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"O politicamente correto é abominável, porque pode conduzir, exagerando um bocado, à destruição da cultura", diz Manuel Alberto Valente
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"O politicamente correto é abominável, porque pode conduzir, exagerando um bocado, à destruição da cultura", diz Manuel Alberto Valente

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"O politicamente correto é abominável, porque pode conduzir, exagerando um bocado, à destruição da cultura", diz Manuel Alberto Valente

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Manuel Alberto Valente: “Fiquei cansado de um mundo editorial que já não espelha o que eu queria”

Ajudou a mudar o panorama das letras portuguesas ao longo de 50 anos. Editor, tradutor e poeta, está de saída da Porto Editora. Mas será que a reforma entristece Manuel Alberto Valente?

Apresentou a obra de Milan Kundera aos portugueses, catapultou António Lobo Antunes  e Lídia Jorge para a consagração, traduziu Quino e trouxe o criador de Mafalda a Portugal, deu à estampa Luis Sepúlveda, levou Mário de Carvalho para a Porto Editora e o mesmo fez à obra de José Saramago e de Sophia de Mello Breyner. Um grande etcétera. Em meio século como editor de livros, Manuel Alberto Valente ajudou a mudar o panorama das letras em Portugal. Agora, aos 74, sai de cena, mas ainda vai andar por aí.

A despedida foi anunciada em agosto. Ao fim de 12 anos, deixava a direção da Porto Editora, maior grupo editorial português, que mede forças com a LeYa. Para o mesmo lugar entrou Vasco David, até agora editor da Assírio & Alvim, chancela integrada naquele grupo.

Desde 1 de setembro é consultor editorial externo e, no entanto, ainda esteve na Feira do Livro de Lisboa a anunciar aos jornalistas novidades da Porto Editora para os meses seguintes — ocasião em que se referiu ao “momento difícil que o mercado editorial atravessa”. Nos últimos dias tem participado na apresentação de obras já programados que ainda têm o seu dedo:  Uma Experiência de Social-Democracia Moderna, de Cavaco Silva, ou Amália nas Suas Palavras, longa entrevista inédita assinada por Manuel da Fonseca.

Leitor compulsivo desde a adolescência, dono de um instinto literário e comercial que raramente o levou ao engano, é muitas vezes descrito como “amigo dos seus autores”. Também já lhe apontaram um poder desmedido na cena literária, sobretudo nos últimos 12 anos, o que ele relativiza. O cansaço e talvez a desilusão com o mercado editorial e livreiro, mais os efeitos da pandemia da covid-19, determinaram a despedida.

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Nascido a 19 de novembro de 1945 em Coimbrões, Vila Nova de Gaia, passou a adolescência no Porto, estudou direito em Coimbra e veio a concluir o curso em Lisboa. Foi colega de Vital Moreira, José Manuel Correia Pinto e Francisco Lucas Pires e conheceu muitos dos escritores portugueses que se tinham afirmado na primeira metade do século XX, mais tarde ajudando a inscrever uma nova geração das letras.

Teve uma educação católica e de esquerda, chegou a estar filiado no Partido Comunista, que abandonou em 1979. O pai era despachante dos caminhos-de-ferro e pouco lia, a mãe era doméstica e os livros apareciam em casa por ser sócia do Círculo de Leitores. Tem um irmão, Vítor, e é casado desde há 16 anos com Maria do Rosário Pedreira, escritora e também editora. “Comungamos os mesmos interesses e opções, embora com feitios muito diferentes. Cultivamos o silêncio, podemos estar o serão inteiro sem falar, cada um a ler o seu livro”, contou esta semana, em entrevista ao Observador. “Nunca misturámos a vida familiar com a vida profissional.”

Editor e tradutor, também tem obra em nome próprio. Aos 20 anos assinou um primeiro livro de poesia, Cartas para Elina, a que se seguiram outros três até 1981 (juntos em 2015 na antologia Poesia Reunida – O Pouco Que Sobrou de Quase Nada, ao lado de vários inéditos). Ganhou protagonismo na edição em inícios da década de 80, nas Publicações Dom Quixote, onde se manteve até 1991. A seguir foi diretor-geral da ASA, até que em 2008 a Porto Editora começou a crescer para lá dos livros escolares e o recrutou para chefe da divisão literária.

