Nem 48 horas durou o balão da oposição. A 2 de agosto, depois de conhecido o teor do despacho de António Costa contra a Endesa, Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz, líder e vice-presidente do PSD, lançaram-se à jugular de António Costa, sem poupar nos adjetivos. “Laivos persecutórios” e confusão entre “maioria absoluta” e “poder absoluto”, atiraram os sociais-democratas. Um dia depois, ainda Montenegro comparava o PS à “União Nacional” e Marcelo Rebelo de Sousa já se preparava para tentar esvaziar completamente a polémica. Mais uma vez, PSD e Presidente da República apareceram dessintonizados.
Mesmo com os sociais-democratas a pressionarem António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou uma visita pelo terreno que vai acolher a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, para defender o Governo e castigar a Endesa. Em dois atos a estratégia social-democrata era esvaziada por completo com o alto patrocínio de Belém.
Ato um: “Politicamente o primeiro-ministro quis dizer que não é a ideia mais brilhante do mundo estar a suscitar questões sobre uma matéria tão sensível como aquelas que foram suscitadas. Não belisca as competências do Governo. O que o primeiro-ministro disse é uma evidência, não mais do que isso.”
Ato dois: “Têm de ter a noção de que há quem sofra com a guerra, no dia a dia. Claro que entra na responsabilidade social o bom senso de não terem intervenções alarmistas ou especulativas que criem perturbação na comunidade. É o mínimo dos mínimos.”
Tudo somado, não há hermenêutica no mundo que dê outro sentido às palavras presidenciais. Enquanto o PSD (e toda a oposição à direita) atirava contra o Governo, Marcelo defendia em toda a linha António Costa. Entre os sociais-democratas ouvidos pelo Observador, o comportamento do Presidente da República só merece uma classificação: “Incompreensível”.
Costa e Marcelo alinhados em sardinhada (e não só) em semana quente na energia
Uma “cumplicidade” que continua a incomodar
“[O Presidente da República] está numa deriva absolutamente incompreensível”, comenta com o Observador um alto dirigente social-democrata. “Não há racional que permita compreender a estratégia [de Marcelo Rebelo de Sousa]”, completa outro membro da atual direção do PSD.
Na verdade, o episódio que envolveu a Endesa e o despacho de António Costa não é o único exemplo da dessintonia entre Marcelo Rebelo de Sousa e a sua família social-democrata. Nas últimas semanas, enquanto o PSD batia politicamente na ministra da Saúde a propósito do caos nas urgências, o Presidente da República dizia que os problemas eram “estruturais” e não responsabilidade de um único governo – isentando, mesmo que involuntariamente, um primeiro-ministro que está há sete anos em funções.
E não se esgotou na Saúde. Com o SIRESP a falhar, o país a arder e a oposição a exigir explicações, Marcelo disse que se tinha aprendido a “lição” de 2017 e que estava tudo “muito melhor”.
Com várias vozes a criticar o processo de descentralização, o Chefe de Estado falava em “acordo histórico”. Com Montenegro a dizer taxativamente que era contra impostos sobre lucros extraordinários, Marcelo aparecia a abrir a porta a uma solução que fosse “justa” e a pedir mais às empresas.
Finalmente, com o PSD a acusar sistematicamente António Costa de estar a lucrar com a crise e a exigir medidas imediatas de emergência social para conter os efeitos da inflação, o Presidente da República vai dando sinais de que confia que o Governo terá medidas prontas em setembro e que no timming de António Costa.
Todos estes gestos e movimentos de Marcelo vão criando um desconforto crescente entre os dirigentes sociais-democratas. “A cumplicidade [do Presidente da República] com António Costa é muito grande”, começa por lamentar um membro da direção do PSD. “Os elogios permanentes ao Governo são inexplicáveis.”
Recentemente, numa rara entrevista que concedeu a Francisco Pinto Balsemão, no podcast “Deixar o Mundo Melhor” (Expresso), Marcelo Rebelo de Sousa confessou que se vê como alguém cuja missão presidencial é “picar balões” e “controlar preventivamente acontecimentos, numa altura em que pode resvalar rapidamente”. “Nós, democratas, estamos há muito tempo muito emocionais, muito pouco racionais”, acrescentava o Chefe de Estado.
A tese de que Marcelo está apenas a esvaziar preventivamente a tensão social que pode tomar conta das ruas não colhe no PSD. “Uma coisa é furar o balão da tensão social; outra coisa completamente diferente é defender de forma permanente o Governo e furar o balão da oposição”, critica outro destacado social-democrata.
“Entusiasmado q.b.” com Montenegro e “desligado” do PSD
Nessa mesma entrevista a Francisco Pinto Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa permitiu-se elogiar a nova composição da atual direção social-democrata, depois de Montenegro ter apostado em figuras como Paulo Rangel e Miguel Pinto Luz.
