazer-se os exames”.
Maria Cristina Mendonça é médica legista e coordena a Unidade de Intervenção Forense em Catástrofes do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciência Forense (INMLCF). Os Balcãs foram apenas uma das dezenas de missões internacionais em que participou ao longo de uma carreira de 35 anos — Costa de Marfim, República Democrática do Congo ou Colômbia também se juntam à lista. Todos eles, “cenários terríveis”, que agora vê repetirem-se na Ucrânia e que, por isso, não lhe são estranhos. Nos Balcãs, também autopsiou corpos que tinham sido enterrados por familiares nos jardins das suas casas, populações inteiras mortas em explosões ou a tiro, cadáveres encontrados meses depois nas ruas — como aconteceu em Bucha, onde as forças ucranianas só conseguiram voltar depois de um mês e meio de ocupação russa —, alguns enterrados em valas comuns, sem critério e sem qualquer tipo de proteção.
São cenários que trazem dificuldades. “A decomposição é o pior inimigo do patologista forense”, diz Maria Cristina Mendonça ao Observador. Os cadáveres carbonizados também são um inimigo à investigação, especialmente porque impedem a identificação visual. Mas a experiência permite-lhe concluir: “Há uma panóplia de lesões que são facilmente identificáveis como lesões de crimes de guerra.” E prova disso foi a detenção e o julgamento de Slobodan Milošević, presidente da República Federal da Jugoslávia de 1997 a 2000, pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (Milošević seria encontrado morto na sua cela em março de 2006, muito antes do desfecho do julgamento). Vários países pedem agora que também Vladimir Putin seja detido e julgado por alegados crimes de guerra praticados em solo ucraniano.
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Disparos na cabeça e no tronco, lesões de fragmentos metálicos e traumatismos são as lesões mais frequentes em cenários de guerra
“Na altura ainda não havia emails“, começa por lembrar a médica-legista. “Por isso, a ONU fez uma espécie de uma mailing list postal com todos os médicos inscritos na Academia Internacional de Medicina Legal, pedindo patologistas forenses que se quisessem voluntariar para ir para o terreno fazer o estudo daqueles cadáveres. Na altura, recebi a carta, fiquei entusiasmadíssima e fui.” Havia médicos de todo o mundo: “Mobilizaram-se muitos colegas. Eram equipas internacionais que conferem uma idoneidade indiscutível a estes resultados periciais, sem conflitos de interesses, em busca da verdade.”
O primeiro local onde esteve foi no Kosovo, no verão de 2000, e foi também o local onde passou mais semanas consecutivas em trabalho: um mês. Seguiram-se depois a Bósnia e a Croácia. “A guerra tinha acabado em julho de 1999. Houve logo uma chamada nesse verão, mas praticamente não foi ninguém, apenas uma equipa dinamarquesa”, já que “as condições no terreno ainda eram muito adversas”, conta a perita forense ao Observador. Há várias semelhanças entre a guerra dos Balcãs e a atual guerra na Ucrânia, mas há também uma diferença notória: o conflito em território ucraniano prossegue com intensidade — há bombardeamentos diários e combates quase corpo a corpo em algumas partes do território —, mas já foram enviados peritos forenses para o terreno. É normal? “Não há nada normal nestes cenários”, comenta simplesmente Maria Cristina Mendonça.
Certo é que, a 3 de março, o Tribunal Penal Internacional (TPI) abriu uma investigação aos eventuais crimes de guerra cometidos pela Rússia. As equipas do TPI mobilizaram-se para a Ucrânia para analisar os alegados crimes e o próprio procurador-chefe, o britânico Karim Khan, esteve em Bucha dias depois de a cidade ter sido recuperada pelas tropas ucranianas. Já no início de abril, uma equipa da polícia francesa chegou à Ucrânia para ajudar as autoridades ucranianas “nas investigações de crimes de guerra cometidos em Kiev” — foi o primeiro país a disponibilizar este tipo de ajuda, seguindo-se Espanha. A equipa estava acompanhada de dois médicos forenses que “poderão montar uma cadeia para examinar e identificar corpos”.