Nesta entrevista fez um balanço de uma carreira ímpar e recordou as origens. Analisou a crise do negócio livreiro, que considera ter conduzido à publicação de obras sem qualidade, e descreveu o comportamento de autores sem grande talento, que tendem a não aceitar críticas dos editores. Apresentou-se como uma pessoa calma, de pensamento esquemático e emoções contidas.

Manuel Alberto Valente escreveu quatro livros de poesia, mas o trabalho como editor calou o autor

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Como é que descobriu os livros?
Tive uma grande influência do meu avô paterno, que tinha origens muito pobres, como quase toda a família. Tinha vindo do Douro, da zona da Pala, para trabalhar como ferroviário na estação das Devesas e foi graças aos conhecimentos que aí travou que começou o negócio de despachante, a que o meu pai deu continuidade. Ele pertencia àquilo a que os sociólogos chamam aristocracia operária. Penso que teria a quarta classe, mas lia muito e tinha uma biblioteca enorme só de autores portugueses: Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, os primeiros neorrealistas, talvez.

Era culto?
Não sei, mas era um tipo de influência. Nos sítios onde estava, impunha-se. Lembro-me de que em miúdo passava férias com ele nas termas de Caldelas, perto de Braga, e o meu avô era a figura principal do pequeno hotel onde ficávamos. Tinha um grau de autoridade muito elevado. Isso talvez seja uma forma de cultura. Mas não há dúvida de que foi com ele que comecei a ganhar o gosto pelos livros, de uma maneira muito desordenada. Ia à biblioteca e tirava livros à sorte, o que me fez ler coisas que hoje ninguém lê, estão completamente esquecidas. Por exemplo, um romance muito famoso, quando em Portugal estava em voga uma espécie de literatura de escatologia social: Maria – Escada de Serviço, do Afonso Ribeiro, sobre as raparigas que vinham para criadas de servir e depois se prostituíam.

Esse avô era comunista?
Não. Talvez tivesse uma ligação à maçonaria. Era presidente dos bombeiros e do clube de futebol Coimbrões. Acho, mas não sou especialista, que ele teria certas influências maçónicas. A influência política que tive em criança foi no sentido republicano.

Republicano queria dizer contrário ao Estado Novo.
Por isso é que da parte do meu pai e da minha mãe posso dizer que tive famílias do reviralho, era assim que se dizia. Em qualquer dos casos, não lhes conheci atuação política aberta.

"Os grupos editoriais têm que rentabilizar os resultados. Mas com todos os defeitos que possam ter, a LeYa e a Porto salvaram editoras", afirma o antigo diretor editorial da Porto Editora

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Como é que se situou politicamente ao longo do tempo?
Hoje não sei bem onde me situo. Na adolescência, ali por volta da entrada na universidade, que é quando a consciência política desperta, situei-me sempre à esquerda, até por essa influência familiar. Já não apanhei a Crise Académica de 1962, entrei logo a seguir, mas o meu posicionamento foi sempre do lado esquerdo da barricada. Em Lisboa fui vice-presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito, numa altura em que já se começavam a esboçar, no meio associativo, as lutas entre o Partido Comunista e o MRPP. Soube a posteriori que fui escolhido para a vice-presidência porque era um tipo que não estava nem muito colado ao PC nem muito colado ao MRPP, estava numa zona confortável para ambas as áreas. Antes do 25 de Abril nunca militei no Partido Comunista. Curiosamente, também nunca fui abordado para entrar, ao contrário do que aconteceu até com amigos próximos. Nunca fui convidado para o PC nem para a maçonaria, onde também tenho muitos amigos.

Acha que se daria bem?
Acho que não. Posso dizer, porque é público e não o escondo, que depois do 25 de Abril, como 90% da chamada classe intelectual, aderi ao Partido Comunista. Aderiu gente como o Herberto Helder, que deve lá ter estado dez dias e saiu logo. Mantive-me algum tempo e saí — costumo dizer que foi a “minha Checoslováquia” — quando a União Soviética invadiu o Afeganistão [dezembro de 1979].

