Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro partiram para estas eleições sabendo que teriam de se reencontrar com o eleitorado do centro, moderado, que flutua habitualmente entre os dois partidos, e que olhava para eles com desconfiança. Por motivos diferentes, tinham (e talvez ainda tenham) essa fragilidade teórica: Pedro Nuno, que se fez jovem turco no PS, que começou por se afirmar como sendo o rosto da ala mais à esquerda do partido, que foi rotulado como radical e ainda lhe juntou a fama de impulsivo quando passou pelo governo, assusta o centro; Luís Montenegro, ponta de lança do passismo, associado à ala mais à direita do PSD, líder parlamentar durante o tempo da troika, o homem que em tempos disse que o país estava melhor, as pessoas nem por isso, não lhe ficava muito atrás. E esta campanha também é sobre quem consegue assustar menos esse eleitorado.
Atendendo à evolução das tendências de voto, Montenegro parece estar a conseguir ser mais bem sucedido nesse processo. Mas, e este é um dado importante que vai pesando nas contas das equipas dos dois principais candidatos, o número de indecisos é ainda estatisticamente muito relevante, pelo que qualquer falha no guião pode comprometer as aspirações e virar a campanha completamente do avesso. No arranque da corrida eleitoral, a Aliança Democrática correu um risco calculado — a inclusão de Pedro Passos Coelho e, com ele, um renovado debate sobre pensões e imigração — e deu um tiro no pé com as declarações de Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, sobre o referendo ao aborto. Erro que deixou a direção do PSD de cabelos em pé e que mereceu puxão de orelhas em público de Montenegro.
Pedro Nuno Santos, que parece estar a perder a corrida pelo centro, agarrou-se aos temas e está apostado em recuperar a narrativa. Sendo que pode gozar de um duplo efeito. Os desiludidos com o PS que estariam a ponderar votar na AD mudam de ideias; e a esquerda, aquela que tem receio de uma vitória da coligação da direita, mobiliza-se em torno de Pedro Nuno. De resto, o socialista parece ter-se adaptado à dinâmica que a Aliança Democrática está imprimir: tudo o que vai fazendo é agarrar nos temas com que se cruza, usando-os como ingredientes para agigantar a ideia da radicalização da direita, sem referir diretamente o Chega.
Só a tinta verde impediu o pior
Os socialistas estão empenhados em fazer cerco aos indecisos do centro político, onde um discurso mais extremado e que toque em temas como imigração ou o aborto — como aconteceu nestes primeiros dias de campanha — pode conservar no PS os eleitores que estejam a pensar transferir o seu voto para a Aliança Democrática. E há trunfos que caem aos trambolhões, como aconteceu depois de Paulo Núncio ter defendido o referendo ao aborto num debate promovido, esta terça-feira, pela Federação Portuguesa pela Vida.
Pedro Nuno Santos não hesitou em aproveitá-lo para fazer a demarcação face a Montenegro, argumentando que a Aliança Democrática “quer é voltar atrás ao tempo das prisões, do risco de vida para a mulher e à criminalização”, disse atirando a um “projeto de recuo, de regresso ao passado”. Antes dele, também numa ação de campanha do PS, Eurico Brilhante Dias tinha dito que “o diabo está neste retrocesso civilizacional”, falando numa “direita entalada” que “começa a fazer progressivamente o discurso da extrema-direita“.
À noite, num comício a partir de Santarém, Alexandra Leitão, ex-ministra da Educação e coordenadora do programa eleitoral do PS, retomou as investidas. “Nenhum avanço pode ser tomado como garantia. Qualquer recuo neste caminho é fatal. Votar em toda a direita, seja ela qual for, é abrir o caminho ao retrocesso no direitos das mulheres”. Pedro Nuno Santos acrescentaria: “Trazem Passos. para a campanha, lembram os cortes nas pensões, querem recuar na interrupção voluntária da gravidez e queriam que ficássemos calados? Nem um passo atrás”.
Nas redes sociais, nas rádios e televisões, várias figuras do PS fizeram violentas críticas à Aliança Democrática. Não só à boleia da Interrupção Voluntária da Gravidez — em 2015, meses antes das legislativas, uma das últimas medidas aprovadas pela então maioria PSD/CDS foi aprovação de taxas moderadoras no aborto (Montenegro era líder paramentar) –, mas também sobre outras declarações antigas de Paulo Núncio, a propósito da adoção de crianças por casais homossexuais, para tentar fragilizar a coligação à direita.
O tema prometia marcar o dia de campanha da Aliança Democrática, mas o ataque a Montenegro à chegada à Bolsa de Turismo de Lisboa acabou por desviar as atenções políticas e mediáticas das declarações de Paulo Núncio. Ainda assim, Nuno Melo deu um primeiro sinal logo depois do incidente com o líder da coligação. “Não é tema para a legislatura”, tentou despachar o democrata-cristão. Antes do almoço, e já refeito do que lhe acabara de acontecer, Montenegro desautorizou publicamente Núncio e não escondeu alguma irritação com o erro cometido pelo parceiro júnior da coligação.
