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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Borodyanka. As histórias de quem viveu o massacre que Zelensky denunciou ao parlamento português

Todos os dias aparecem mais corpos. Esta sexta-feira foram mais 9. Valentina Ulento, 73 anos, viveu tudo sem sair da cidade e ainda questionou os russos: "Porque é que o Putin não veio?"

Texto e fotos dos enviados do Observador à Ucrânia, Carlos Diogo Santos e João Porfírio

Borodyanka é uma cidade a 50 km de Kiev que já não existe. Valentina Uso Ulento assistiu à sua destruição: não saiu quando os russos chegaram, ainda trocou umas palavras com uns “miúdos” de 18 ou 19 anos que Moscovo mandou e sabe ao detalhe como e porque foram feitas algumas das valas lá encontradas que Zelensky denunciou no parlamento português. Dados que, aliás, já estão desatualizados: só esta sexta-feira foram já encontrados outros nove corpos em covas abertas quando os russos estavam no controlo da região.

Mesmo ao pé da casa de Valentina, dentro do perímetro do hospital central, nos últimos dias as autoridades exumaram sete cadáveres que estavam numa dessas pequenas valas. Mesmo ao lado, em terrenos particulares que ficam atrás da Igreja, havia outros três corpos. Mas aquilo que para a polícia e o exército ucranianos — que já retomaram o controlo da cidade — são agora descobertas dos crimes cometidos pelos russos, para esta reformada de 73 anos foram o seu dia a dia. Durante dias que não deseja “a ninguém”.

“Nesta cova estavam 7 pessoas enterradas. Primeiro, na morgue estavam dois militares russos — na verdade, era um corpo e metade de outro — e duas mulheres, pessoas de Borodyanka”, conta, acrescentando que o calor fez com que fosse necessário encontrar outra solução para os cadáveres (“imagina como estavam, não é?”) que não a pequena casinha que fica nas traseiras do edifício do hospital, evacuado antes da ocupação russa.

“O padre ofereceu uma cruz, os serviços médicos que funcionavam deram material para isolar os corpos e depois perguntaram às pessoas que vivem aqui se podiam fazer esta vala. E enterraram-nos. Os médicos fizeram até um esquema, para perceber de quem era cada um dos corpos, pela sua posição. Um era de um militar russo”. Foi enterrado tal como os ucranianos, acrescenta Valentina.

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Ihor Chebishev sabe tudo sobre o Hospital Central de Borodyanka, menos o que se passou enquanto o inimigo lá esteve. O diretor da unidade recebe o Observador numa pequena sala desorganizada, com restos de comida em vários pratos espalhados. O hospital já recomeçou a receber pessoas na última segunda-feira, mas o médico está longe de ter ficado esperançoso com este regresso. De semblante carregado, voz baixa, trémula, e frases espaçadas explicou que quando decidiu fechar aquele hospital houve dois ou três corpos que ficaram na morgue provisória das traseiras. Sobre o que se passou a seguir e os outros cadáveres enterrados nada sabe.

"Foi por isso que houve corpos de pacientes, que morreram no início da guerra, a ficar para trás: arranjou-se um local excecional para serem colocados, mas temporário, até poderem ser levados para Irpin. Ou seja, quando o hospital foi evacuado os corpos ficaram nesse local"
Ihor Chebishev, diretor do Hospital Central de Borodyanka ao Observador

“Muitas coisas aconteceram após 2 de março, quando o hospital foi evacuado. E é isso que agora está a ser investigado pela polícia”, começa por explicar Ihor, salientando que, como aquele hospital não tem espaço apropriado para colocar os corpos, uma morgue com condições, “foi celebrado um acordo com Irpin”, para onde os cadáveres são levados”. “Mas quando a guerra começou nós não conseguíamos fazer esse transporte”, diz.