Foi a sua Primavera de Praga.
Exatamente. Nesse momento, abandonei o partido, por sentir que não respeitavam a liberdade, não correspondiam àquilo que eram os meus ideais. A partir daí nunca mais tive militância política. Nesse período de militância escassa havia a célula dos escritores, que se reunia de vez em quando, cujo controleiro, curiosamente, era o Mário de Carvalho, o escritor. Essas reuniões eram uma chatice. Quem também tinha entrado para o PC tinha sido o Eduardo Prado Coelho, de quem eu era muito amigo. Um dia, por volta de 1975, resolvemos na nossa ingenuidade propor ao jornal Avante um suplemento cultural. E disseram-nos que sim. Tudo isto tem de ser visto à luz da época. Ora, o filme que estava aí em Lisboa a dar grande barulho era La Grande Bouffe [A Grande Farra, de Marco Ferreri, com Marcello Mastroianni]. Preparámos um número especial do suplemento sobre o filme. Quando apresentámos os textos ao homem que era então encarregado do Avante, o António Dias Lourenço, aliás uma pessoa extremamente simpática, ele disse-nos com ar de avô: “Oh, camaradas, a gente não pode publicar isto. O Avante a falar de um filme destes? Já viram o que é os nossos camaradas do Alentejo virem a Lisboa e irem ver este filme com os filhos?” Aí percebemos que não era possível fosse o que fosse a este nível. O Eduardo afastou-se mais cedo do partido do que eu.

Disse que agora não sabe onde se situa politicamente.
Julgo que até hoje tenho votado sempre no Partido Socialista, mas há determinadas coisas em que mantenho ideias de esquerda, se é que a palavra ainda faz sentido, e há outras coisas de certa esquerda que odeio e contra as quais luto.

Por exemplo?
O politicamente correto. Sou completamente contra.

"Não quero saber se um ministro da Cultura é homem, mulher, gay, lésbica, transexual, preto, branco. Isso são questões da vida pessoal de cada um. Quero que ele seja competente, é a única coisa que lhe peço."

Que entende por politicamente correto?
É não se poder dizer certas coisas porque um tipo é negro ou porque se trata de um mulher ou de um cigano. Quer dizer, há uma coação da liberdade, que não aceito, não aceito. Sobretudo é uma esquerda radical que defende e pratica o politicamente correto.

De onde vem isso?
Das universidades americanas, a partir do momento em que se começou com os chamados estudos de género e etc. Tem vindo em catadupa pelas sociedades ocidentais. No Brasil é uma coisa muito forte neste momento. E está a chegar cá. Dou-lhe um exemplo de quando a atual ministra da Cultura foi anunciada [Graça Fonseca, em outubro de 2018]. Como sabe, uns tempos antes ela tinha declarado abertamente que é lésbica [em entrevista ao Diário de Notícias, em agosto de 2017]. Quando foi nomeada, houve alguém, julgo que no Facebook, que escreveu esta coisa verdadeiramente estúpida: “Finalmente, temos uma ministra da Cultura lésbica”. Ora, não quero saber se um ministro da Cultura é homem, mulher, gay, lésbica, transexual, preto, branco. Isso são questões da vida pessoal de cada um. Quero que ele seja competente, é a única coisa que lhe peço.

Mas para as pessoas que têm as mesmas características identitárias desse político pode ser relevante. Também se destaca o facto de António Guterres ser o primeiro português à frente das Nações Unidas, porque para os portugueses isso conta.
Tem razão nisso, mas penso que o caso que refiro não é exatamente a mesma coisa. Enquanto republicano, sempre me guiei pelos valores da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Na liberdade está o cada um poder exprimir livremente as suas opiniões, desde que, evidentemente, essas opiniões não sejam de natureza criminosa. Acho que uma sociedade não deve admitir que alguém exprima opiniões a instigar à morte de “a” ou de “b”, porque isso ultrapassa a liberdade de expressão. Na igualdade está implícita a igualdade entre homens e mulheres, entre pessoas que sejam gays, negras, chinesas, o que for. E depois a fraternidade, que significa um horror a todos os extremismos e fanatismos, venham eles da esquerda ou da direita.

Discorda quando uma editora decide suprimir a palavra nigger [preto] ao reeditar o Huckleberry Finn, de Mark Twain, como aconteceu em 2011?
Isso é completamente idiota. Os exemplos são imensos. Em Espanha já há quem defenda que não se pode ler o Moby Dick, coitadinha da baleia. Numa universidade inglesa os alunos exigiram que da sala do refeitório se tirasse uma magnífica natureza-morta da Renascença, porque apareciam lá aves mortas e era ofensivo. No ano passado, no Brasil, num festival literário que se realizava no estado da Bahia, os intérpretes gestuais eram brancos e num determinado momento a moderadora e os participantes eram negros, o que a levou a questionar o porquê da presença de intérpretes brancos. Este politicamente correto é abominável, porque pode conduzir, exagerando um bocado, à destruição da cultura. Vamos deixar de ler Céline, só porque sabemos que ele era antissemita? Vamos deixar de ler o padre António Vieira, porque agora vêm inventar que ele tinha atitudes esclavagistas? Rever a História à luz dos olhos do presente é completamente absurdo.