E os resultados dessas investigações começam a produzir resultados práticos. Esta semana, a procuradora-geral da Ucrânia revelou que há uma lista com os nomes de 40 suspeitos da prática de crimes de guerra e “mais de 11 mil” registos deste tipo de crimes. E, já esta sexta-feira, começou em Kiev o julgamento de Vadim Shishimarin, um sargento russo de 21 anos que é acusado de ter matado a tiro um civil desarmado na região de Sumy, a 28 de fevereiro.
We have over 11000 ongoing cases of war crimes and already 40 suspects. I am confident that in the nearest future we will see other cases being transferred to courts and perpetrators appearing before judges. We will ensure that these cases are brought to their logical end. pic.twitter.com/xnkLC6G5vy
— Iryna Venediktova (@VenediktovaIV) May 13, 2022
Uma das razões para o envio de equipas forenses para a Ucrânia pode explicar-se com a urgência em detetar sinais de crimes de guerra antes que se inicie o processo de decomposição dos corpos. Quando a coordenadora da Unidade de Intervenção Forense em Catástrofes do INMLCF esteve nos Balcãs, “havia cadáveres que já estavam esqueletizados, pois a ocorrência, em certos locais, tinha acontecido há quatro, cinco ou seis anos”. Ainda assim, isso não impediu que fosse encontrados sinais de violência.
Mais do que identificar a pessoa, a sua função era descobrir, através dessas lesões, se o que estava ali em causa “era uma morte violenta e se, dentro das mortes violentas, havia indícios de violência de guerra”. “Há uma panóplia de marcas que são facilmente identificáveis como lesões de crimes de guerra”, afirma, em entrevista ao Observador. As mais comuns? “Disparos na cabeça e no tronco, mas também a ação de fragmentos metálicos — nestes casos, há uma dispersão de fragmentos metálicos que vão atingir a pessoa e que a matam — e, também, traumatismos: se a pessoa é projetada [na sequência de uma explosão], pode vir a fazer muitas fraturas ou pode até o próprio corpo ficar fragmentado“.
Na lista de lesões, são detetáveis também os fuzilamentos, denunciados pelas marcas de projéteis nas costas e pelo “trajeto” que se percebe terem realizado: “De trás para a frente”, ou seja, entrando pelas costas da vítima e voltando a sair pela zona do peito. A quantidade de disparos também é reveladora: “Vários ferimentos de arma de fogo — não um nem dois, mas sete, oito ou 10 — podem levar à conclusão de que foram provocados por uma arma automática”. “Alguns ferimentos que se infligem nestas situações são disparos para os membros inferiores — para os joelhos, para os pés —, para as pessoas não fugirem. Não matam logo, mas como as condições de assistência médica são péssimas, [as vítimas] ficam com grandes infeções e acabam por morrer”.
Apesar de serem lesões “facilmente identificáveis”, também há dúvidas em “muitos” casos. “Uma fratura na perna, por exemplo. Podemos ter pessoas que se estão a deslocar em massa e caíram por uma ribanceira abaixo. Chegamos à conclusão de que houve aquele tipo de traumatismo, mas foi naquele contexto: a pessoa estava a fugir”, exemplifica Maria Cristina Mendonça ao Observador, continuando: “Também vamos encontrar pessoas que morreram de morte natural: cansaço, qualquer outra doença que não conseguiram superar, fome — percebe-se quando as pessoas estão muito desnutridas, pela perda de peso, mas também com exames ao fígado.”
Mesmo a fratura na perna, mesmo o cansaço ou a fome, “tudo isto vai juntando evidências para o caso judicial”. Porém, é a visão global que conta. “Se temos uma amostragem de população em que a grande maioria tem lesões violentas…”, afirma a médica-legista, sem concluir a frase.