“Foi feito um esforço como não se via há muito tempo no PSD. Não é total. Não é 100%, mas um esforço muito grande de federar pessoas que andavam desavindas ou separadas há muito tempo. O PSD tinha uma característica que bem conhecemos: podiam andar à bofetada e até podia haver sempre alternativas a si próprio, mas, na hora da verdade, unia-se”, recordou o antigo líder social-democrata.
O elogio – ainda que velado – a Luís Montenegro fazia antecipar uma relação mais feliz entre Presidente da República e líder social-democrata. Sobretudo, porque o Chefe de Estado há muito que diz que uma das suas responsabilidades presidenciais “é garantir que quem lidera a oposição no centro-direita faz tudo para ter uma fórmula forte em condições de ser alternativa para suceder”.
O fim de ciclo de Rui Rio – com quem Marcelo nunca teve uma relação propriamente harmónica (basta recordar, a título de exemplo, o episódio da audiência a Paulo Rangel, que ia provocando um motim na então direção do PSD) –, a eleição de Montenegro e os sinais dados pelo partido pareciam significar um novo ciclo de convivência entre Belém e a São Caetano. No entanto, daí para cá, não se pode dizer que PSD e Marcelo estejam afinados. Antes pelo contrário.
A verdade é que Luís Montenegro está longe de ser um herdeiro natural da sensibilidade que Marcelo Rebelo de Sousa sempre representou no interior do PSD. Dito de uma forma simplista, o atual líder social-democrata está mais à direita do que o Presidente da República alguma vez esteve.
De resto, é conhecida a proximidade ideológica de Montenegro a Pedro Passos Coelho, herança que o presidente do PSD nunca renegou e que Marcelo nunca abraçou verdadeiramente. Diga-se a esse propósito que não era um sentimento unidirecional.
Em 2014, quando teve de definir perfil do candidato presidencial que queria ver com as cores do PSD, Passos disse claramente que não queria um “catavento de opiniões erráticas” – e o barrete foi distribuído para servir perfeitamente a Marcelo.
Montenegro foi sempre fiel a Passos, naturalmente. Mais: nunca deixou de fazer a defesa do legado cavaquista e Aníbal Cavaco Silva – ao contrário do que fazia com Rio – não lhe tem poupado elogios nas raras intervenções públicas que faz.
Também não se pode dizer que a relação entre Cavaco e Marcelo seja a melhor. Em 2019, ficou marcada na pedra a troca de palavras entre os dois, com o primeiro a criticar “a verborreia frenética da maioria dos políticos dos nossos dias” e Marcelo a pedir respeito entre os vários inquilinos de Belém.
Célebre ficou também a garantia que Marcelo deixou de que nunca escreveria memórias – uma crítica mais do que direta ao seu antecessor – ou ainda a forma como o atual Presidente da República relativizou o artigo de opinião de Cavaco Silva no Observador – muito celebrado à direita, de resto – com um “vou ler, vou interiorizar e não vou comentar“.
Por isso, conhecidas as simpatias e antipatias, maiores ou menores, é natural que a proximidade de Montenegro a Passos e a Cavaco incomodem Marcelo, concluem alguns sociais-democratas. “Luís Montenegro não é de beija-mão, nem cede a qualquer tipo de pressão”, sugere um membro da sua direção.
Um Marcelo “cada vez mais solitário”
Em paralelo, quem, no PSD, vai acompanhando a passagem de Marcelo por Belém com relativa proximidade acrescenta outra leitura: o antigo líder do PSD rodeia-se cada vez mais dos seus contactos de sempre (Leonor Beleza, Catarina Vaz Pinto, João Silveira Botelho, Eduardo Barroso) a que se somam a influência que têm António Guterres e a coabitação com António Costa – com quem, ainda esta semana, alinhou numa sardinhada improvisada depois da audiência semanal dos dois.
“Marcelo está a continuar o seu caminho natural para o centro / centro-esquerda. E as influências que o rodeiam reforçam isso mesmo”, conclui a mesma fonte. “No PSD, está muito mais isolado [do que estava antes”, remata.
Na já referida entrevista que concedeu a Balsemão, Marcelo não deixou de assumir algo de muito semelhante. “Eu era e sou um solitário. E a minha vida em Belém é cada vez mais assim, até para me defender”, desabafou.
Seja como for, com ou sem o colo presidencial, Luís Montenegro, que até começou o seu mandato por dizer que estava predisposto “a estreitar o relacionamento institucional e a cooperação” com Marcelo, terá de fazer o seu caminho como líder da oposição. Mas se os dois continuarem tão desafinados, o choque tornar-se-á inevitável.