No caso da escravatura e do racismo, por exemplo, há quem argumente que não pretende rever a História, mas fazer ver que as ideias do passado sobrevivem e continuam a prejudicar a vida de muitas pessoas. Acha que o politicamente correto pode ser sintoma de uma ditadura do pensamento único que está a alastrar?
Temo que isso possa acontecer a partir do momento em que as coisas começam a ser vistas não a partir da sua qualidade objetiva, mas de influências de outro tipo, sejam quotas, seja o que for.

"Havia casas de prostituição no Cais do Sodré e não só. Uma muito famosa ficava ao fundo da Almirante Reis, com uma orquestra em que o pianista era cego. Às vezes íamos para o Meco, levávamos as garrafas, ficávamos a dormir na praia."

Como compara a falta de liberdade durante o Estado Novo com esta época do politicamente correto? Há algum paralelo?
Não iria tão longe. A falta de liberdade de expressão no Estado Novo proibia, impedia, o acesso das pessoas a determinadas obras de arte, livros, filmes, etc. Hoje, isso não acontece. Se quiser ler o Moby Dick, leio, mesmo que todos me caiam em cima. Mas leio. Além disso, não corro o risco de ir parar à prisão ou de ser interrogado.

Mas corre o risco de ser alvo de uma campanha no Facebook com o objetivo de o destruir moralmente.
Não creio, apesar de tudo, que o Facebook tenha esse poder de destruir. Mas, sim, sujeito-me a isso. Aliás, ainda recentemente, passei por uma experiência dessas por ter considerado que determinado post da senhora deputada Joacine Katar Moreira era uma estupidez. Muitas pessoas caíram-me em cima, algumas eram minhas amigas, conhecidas.

Como é que viveu esse momento?
Com a maior tranquilidade. Depois até fui ver o likes e a maior parte era de mulheres. As coisas não são tão a preto e branco como parece. Agora, é uma situação que me faz sentir mal. Sinto-me mal com a ditadura, entre aspas, do politicamente correto. Por isso é que lhe dizia há pouco que nesta luta contra o politicamente correto às vezes me aproximo mais de uma certa direita democrática do que de uma certa esquerda mais radical.

Começou por falar dos livros do seu avô…
E depois comecei a ler, graça à biblioteca de um tio, a Coleção Vampiro praticamente toda. Costumo dizer que o policial foi uma das minhas bases como leitor e ainda hoje gosto muito [a Coleção Vampiro começou a ser reeditada em 2016 pela Porto Editora]. Depois, cheguei a Coimbra, lembro-me perfeitamente, com dois livros na mão: Personalismo, de Emmanuel Mounier, e Pensamento de Karl Marx, do filósofo católico Jean-Yves Calvez, publicado cá pela Livraria Tavares Martins. Era o pensamento marxista visto por um católico, claro.

Também era católico?
Era, à portuguesa. Batismo, catequese, comunhão solene. Aliás, nos primeiros tempos de Coimbra ainda ia vagamente à missa e aos poucos fui deixando. Mesmo a formação marxista foi sempre ténue. Em boa verdade, acho que não li praticamente nada do Marx, não li a sério. Nunca li O Capital.

Porque é que foi estudar direito?
Primeiro, porque sou de uma época em que não havia estes cursos todos que há hoje. Depois, engenharia, ciências, medicina, economia, estava tudo excluído, porque eu detestava matemáticas. Restava direito e letras. Na altura, dizia-se que letras era um curso para senhoras. Toda a gente me empurrou para direito. Naquelas coisas que as famílias têm a mania de dizer, diziam que eu falava bem. Havia aquela ideia do advogado de barra, o que hoje, como se sabe, não existe. No segundo ano cheguei a pensar mudar para histórico-filosóficas e não o fiz por preguiça, não quis perder um ano e voltar atrás.

Mudou-se para Lisboa em que ano?
Ah, isso é uma história muito engraçada. Cheguei em fins de 1965.

Já havia Guerra Colonial…
Sim e fui para África mais tarde, estive em Angola, sempre em Luanda, na chamada chefia dos serviços de justiça do quartel-general. Foi a única coisa para que me serviu o curso de direito, nunca lhe dei outra aplicação e já valeu a pena, porque assim escapei ao combate.