Enterrar os corpos em valas comuns “é a melhor maneira de os tratar”. “Além da dignidade que se está a dar, facilita o trabalho forense”
Na primeira missão que fez, no Kosovo, Maria Cristina Mendonça esteve um mês a autopsiar cadáveres. “Quando os corpos chegavam, a informação de onde o corpo estava vinha sempre [inscrita nos registos]”, conta. Essa informação era recolhida localmente, perguntando-se “aos sobreviventes, com ajuda tradutores, o que acontecera naquele local”. Num cenário de guerra, há situações em que as vítimas mortais são deixadas exatamente no local em que perderam a vida — como aconteceu em Bucha e noutros locais da Ucrânia, com cadáveres abandonados à beira da estrada, num passeio, no quintal das suas casas. “Os sobreviventes, familiares ou não, não vão deixar aquele cadáver ali. E como não há autoridades que tomem conta das coisas, fazem uma cova no jardim ou num espaço em frente ao prédio e enterram o corpo, para não se degradar e para não lhe faltarem ao respeito”, relata a médica-legista.
Depois, seguindo as indicações dos sobreviventes, “vinham as equipas de exumação”. Ao fim da terceira semana em missão no Kosovo, a médica-legista pediu autorização para ir ver precisamente o trabalho de exumação feito pelos arqueólogos forenses. “Nós tínhamos um trabalho muito rotineiro. Os cadáveres chegavam-nos com a história de onde tinham sido encontrados, mas não conhecia o lado de lá”, diz ao Observador, acrescentando que estas equipas “iam a quintas, a terrenos atrás de uma casa, porque ali havia três pessoas, ou a jardins, porque lhe tinham dito que debaixo daquelas árvores havia uma família” — cenários que a médica-legista encontrou nos Balcãs, mas que agora se repetem na Ucrânia.
Mas a grande parte dos cadáveres são enterrados em valas comuns, à semelhança do que aconteceu em Bucha, situada a 25 quilómetros da capital ucraniana, onde foi preciso arranjar uma solução para colocar as dezenas de corpos encontrados espalhados pelas ruas, que não podiam ser enterrados no cemitério devido aos ataques russos. Além disso, as morgues ficaram sem eletricidade e muitos dos cadáveres que se foram acumulando ali tinham de ser retirados. Aos enviados do Observador à Ucrânia, o padre Andrii Holovin, reitor da Igreja de Santo André, contou que a opção foi enterrá-los “provisoriamente nos terrenos que ficam nas traseiras da igreja”.
Um procedimento comum, segundo a médica-legista do INLCF. “O que se faz é enterrar os corpos devidamente introduzidos em sacos próprios — ou lençóis, caso não existam — e com toda a dignidade que merecem, resguardá-los, para mais tarde voltar ao local e então aí poder fazer todo o trabalho forense que é necessário. Acaba por ser a forma melhor de os tratar: além da dignidade que se está a dar, facilita, no sentido em que individualizamos os restos mortais de cada um”, explica a coordenadora da Unidade de Intervenção Forense em Catástrofes do INMLCF ao Observador.
Colocar os corpos “sem os resguardar” e “separar” uns dos outros vai tornar o trabalho dos peritos forenses mais “difícil”. “O que não quer dizer que não se consiga fazer, apenas dificulta muito mais”, alerta Maria Cristina Mendonça. Nas cidades reconquistadas aos russos, têm vindo a ser encontradas valas comuns com centenas de cadáveres — na vala encontrada junto à igreja de Bucha, os cadáveres não estavam dentro de sacos nem resguardados de alguma forma.