“Era melhor que não houvesse nenhum ruído na transmissão da mensagem? Claro que sim. Mas o que os portugueses querem saber é qual é a minha [posição] e o comprometimento da AD, e esse é muito claro: não vamos mexer nesta legislação. É tão simples quanto isso. Não temos nenhuma intenção de o fazer, que não seja cumprir a lei, dar às mulheres portugueses todas as condições para poderem, dentro daquilo que a lei estabelece, tomar a sua decisão, de forma bem informada, de forma planeada, de forma segura do ponto de vista da sua saúde”, foi repetindo Montenegro antes de um almoço com pescadores, na Costa de Caparica.
No núcleo mais próximo de Montenegro, as declarações de Núncio entraram diretamente para o campeonato da alucinação. Não que se negue ao CDS o direito de ter uma agenda e ideias próprias; mas falar de um referendo ao aborto num arranque de uma campanha que está, aos olhos do PSD, a correr bem, é, para os sociais-democratas, de um “amadorismo” brutal. Um referendo ao aborto ou alterações à lei da IVG não estão, nunca estiveram, nem vão estar na agenda de um futuro governo PSD/CDS que venha a resultar das próximas eleições, jura-se na coligação. Logo, o que aconteceu era perfeitamente dispensável. “Não é altura de cometer erros. Nem de sedes de protagonismo”, vai-se avisando no PSD.
Passos foi risco calculado; Moedas não deixou cair tema
Em boa verdade, para um líder que quer (e precisa) de fazer campanha pelo centro moderado, Luís Montenegro está, de alguma forma, em modo “gestão de danos” desde segunda-feira uma vez que a sua própria campanha virou, voluntaria e involuntariamente, à direita. Ainda assim, se a questão do aborto é vista como um erro perfeitamente dispensável, a entrada em cena de Pedro Passos Coelho na segunda-feira permitiu, acredita-se na Aliança Democrática, retomar temas importantes para a direita, nomeadamente a questão da imigração. Por outras palavras: ao contrário do que os adversários vão pensando e dizendo, o discurso de Passos sobre imigrantes não prejudica as aspirações de Montenegro; na equipa mais próxima do líder do PSD pensa-se exatamente o contrário.
Na noite segunda-feira, o antigo primeiro-ministro estabeleceu uma ligação direta entre imigração e a perceção de insegurança, ideia que não é confirmada pelos dados que existem. O facto de o ter feito a partir do Algarve, onde o PSD tenta a todo o custo conter a ascensão do Chega, não foi uma coincidência. No dia seguinte, e apesar de não ter alinhado exatamente no discurso de Pedro Passos Coelho, Montenegro não o deixou cair.
“Não estou a dizer que as pessoas vêm do estrangeiro para Portugal têm tendência para criar problemas. Mas criam um sentimento [de insegurança], quando não são bem integradas, e esse sentimento tem de ser combatido, como é evidente”, tentou enquadrar Montenegro, focando a questão, precisamente, na necessidade de integrar condignamente os imigrantes.
Esta quarta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa, que, no passado, já tinha criticado duramente Luís Montenegro e Carlos Moedas por declarações sobre imigração, demarcou-se, nas entrelinhas, das palavras do antigo primeiro-ministro, atribuindo às palavras de Passos Coelho uma intenção meramente eleitoralista. “Cada um, naturalmente, dramatiza naquilo que entende que é útil para a obtenção de votos.”
Montenegro, por sua vez, não mais falou do tema. No entanto, Carlos Moedas, convidado especial do comício desta quarta-feira, em Évora, não deixou cair a questão, provando que a intenção da Aliança Democrática é mesmo cobrir o flanco à direita. “Sim, o nosso país precisa de imigrantes. Mas, para isso, precisa de uma verdadeira política de imigração. O PS e a extrema-esquerda criaram o caos na imigração. Nós queremos receber com dignidade. Não podemos tolerar atentados contra a dignidade humana”, defendeu o presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
O movimento da AD gerou um contra-movimento à esquerda. Inicialmente, o PS considerou desnecessário avançar com uma resposta do líder a Pedro Passos Coelho, por entender que as declarações do ex-primeiro-ministro eram suficientemente graves para falarem por si. Preferiu deixar a ideia ser cozinhada primeiro no lume dos comentadores, enquanto o líder se dedicava sobretudo a recordar a memória da troika e das promessas que Passos fez em 2011 e não cumpriu durante a legislatura que se seguiu. Perante a evolução da situação, o próprio Pedro Nuno Santos tomou a iniciativa de agarrar o tema, precisamente para traçar “a diferença” face ao PSD de Montenegro.
“Vou falar de imigração ao almoço”, avisou logo esta manhã durante uma visita a uma incubadora de startups. Falou e não foi o único. Antes dele, o cabeça de lista pelo círculo de Leiria (que liderou a bancada parlamentar nos dois últimos anos), Eurico Brilhante Dias, fez o mesmo, marcando logo o ritmo ao comparar o discurso da AD ao de “Le Pen em França, a AFD na Alemanha, Salvini na Itália e o Vox em Espanha”.