Mas voltemos a Lisboa em 1965.
Por influência de ambiente mais ou menos próximo do Partido Comunista, já escrevia umas coisas e colaborava na Vértice, uma revista dominada pelo PC, de certa maneira, que tinha como diretor o escritor e poeta Joaquim Namorado, hoje muito esquecido. Um dia fui-lhe dizer que tínhamos de reavaliar a colaboração com a revista porque tencionava mudar-me para Lisboa. Ele ficou muito espantado. Eu, com aquela coisa de quem tem 17 ou 18 anos, achava Coimbra uma cidade pequena, queria ir para a capital, e digo-lhe assim: “Além disso, em Lisboa, posso conhecer os escritores.” Ele dá-me uma palmada no pescoço e responde: “Os escritores são para se ler, não são para se conhecer.”

O que é que pensa hoje dessa frase?
Acho que ele tinha 50% de razão. Às vezes, desiludimo-nos quando conhecemos o escritor, o que também não faz mal, porque o escritor não é a sua biografia, é a sua obra.

A obra é sempre biográfica ou não?
Não forçosamente. Colar totalmente a vida do autor à obra parece-me um bocado abusivo. Portanto, vim para Lisboa, colaborei no Grupo Cénico da Faculdade de Direito, fui vice-presidente da Associação Académica e concluí os estudos.

Que escritores conheceu à época?
Praticamente toda a gente. José Gomes Ferreira, Luiz Pacheco. Havia nessa altura um sítio em que as pessoas se encontravam muito, o Café Monte Carlo, onde hoje é uma Zara, ali abaixo do Saldanha. A pessoa que recordo com mais saudade é o Carlos de Oliveira, um indivíduo fantástico, a casa de quem eu ia ver futebol pela televisão. Ele adorava futebol, tal como eu, e tinha televisor, o que não era assim tão comum nesse tempo. Era a Lisboa dos cafés, da intelectualidade bem-comportada e ao mesmo tempo da boémia noturna malcomportada. Também fiz parte dessa.

Para onde ia à noite?
Para os sítios mais inacreditáveis. Havia casas de prostituição no Cais do Sodré e não só. Uma muito famosa ficava ao fundo da Almirante Reis, quase ali no Martim Moniz, já não me lembro como se chamava, com uma orquestra em que o pianista era cego. Às vezes íamos para o Meco, levávamos as garrafas, ficávamos a dormir na praia.

O ambiente era também de liberdade, apesar de tudo.
No chamado período marcelista, sim. Aceitou-se uma abertura relativa, desde que não se tocasse nos alicerces do regime, mas depois não se conseguiu ultrapassar os ultras do regime, encarnados na pessoa do então Presidente da República, almirante Américo Tomás.

"No campo das editoras institucionais, que já eram empresas, acho hoje, olhando para trás, que a Dom Quixote foi pioneira e marcou uma época em Portugal e mesmo a nível internacional. Lembro-me de que quando chegávamos à Feira de Frankfurt as pessoas ficavam espantadas por um país tão desconhecido culturalmente, como era Portugal, ter uma editora com aquele naipe de escritores."

Quis conhecer os escritores porque sonhava ser um deles ou já pensava na edição?
Queria ser escritor. Aliás, costumo dizer que o facto de me ter tornado editor é que matou o escritor. Quando comecei a sério a minha atividade de editor, nunca mais publiquei. Até essa altura, tinha quatro livros de poesia já publicados e, enfim, não interessa a qualidade, era aceite como poeta. Logo a seguir ao 25 de Abril a secretaria de Estado da Cultura fez um dicionário de autores portugueses e eu estava lá. Era minimamente considerado. A atividade de editor matou essa capacidade de continuar a escrever com regularidade e fez esquecer a figura do escritor.

Foi ingrato?
Não sei. Tinha começado a atividade editorial em 1970. Portanto, tenho 50 anos a trabalhar nas obras. Comecei numa editorial que já não existe, a Inova, no Porto. Mas era soldado raso, fazia uns textinhos. Nessa altura, mandava-se cartas para a casa das pessoas com folhetos de propaganda aos livros e eu fazia isso. Depois é que fui chamado para a tropa, estive dois anos em África. No regresso, passei fugazmente pela Editorial Estampa e pela Oiro do Dia, no Porto. Em 1981, começo a sério. Morre a Snu Abecassis e a família dela, o ex-marido [Vasco Abecassis], quer passar a Dom Quixote. Ele quis respeitar a memória da Snu e a maneira como ela tinha construído a editora. Mais do que dinheiro, que era coisa de que não precisava, porque era um homem rico, quis encontrar alguém que não estragasse. Por um conjunto de circunstâncias, quem ficou com a Dom Quixote foi o Nelson de Matos, que vinha da Morais e tinha estado na Arcádia.