Crimes de guerra dificilmente são encenados. Medicina legal permite saber se vítimas foram torturadas, violadas ou amarradas em vida
Bucha parecia uma cidade fantasma, após o rasto de morte deixado pela passagem das tropas russas. Corpos espalhados pelas ruas, alguns com as mãos atadas atrás das costas e com mordaças. Outros atropelados. Outros ainda baleados dentro dos próprios carros ou caídos ao lado de bicicletas. As imagens correram as redes sociais e chocaram o mundo e os líderes mundiais, mas o Ministério da Defesa da Rússia garantiu que os relatos de civis mortos em Bucha eram “falsos”. Numa mensagem partilhada no seu canal de Telegram, o Ministério argumentava que as forças ucranianas bombardearam Bucha após a retirada das forças russas, “o que também poderia ter levado à morte de civis”, e afirmava mesmo que, em dois momentos de um vídeo da cidade, os cadáveres mexiam-se, sugerindo que o cenário tinha sido encenado. Essa tese, como se comprovou mais tarde, não tinha qualquer sustentação.
Além disso, cenários em que houve crimes de guerra encenados são facilmente detetados pela medicina legal. Desde logo, as autópsias permitem “verificar se o local do aparecimento do cadáver é o local da morte”. “Pode ter morrido noutro sítio e alguém o ter deslocado — neste caso, a pessoa pode ter arranhões, por exemplo. Às vezes pode ter sido arrastado por correntes de agua. Está na nossa rotina normal da investigação da morte violenta”, explica Maria Cristina Mendonça.
Também a utilização de ligaduras e mordaças, que “já entram no campo da investigação de maus tratos e de tortura”, também se verificam através do trabalho dos peritos forenses”. “Podem deixar marcas profundas que se identificam” e é possível apurar se foram “feitas em vida ou se alguém a posteriori as provocou“, afirma a perita do INMLCF, explicando: “Está relacionado com a vitalidade das lesões: quando são feitas em vida, têm sinais de vitalidade, e quando vou provocar uma lesão num corpo já cadáver, aquele corpo já não responde nomeadamente a nível da infiltração sanguínea nas lesões.”
Igualmente em Bucha, Lyudmila Denisova, comissária dos Direitos Humanos da Ucrânia, denunciou um caso que envolveu 25 mulheres trancadas numa cave e violadas repetidamente. Também as violações são detetadas nas autópsias, mesmo que os cadáveres estejam já numa fase de decomposição avançada. “Já com algum grau de putrefação ainda se pode ver alguma coisa. E fazer colheitas específicas nas áreas genitais. É possível e é uma das matérias que se investiga”, explica a perita.
“A decomposição é o pior inimigo do patologista forense”. Corpos carbonizados também
Bucha esteve sob controlo das forças russas durante um mês. Só no 38.º dia de guerra na Ucrânia, já no início de abril, as tropas ucranianas conseguiram recuperar a cidade. Por isso, quando os cadáveres foram encontrados, muitos já estavam a entrar em decomposição — e esse “o pior inimigo do patologista forense”. “Quanto mais recente estiver o corpo, melhor se percebem todos os sinais que exibe. Entrando em decomposição, até à fase final que é a esqueletização, obviamente vai dificultar [a identificação dos corpos e deteção de crimes de guerra]. Mas não deixa de ser possível, com técnicas próprias chegar lá”, explica Maria Cristina Mendonça.
Por vezes, mesmo que reste apenas a estrutura óssea de um corpo, é possível perceber como morreram as pessoas: “Se houver no osso tradução da causa de morte, ela está lá. Um tiro, por exemplo. Agora, se no osso não houver tradução da causa de morte porque a causa de morte estava num órgão, aí já a investigação vai ter mais dificuldade”, detalha a perita forense, lembrando, no entanto, que, “por esta altura, na Ucrânia, ainda não se vai encontrar corpos esqueletizados”.
No entanto, têm sido encontrados corpos carbonizados. Dependendo do tempo que estiver submetido ao calor, um corpo carbonizado pode ter um “aspeto muito deteriorado” externamente, mas “por dentro” ser possível encontrar “vísceras, dentes e, às vezes, sangue”. Apesar de permitir o trabalho forense ao nível de deteção de crimes de guerra, “o reconhecimento visual [na identificação do cadáver] está muito prejudicado“.