Pedro Nuno diria depois que o PS “não enterra a cabeça na areia” perante um “fenómeno que traz alguma tensão”, mas também defendeu que é preciso “encarar o fenómeno de forma diferente” do que a direita — toda colocada no mesmo saco, já que Pedro Nuno Santos se refere normalmente assim, a “eles”. “[É preciso] um combate sem trégua ao tráfico de seres humanos, à imigração ilegal, à exploração de imigrantes”, defendeu o líder socialista.
Além disso, Pedro Nuno Santos recordou que seriam vários os setores económicos que parariam “se não houvesse imigração” e que seria a própria sustentabilidade da Segurança Social que ficariam em causa. “Temos de combater a desinformação. São 1.600 milhões de euros o saldo positivo, o contributo dos trabalhadores imigrantes em Portugal. É 40% do excedente da Segurança Social de 2022.”
O tema seria recuperado à noite por Alexandra Leitão, que aproveitou comício do PS para dizer que a “extrema-direita racista e xenófoba está à espreita” e que o PSD e o CDS “querem agradar a esse eleitorado”. “Passos Coelho e Paulo Núncio vieram à campanha dizer o que Luís Montenegro e Nuno Melo não dizem mas pensam, que não anunciam mas que farão quando chegarem ao poder”, avisou a socialista.
A troika em carne e osso anima PS
É um assunto referido pelo PS sempre que possível, que sabe bem que a reposição da atualização automática das pensões à inflação e os aumentos extraordinários das pensões mais baixas que traz no currículo dos oito anos segura votos. No partido há até quem diga que existe, neste momento, algum “voto envergonhado” no PS que não está a ser refletido nas sondagens. Ou seja, existem eleitores que sentem algum embaraço em assumirem publicamente que votam num partido desgastado e a braços com “casos, casinhos” e todo um super-caso de Justiça, mas que, no recato da cabine de voto, acabam por fazer a cruz no quadrado socialista.
Alguns socialistas ouvidos pelo Observador falam no argumento, num misto de análise do que ouvem e veem na estrada e de expectativa em conseguir conservar consigo os setores que as políticas dos últimos oito anos têm favorecido. Afinal, foi assim noutros atos eleitorais recentes — nas últimas eleições, António Costa acusou várias vezes Rui Rio de esconder uma agenda de privatização da Segurança Social e, também por isso, colheu um apoio maioritário do eleitorado mais velho.
É por isso que desde que Pedro Passos Coelho apareceu na campanha da AD Pedro Nuno Santos tem esfregado as mãos de contentamento, aproveitando todos os momentos para apelar ao votos dos pensionistas, agitando o perigo de reversão do que foi conquistado. Esta quarta-feira, juntou-lhe Luís Montenegro e a sua promessa de se demitir caso tenha de cortar pensões. Pedro Nuno nem quis saber da promessa, agarrou apenas na premissa “se tiver cortar pensões”, para alimentar o monstro: “Mas se tiver de cortar porquê? O que mostrámos nestes anos em que governámos é que não é preciso cortar pensões”, atirou ao adversário.
“Não podemos dar essa oportunidade [à direita]. O que o PSD nos está a dizer é que ao primeiro aperto serão os mesmos a ser atingidos”, insistiu o socialista. “Se há partido que perante a incerteza o garante a estabilidade somos nós. Em três anos tivemos pandemia, guerra e inflação, fomos testados ao limite e o que o PS mostrou é que perante a incerteza não podemos atingir os mesmos de sempre.”
Ora, Luís Montenegro, que desde o início da sua liderança procura desesperada e assumidamente reconciliar-se com o eleitorado mais velho, não ignorava que a presença de Passos na campanha iria reavivar todos os fantasmas da troika — isto numa altura em que, como explicava aqui o Observador, existem indícios objetivos de que existe uma recuperação relevante da coligação junto dos reformados, demonstrados em sondagens oficiais e nos estudos de opinião internos que a equipa da coligação vai mantendo ao longo da campanha.
Por isso, travar o eventual efeito “Passos” – que se presume que seja ainda negativo junto dos mais velhos – foi, por isso, essencial. Até ver, a equipa de Montenegro não tem qualquer indicador de que a presença do antigo primeiro-ministro tenha motivado alguma quebra de confiança desse segmento na Aliança Democrática. A tracking poll da CNN mostrou uma inversão na tendência de queda do PS, mas os valores são irrelevantes para serem considerados. Ainda assim, todo o cuidado é pouco. Um dia depois de o antigo primeiro-ministro ter aparecido, Montenegro travou-se de razões com duas reformadas e prometeu, por duas vezes, que se demitiria caso tivesse de cortar um “cêntimo” às pensões — ou até mesmo se fosse incapaz de as aumentar. Dramatização com dramatização se paga.