Foi ele que o convidou?
Eu estava no Porto e recebo um telefonema: “Olha, acabei de comprar as Publicações Dom Quixote. Não queres vir para diretor editorial?”. Aos 30 e tal anos um tipo é capaz de todas as loucuras e disse-lhe “quero”. Tomámos conta da editora e rapidamente a transformámos, julgo eu, na editora de referência daquela época, quer pelos autores portugueses, que começam a entrar no catálogo — Lobo Antunes, Lídia Jorge, João de Melo, etc., etc. —, quer pelas traduções. O Lobo Antunes começou na editora Vega e já tinha feito êxito com dois livros. Vínhamos de um período em que praticamente só se publicava livros de política e sentíamos que as pessoas estavam fartas. Tinha-se parado durante uns anos a publicação de ficção e lançámos a coleção Ficção Universal, que depois se tornou icónica, e logo no número três saiu um livro que acho que marcou toda uma época: Insustentável Leveza do Ser, do Milan Kundera.

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Tinham noção de que estavam a fazer uma revolução na indústria do livro em Portugal?
Não. Tínhamos noção, acho eu, de que estávamos a fazer coisas diferentes.

Hoje considera que foi uma revolução?
Sim, sim. Claro que não fomos só nós. Outros projetos editoriais, a que estão ligadas pessoas como a Maria da Piedade Ferreira, com a primitiva Quetzal, ou o Carlos Veiga Ferreira, com a primitiva Teorema. E depois havia gente com um trabalho muito importante, que não pode ser esquecido, mas à margem da indústria, como o Vítor Silva Tavares, na &etc. No campo das editoras institucionais, que já eram empresas, acho hoje, olhando para trás, que a Dom Quixote foi pioneira e marcou uma época em Portugal e mesmo a nível internacional. Lembro-me de que quando chegávamos à Feira de Frankfurt as pessoas ficavam espantadas por um país tão desconhecido culturalmente, como era Portugal, ter uma editora com aquele naipe de escritores. Quando os publicámos, não eram o que são hoje, atenção. Publicámos o primeiro livro do Salman Rushdie, quando ninguém sabia quem ele era. O Kundera também não.

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Deu muitas negas a muitos escritores? Arrepende-se?
Não sei se me arrependo de algum que tenha lido e a quem tenha dito que não. Agora, houve autores que em determinado momento me foram aconselhados e eu, por uma razão ou outra, não me aproximei deles. Tenho pena. Por exemplo, o Rentes de Carvalho. Tinha relações com um autor holandês, Gerrit Komrij, que cheguei a publicar e através dele conheci o Fernando Venâncio, que estava na Holanda. O Fernando Venâncio disse-me várias vezes que eu devia publicar um tipo português que vivia na Holanda, que escrevia muito bem: o Rentes de Carvalho. Ele hoje está publicado por um colega e amigo, o Francisco José Viegas. Bem gostava de ter sido eu a publicá-lo.

Que outro exemplo?
Olhe, o Valério Romão.

Nesses tempos da Dom Quixote o mercado editorial português teria grande pluralidade. Hoje dominam dois grandes grupos: Porto Editora e LeYa. Foi um bom caminho?
Foi o caminho de resposta à concentração que estava a haver no setor das livrarias. Primeiro, foi um movimento internacional. Quando a concentração editorial cá chegou, já existia lá fora há bastante tempo. A certa altura, grupos como a Sonae e as próprias Bertrand começaram a criar condições tais aos editores que dificultaram a vida dos mais pequenos, portanto, a criação de grandes grupos editoriais fortaleceu a posição dos editores, permitia um enfrentamento com o retalho.