Identificação dos corpos acaba por ser feita muitas vezes por reconhecimento visual. “Não há vagar para mais”
Num acidente aéreo, num sismo ou num tsunami, os países enviam todos os esforços de identificação dos seus cidadãos e, portanto, “as técnicas são usadas no tempo que for preciso para que não haja a entrega de um corpo a uma família que não lhe corresponde”. “Numa situação de guerra é diferente”, começa por explicar Maria Cristina Mendonça, para depois exemplificar: “Morre muita gente, podem morrer famílias inteiras, aldeias inteiras, genocídios e não haver ninguém para dar informação ante mortem [dados sobre a pessoa antes de morrer] para cruzar com informação post mortem [dados revelados pelo cadáver]. Passa-se por cima de muitas questões científicas porque o estado é de exceção”.
Por isso, neste tipo de catástrofes, “já não é possível uma identificação muito individualizada“. Já não há familiares ou vizinhos que possam identificar os corpos, “sem ser estranhos que digam alguma coisa”. “Por exemplo: nesta casa vivia um casal já idoso. E nós temos dois corpos. Vemos que um é feminino, outro é masculino, que mais ou menos são pessoas com alguma idade. Pronto, é o casal. E podia ser outra pessoa. Do ponto de vista científico, vale o que vale, mas numa situação de guerra não se limpam armas“, diz a perita forense.
Como se faz a identificação humana?
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“A identificação humana faz-se por comparação. Independentemente do estado em que se encontra, ao estudar o cadáver, tenho de retirar o perfil desse cadáver: se é homem, se é mulher, idade aparente, características. E depois cruzar esses dados com informações que me possam vir dos possíveis candidatos a ser aquele cadáver. Tenho de ir buscar a informação que me dá o cadáver — informações post mortem, que chamamos p.m. — e cruzar com a informação que nos dão as pessoas, os países de origem (no caso de termos vítimas estrangeiras), etc. — informações ante mortem, que chamamos a.m.
Do ponto de vista internacional, Portugal segue a metodologia da Interpol — que vai ter de ser sempre aplicada, independentemente do estado dos cadáveres. A metodologia supõe a comparação dos p.m. e dos os a.m. com três métodos básicos, que designam como científicos: impressões digitais ou a medicina dentária forense ou a genética forense, ou seja, o ADN — possível de recolher nos ossos, dentes, unhas ou no sangue. Vamos usar uma destas técnicas, não vamos usar as três, basta que uma nos dê uma identificação positiva, já temos a identificação.
Se o cadáver não dá possibilidade de usar nenhum destes três métodos científicos, podemos usar outros dados que chamamos secundários: que passa pela roupa, pelas tatuagens, cicatrizes. Mas não são científicos e pode haver pessoas com roupas trocadas ou duas pessoas com a mesma tatuagem.”
Maria Cristina Mendonça, médica-legista do INMLCF
Ainda assim, “não se vai deixar de tentar fazer algum tipo de técnica científica”. Isto é: primeiro, identificação através de impressões digitais; depois, através da medicina dentária forense; e, por fim, do ADN — esta é a ordem seguida e apenas se tenta uma nova técnica se a anterior não permitir tirar conclusões. Só que, além de o contexto ser um obstáculo, o estado do próprio cadáver também pode ser. “O cadáver, por vezes, está num estado de decomposição avançada ou de fragmentação — vamos imaginar uma explosão, a queda de um avião, alguma situação que tenha uma energia cinética muito grande — ou muito carbonizado ou incinerado — nos incêndios de Pedrógão havia cadáveres incinerados, já não estavam sequer carbonizados, estavam mais do que carbonizados”, exemplifica a médica-legista.
