O clima de tensão entre Marcelo e Costa ficou mais ameno no início da semana ou, pelo menos, ficou menos exposto publicamente. Mas antes da partida do primeiro-ministro para o Chile foram vários os momentos em que, mesmo quando não estavam juntos, os dois pareciam estar a ter uma conversa indireta através da comunicação social. Na história do novo conflito entre São Bento e Belém, nenhum quis abdicar de ser heróis, tentando colar ao outro o papel de vilão. Protagonistas, não há dúvidas, foram ambos.
Este nem sequer é o primeiro volume do conflito entre palácios, mas a história continua. E o desfecho desta edição, para já, é imprevisível.
O fazedor e o controladeiro
Horas antes do Conselho de Estado (de 5 de setembro), António Costa enviava recados ao Presidente da República fazendo várias metáforas como o guarda-redes que não deve tentar marcar golos ou o anestesista que não pode ser cirurgião. Chegou a dizer, na sequência do mesmo raciocínio, que, no Estado, cada um deve estar no seu galho. Marcelo Rebelo de Sousa responderia dois dias depois para clarificar que não tem intenções de se intrometer na governação e que o seu papel é de moderador. Mas não um moderador qualquer: também é de controlador e controladeiro.
O ofendido e o experiente conselheiro
António Costa mostrou-se ofendido e indignado com as fugas de informação nas últimas reuniões do Conselho de Estado, sugerindo que existem agora mais leaks do que no passado. Logo no mesmo dia, o Presidente contrariou a ideia do primeiro-ministro de que estas fugas eram uma novidade das últimas reuniões, dizendo que, nos 20 anos em que foi conselheiro, foram várias as versões que foram saindo. O motivo de indignação de Costa, acaba por responder Marcelo, é uma prática de anos.
O otimista cada vez mais irritante e a fasquia do pessimista
No auge da tensão entre Marcelo e Costa, o primeiro-ministro — na pele de secretário-geral e, portanto, sem gravata — aproveitou estar na rentrée socialista para dizer que é com otimistas irritantes (a alcunha-cognome que o Presidente lhe deu) que o País vai para a frente. Pelo meio ainda falou em “velhos do Restelo”, sem concretizar a quem se referia. Na resposta, um dia depois, Marcelo diria que tem uma divergência de fundo com o primeiro-ministro porque é “muito mais otimista” do que ele próprio, que baixa sempre as expectativas. Marcelo retomou aqui o tom de uma espécie de paternalismo de Estado (de Presidente para primeiro-ministro) para deixar claro que recorrentemente faz reparos às altas e ambiciosas fasquias apontadas por António Costa.
O eleitoralista e o mundo para além dos jovens
Na mesma rentrée socialista, António Costa lançou várias propostas de apoios aos jovens, que foram desde reduções de IRS até a medidas mais simbólicas como bilhetes de comboio ou vouchers em pousadas da juventude. Na resposta, também no dia seguinte, Marcelo não deixou de dizer que as medidas são eleitoralistas (faltam dias para a campanha na Madeira e meses para as europeias), mas também insuficientes: “Há mais mundo para além dos jovens”.
Avaliações e o gostar de quem não é preciso
Noutra ocasião, António Costa rejeitou ser avaliado pelo Presidente da República, sugerindo que só os eleitores o podem julgar. A indireta é especialmente relevante porque o PS, nos bastidores, acusou o chefe de Estado de querer transformar o Conselho de Estado numa espécie de debate quinzenal. Na resposta, Marcelo falou sobre a relação que tem com outros órgãos de soberania, situação onde considera que conta pouco a relação ou os gostos pessoais que o ligam a essas personalidades políticas. Deixava também escapar o primeiro sinal de querer baixar a crispação: “Até gosto”, disse, sobre “titulares de órgãos de soberania” que não personalizou.
O professor velhinho o aluno admirador de romances
A conversa é aqui interrompida para um monólogo de Marcelo, onde diz que, por ser “velhinho”, já aprendeu a relativizar o que é realmente importante. Na mesma ocasião, aproveitando estar na Feira do Livro do Porto, o Presidente diz que o primeiro-ministro gosta de romances (novel, em inglês; novela, numa tradução muito literal) com conteúdos variados. Diria ainda, na mesma noite, que não quebra amizades de quem já é amigo. Ainda para mais de um seu aluno (António Costa) que na altura tinha 19 anos e que agora tem “para aí 60 e tal”. Envelheceram juntos, o “velhinho” e o não tão “velhinho”, com o avô Marcelo a deixar um conselho: as amizades não se deixam cair.
Grandolada em uníssono e o bebé no colo
O fim de uma semana de tensão chegou e Marcelo e Costa encontraram-se presencialmente no Monte do Sobral, em Alcáçovas, Viana do Alentejo, para assinalar os 50 anos da criação do Movimento dos Capitães. Cantaram juntos a música de José Afonso que foi uma das senhas da Revolução, mas depois foi sempre Marcelo Rebelo de Sousa a tentar uma aproximação ao primeiro-ministro — que, por exemplo, não quis estar ao lado do chefe de Estado quando este fez declarações aos jornalistas. Após pegar um bebé ao colo, o Presidente ainda chamou Costa dizendo que estava ali o futuro do 25 de Abril, mas, com pouca paciência para conversas, António Costa apenas registaria que o bebé estava com o punho fechado, tal como o símbolo do Partido Socialista.
As picardias e o termómetro
Passaram alguns dias e a ida de Costa ao Chile ajudou a baixar a tensão (pública) entre Belém e São Bento. Na América Latina, António Costa diria que em Portugal não há radicalismo entre as forças políticas, mas apenas “saudáveis” picardias políticas. Marcelo ainda falaria, já depois disso, sobre o Conselho de Estado, mas para o qualificar como um bom “termómetro político”, com “personalidades muito qualificadas”, que desempenham um “papel importante” ao emitir opinião naquele órgão. Algo que Costa, na última vez, não fez.