Agora que já se passou mais de uma década sobre esse movimento de concentração, tem dúvidas?
Tenho, embora sempre tenha defendido que, apesar de tudo, a criação de grandes grupos editoriais abre espaço, de certa maneira, à edição independente. Como não abarcam tudo, permitem a existência de nichos. O problema é que tudo isto aconteceu mais ou menos em simultâneo com a grande crise económica que Portugal viveu, o que significou uma perda de milhares e milhares de leitores. Passou-se cá, na Alemanha, em todo o lado. Portanto, esse trabalho tornou-se mais difícil também para as editoras independentes.

Há quem diga que o panorama é desolador, porque as livrarias estão cheias de novidades mas não têm fundo de catálogo, porque a qualidade dos textos publicados é muito baixa. Concorda?
Concordo em linhas gerais. Quando nos anos 80 editávamos autores novos, como o Milan Kundera, era automático fazer-se três mil exemplares e às vezes ainda reeditávamos. Hoje, com um autor literário novo faz-se mil e por vezes é muito difícil vender.

"Os grupos editoriais, sendo grandes máquinas, com custos elevados de funcionamento e perseguindo o lucro, como qualquer empresa, têm que rentabilizar os seus resultados. A par disso, é evidente que há a tendência para publicar coisas que vendem ou que podem vender e que em alguns casos não são as mais indicadas para uma elevação cultural da sociedade."

Os livros eletrónicos não pegaram?
Em Portugal, os números que tenho indicam que não. No caso da Porto Editora, todos os livros são feitos simultaneamente em papel e ebook, mas o ebook ainda é residual.

É por causa da concorrência da Netflix, das redes sociais, do telemóvel?
Julgo que sim. Há leitores profundos, esses continuam a comprar, mas se calhar são cada vez menos. Todas as pessoas têm uma necessidade de ficção e de histórias, isso nasce connosco. Essa necessidade passou para a Netflix e coisas semelhantes.

Mas também pode haver desilusão: as pessoas compram um livro e não gostam da qualidade da escrita.
Mas isso é contrariado pelos dados. Os autores que mais vendem neste momento em Portugal são autores que escrevem mal, que transmitem lugares-comuns. Estou a falar sobretudo da ficção.

Ficaria satisfeito se o título da entrevista fosse essa frase: “os que mais vendem são os que escrevem mal”?
Não ficaria, porque há gente muito respeitável que escreve bem. Diria que alguns dos que mais vendem escrevem mal. Vamos lá ver: as coisas não são a preto e branco, nunca são. Com todos os defeitos que possam ter, os dois principais grupos, a LeYa e a Porto Editora, salvaram editoras. A Porto Editora manteve com total autonomia uma chancela que é a principal chancela de poesia em Portugal, a Assírio & Alvim, que teria desaparecido se a Porto Editora não a tivesse comprado quando lhe propuseram a compra. Digo que teria desaparecido porque conheço bem a situação. Aconteceu a mesma coisa quando comprou o acervo da Livros do Brasil, onde está o Camus, o Steinbeck, o Hemingway.

Podemos sempre argumentar que a Porto Editora o fez para credibilizar o grupo e não por caridade.
A caridade nunca existe nos negócios, penso eu. Seja o que for, aconteceu. A LeYa tem uma chancela como a Dom Quixote, com autores importantíssimos da cena literária portuguesa e internacional. Os grupos editoriais, sendo grandes máquinas, com custos elevados de funcionamento e perseguindo o lucro, como qualquer empresa, têm que rentabilizar os seus resultados. A par disso, é evidente que há a tendência para publicar coisas que vendem ou que podem vender e que em alguns casos não são as mais indicadas para uma elevação cultural da sociedade.

A figura do editor de livros continua a ser fundamental como garante de qualidade, entende Manuel Alberto Valente

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Porque é que decidiu sair da Porto Editora?
Muito sinceramente, o primeiro sinal foi a morte do Luis Sepúlveda [com Covid-19, a 16 de abril], cuja obra publiquei toda em Portugal, do primeiro ao último livro. Isto pode parecer metafísico, mas quando ele morreu senti que um certo mundo morria com ele. Foi uma coisa que me abanou. Depois, foi o período do confinamento, aqueles meses em que estive fechado em casa, ainda que a trabalhar por videoconferência. Pensei e fui chegando à conclusão de que fiquei um bocado cansado de um mundo editorial que já não espelha totalmente aquilo que eu queria.