“Foi por isso que houve corpos de pacientes, que morreram no início da guerra, a ficar para trás: arranjou-se um local excecional para serem colocados, mas temporário, até poderem ser levados para Irpin. Quando o hospital foi evacuado, os corpos ficaram nesse espaço”.

“Quem foi enterrado depois disso, quem morreu depois disso, nós não sabemos. Apenas sabemos que havia pessoas enterradas nos terrenos do hospital”, diz este responsável, antes de ser interrompido pelo sino da igreja a alertar para o risco de mais um ataque.

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“Ontem encontrámos 8 corpos. Hoje foram 9”

Georihiay Yerco é presidente da Câmara Municipal de Borodyanka e explica ao Observador que as pessoas cujos corpos foram encontrados em covas abertas em terrenos particulares “foram, maioritariamente, mortas a tiro, estando os cadáveres a ser exumados à medida que os casos são conhecidos e levados para morgues”.

“Ontem encontrámos 8 corpos. Hoje 9 que estavam em sepulturas, onde as famílias os colocaram”, revela num dos gabinetes da escola que agora alberga não só os serviços municipais, como a segurança social e a esquadra de polícia local.

Quando esta quinta-feira Zelensky falou ao parlamento português, dedicou apenas algumas frases a Borodyanka: “Foram encontrados mais duas sepulturas de civis mortos pelos russos. Numa dessas covas estavam os corpos de dois homens de 35 anos e de uma rapariga de 15 anos. Na outra estavam os cadáveres de seis pessoas: quatro homens e duas mulheres”. O presidente ucraniano explicou ainda que os “corpos foram enterrados no meio da cidade, perto de casas comuns”. E que não são cenas exclusivas de Borodyanka: “São agora encontradas em todas as comunidades, em todas as cidades que libertamos dos ocupantes russos”.

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Esta sexta-feira o número era já diferente. No total, desde que o território foi libertado das forças russas,  foram encontrados nos escombros dos edifícios destruídos 41 cadáveres. Quanto aos corpos encontrados em sepulturas feitas por familiares e amigos — aqueles casos a que Zelensky se referiu — o número também já é superior a 40.

Em frente à igreja, onde uma dessas valas foi descoberta há dias, estava, cerca das 14h40, Volodymyr, um condutor de ambulâncias na casa dos 70 anos, que sentiu de perto pelo menos uma destas mortes. “Uma das mulheres enterradas era uma amiga e colega de escola da minha mulher”. Não foi atingida a tiro, mas a sua morte também foi causada por Moscovo: “Ela estava num 2.º andar, na sua casa, e quando a artilharia atingiu o prédio a onda provocada projetou-a e ela morreu”.

Sobre aquela vala, Volodymyr sabe ainda que um outro corpo era o de uma mulher que teria perto de 40 anos e foi baleada. E contaram-lhe que foi ali colocado o cadáver de uma jovem que não vivia em Borodyanka, morreu quando estava a passar numa das estradas da cidade e uma ponte foi derrubada. Nesse caso, não sabe quem enterrou o corpo: “Talvez os médicos”.

“Não queiram viver uma situação como esta. Nunca!”, diz antes de se despedir.

"Foram encontrados mais duas sepulturas de civis mortos pelos russos. Numa dessas covas estavam os corpos de dois homens de 35 anos e de uma rapariga de 15 anos. Na outra estavam os cadáveres de seis pessoas: quatro homens e duas mulheres"
Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia

“Apenas me sentei em casa à espera”

Com os mais velhos, os russos nem sempre eram agressivos, mas com os jovens eram muito violentos. Os olhos azuis de Valentina falam tão alto como a sua voz, mesmo antes de lhe caírem as primeiras lágrimas, que vieram atrás do suspiro “eu só quero a Ucrânia livre”. A viver há 60 anos naquela cidade, conhece-lhe cada canto agora destruído e mostra-os ao seu novo cão — que a escolheu desde que os donos fugiram para a Grécia e tiveram de o deixar para trás.