É em função do estado do cadáver que se vai aplicar uma, duas ou as três técnicas científicas, se necessário. “Não havendo mãos, não havendo dedos, estando o corpo carbonizado ou tendo apenas fragmentos, não podemos fazer impressões digitais”. Passa-se então à segunda opção: “Um cadáver que esteja fragmentado, mas que tenha arcada dentária, permite usar a medicina dentária forense. Mesmo nos corpos carbonizados, os dentes aguentam altas temperaturas”. Nos casos em que o cadáver já não tem dentes, usa-se a última opção: o ADN. “Só que o ADN é uma proteína. E a proteína também se desnaturaliza com o calor. Em cadáveres muito incinerados, também não podemos usar o ADN”.
Obstáculos atrás de obstáculos que fazem com que, num cenário de guerra, a forma de identificar cadáveres que à partida terá mais sucesso seja o reconhecimento visual. “Não há vagar para mais. Não há vagar tanto em termos temporais como em termos financeiros, porque são ocorrências que se sucedem. Os cadáveres vão-se acumulando. Não é uma ocorrência única“, explica Maria Cristina Mendonça, concluindo que, “num cenário de guerra, o que se consegue mais é identificar os crimes e não tanto a identificação dos cadáveres”.
Entregar um corpo à família é “um ato de direitos humanos”. Muitos ficam por identificar, mas mantêm uma “memória coletiva”
Para a médica-legista, “a identificação humana também é uma forma de fazer justiça“. “Trabalho nesta área há muitos anos e sempre entendi a identificação dos corpos e a entrega dos restos mortais às respetivas famílias como um ato de direitos humanos. Aquela família tem o direito de ser ressarcida com o seu ente querido”, afirma. “Mas, por vezes, não se chega a nenhuma conclusão” e o resultado são centenas ou milhares de corpos por identificar.
Anos depois de ter estado em missões nos Balcãs, a médica-legista voltou ao Kosovo para dar formação e visitou dois cemitérios “enormes”. “Em cada sepultura estava um pau com uma placa com um número. E havia toda uma base de dados a dizer que na cova com o número tal está um cadáver de um homem com idade aparente de trinta anos, acompanhado da ficha dentária, causa de morte e o perfil genético”, recorda, apontando: “Não sabemos se daqui a 50 anos aparece algum descendente que quer fazer uma análise de ADN. Os corpos estão lá, o trabalho está feito, a sinalização está feita, só que nunca houve cruzamento de dados porque provavelmente morreu a família toda, a aldeia toda”.
Nestes casos em que já não há família a quem entregar o corpo, “não se pode fazer mais nada”. “Mas o falecido mantém a sua dignidade. A sua memória é a memória coletiva, já não é individual e essa merece todo o respeito das comunidades sobreviventes e científicas”. À sensação de impotência, junta-se a pressão psicológica: afinal, o trabalho que estão a fazer é crucial para determinar a existência ou não de crimes de guerra e assim definir um período da história. “É um esforço grande e maior quando é em termos massivos e a ter de fazer muitos exames em condições que não são as melhores. São cenários complicados, mas estamos ali para fazer o nosso trabalho e para não nos emocionarmos com as coisas. É sempre muito cansativo, mas é gratificante“, diz Maria Cristina Mendonça.
No fim, o Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia teve realmente matéria para incriminar responsáveis por todas aquelas mortes: Ratko Mladic é o nome mais recordado, tal como a alcunha pela qual ficou conhecido, “Carniceiro dos Balcãs”. Slobodan Milošević morreu durante o julgamento e nunca a ser condenado. “Criámos muitos vínculos entre colegas e, quando ele foi preso manifestámos a nossa satisfação já com emails“, recorda a médica-legista, acrescentando: “Apercebemo-nos de que o nosso trabalho foi aquela gotinha de água que levou a que se fizesse justiça“.
Agora, 20 anos depois, iria para a Ucrânia fazer o mesmo trabalho que fez nos Balcãs? Maria Cristina Mendonça responde sem hesitar: “Sim. Se houver essa oportunidade e necessidade.”