Refere-se à qualidade?
Sabe, costumo dividir a minha vida editorial em três períodos. A Dom Quixote foi o período em que publicámos autores, era a nossa única preocupação. Publicar autores significa “autores” e não “tipos que escrevem”. Como já alguém disse, a partir de certo momento o centro da edição deixou de ser o autor e passou a ser o leitor. Aí surgiu a pergunta “o que é que o leitor quer ler?”. Tudo mudou. Aconteceu o mesmo na televisão. Costumo dizer, com alguma ponta de atrevimento, até porque sou politicamente incorreto, que a televisão do fascismo era muito melhor do que a televisão de hoje. Dava um filme à segunda, uma peça de teatro à terça, uma ópera à quarta, um programa de variedades à quinta. Não havia Big Brother nem concursos idiotas. A televisão de hoje é o que é porque em determinado momento o espectador passou para o centro das preocupações. O segundo período da minha vida profissional, que corresponde à fase da ASA, foi aquele em que se publicava o que dava, para se poder publicar o que não dava. Acho que a frase é minha. Tínhamos consciência de que publicávamos coisas mais comerciais com a finalidade de aplicar esse dinheiro em coisas mais de nicho. Na terceira fase, muito por força da crise que o país atravessou, cada vez foi mais difícil aplicar este axioma. A pergunta começou a ser “se não dá, para que é que se publica?”.

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É desse mundo que já não quer fazer parte?
Por muito boa vontade que haja… Aliás, há um crescente peso dos departamentos comerciais e de marketing, com quase tanto peso como os editores. O departamento de marketing não existia antigamente, o departamento comercial existia, mas servia para vender o que já se tinha decidido publicar. Se isto tem um aspeto negativo, que é o de condicionar a liberdade do editor, por outro lado é necessário para a sobrevivência ou equilíbrio das próprias empresas. Jogar com isto não é fácil. A morte do Luis Sepúlveda e o confinamento levaram-me a pensar que se calhar já não tinha força anímica para travar esta batalha, a batalha do equilíbrio necessário, que exige um dispêndio de energias que alguém, aos 74 anos, já não quer despender.

No jornalismo também se diz que há uma alegada cedência do interesse público ao interesse do público. Mas se não se pensa no público, para quem é que se está a comunicar?
Estou de acordo, mas agora provoco-o: acha que o Observador é exatamente a mesma coisa que o Correio da Manhã?

Os jornais populares falam para o seu público. Isso é mau?
Depende da maneira como abordam os assuntos que interessam ao público deles. Se num assunto que pode ser do interesse do grande público se puxar por questões que não são as principais, acho que se está de certa maneira a manipular as pessoas.

O fenómeno de autopublicação através da internet é mau para o negócio das editoras?
Para ainda acreditar em alguma coisa, tenho de acreditar na figura do editor. Acho que é fundamental na mediação entre o escritor e o público, porque se esse filtro não existir publica-se tudo e mais alguma coisa. É o que acontece na autoedição. Ou então paga-se “X” e há editoras que publicam. É um negócio, claro, mas que a mim me choca. Acredito na figura do editor. Pode-se pôr em causa: porque é que o senhor A, que é editor, tem autoridade para para decidir se isto se publica ou não publica. Acontece que o editor, em princípio, dedicou a sua vida a ler e portanto tem um arcabouço de leitura que lhe permite a comparação e a avaliação da qualidade daquilo que está a ler. Além de avaliar a qualidade para uma recusa, pode chamar o autor e dizer “meu amigo, está aqui um livro, mas isto e isto deve ser revisto”. Fui editor do Paul Auster, quando ele já era um dos grandes nomes da literatura americana. Muitas vezes, para apressarmos a tradução, mandavam-me dos EUA as provas do livro e eu via o que o editor americano fazia nas provas, o que cortava, os pontos de interrogação ao lado, como quem diz “isto não se percebe”. Sei de quem faça isso.

Quem faz? Com que autores?
Sei de quem faça. A minha mulher faz, mas não é a única.

De uma maneira geral, hoje os editores têm autoridade para isso?
Com um autor consagrado, é muito difícil. Depende do autor. Com os jovens autores, é possível. Aliás, num livro recente, o João Tordo conta isso. De forma genérica, diria que é mais difícil, neste aspeto, trabalhar com maus autores do que com bons autores. Os bons estão mais capazes de aceitar sugestões do que os maus.

Está triste por se afastar da edição?
Não sou do género de entristecer. Aliás, se tivesse a sorte de me sair, não precisava de ser o Euromilhões, mas a Lotaria do Natal, metia-me já amanhã a fazer uma pequena editora.

Joga?
Sempre joguei, nunca me saiu nada de especial.

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