Daquilo a que foi assistindo, não tem dúvidas de que a “maioria das pessoas enterradas nestas valas foram mortas pelos russos, alguns jovens só por estarem meio bêbados na rua”: “Os russos disparavam, sobretudo em pessoas novas”.

Nas ruas onde vive Valentina, moram 22 idosos — as contas são dela. “Isto foi muito difícil, só não saí daqui porque não tenho crianças, se não tinha saído”. Algumas das pessoas da sua idade ainda foram para abrigos subterrâneos quando se deram os primeiros ataques, mas ela não pôde, por ter problemas de saúde. “Apenas me sentei em casa à espera, só via mísseis de um lado para o outro”.

“Disse-lhes que o Bandera já tinha ido embora há muitos anos e que seria uma longa longa viagem para eles o encontrarem. E insisti: ‘Qual o motivo que vos traz aqui? Se o Putin quer libertar a Ucrânia ou desnazificar, devia ser o primeiro a vir e não tu. Onde está ele?’”
Valentina Uso Ulento, 73 anos, moradora de Borodyanka

Quando os russos chegaram à cidade, apanhou três deles junto à sua casa e foi direta ao assunto, depois de a cumprimentarem:

O que fazem aqui?

Viemos para lutar com judeus e com Bandera [referência a Stepan Bandera, um ícone do nacionalismo do país, tendo liderado a Organização dos Nacionalistas Ucranianos]

Valentina voltou a não se conter: “Disse-lhes que o Bandera já tinha ido embora há muitos anos e que seria uma longa longa viagem para eles o encontrarem. E insisti: ‘Qual o motivo que vos traz aqui? Se o Putin quer libertar a Ucrânia ou desnazificar, devia ser o primeiro a vir e não tu. Onde está ele?’”

– Ele está num bunker, tal como o seu Zelensky está num bunker.

O ar carregado deu lugar a um leve sorriso, até porque para Valentina muitas daquelas pessoas também estão a ser usadas: “Eles são apenas jovens. Veja, eles pegavam nas ‘scooters’ e quando o combustível acabava andavam com os pés no chão”.

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O lado infantil era tão marcado, diz, que a conversa que teve com os três militares acabou com estes a pedirem-lhe as chaves de carros de vizinhos que haviam abandonado a cidade. Valentina não tinha as chaves, mas disse que um dia lhas dava e eles foram embora: “Eles disseram que não sabiam o que era um projetor. Eu vi-lhe os olhos em bico e perguntei de onde eram, eram de cidades russas muito distantes, próximas da fronteira com China e ainda me disseram que aqui vivíamos bem”.

Borodyanka, uma cidade por construir

Ao Observador, o presidente da Câmara Municipal de Borodyanka, Georihiay Yerco, explica que, além do trabalho de exumação, a autarquia tem agora a pressão de voltar a pôr a cidade a funcionar, reconstruir o que foi destruído e, desde logo, restabelecer os serviços de água, luz e gás a milhares de pessoas.

“Os principais problemas são ao nível das infraestruturas, porque é preciso repará-las e garantir que os habitantes de Borodyanka voltem a ter gás, água e eletricidade [neste momento desconhece-se ao certo quantas pessoas estão sem acesso a estes serviços]. É preciso cuidar agora da cidade”, afirma Yerco, acrescentando que cabe à autarquia reparar as canalizações e a rede elétrica que antes da ocupação abasteciam uma população de 13 mil habitantes, mas que agora deve andar pelos 3 mil, já depois de muitos terem regressado nos últimos dias — como o padre de Borodyanka, que só há uma semana voltou à pequena cidade dos arredores de Kiev.

E a velocidade dos trabalhos não depende apenas da boa vontade ou sequer do dinheiro: “Não podemos fazer as coisas de forma mais célere, porque os terrenos podem estar minados e temos de agir sempre com precaução”.

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