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Tudo começou com um erro.
Em 1958, o líder soviético Nikita Kruschev tinha feito um ultimato aos governos dos Estados Unidos da América, Reino Unido e França: tinham seis meses para retirar as suas tropas de Berlim Ocidental, ali estacionadas desde os acordos pós-II Guerra Mundial. A exigência pôs em marcha uma série de negociações entre Washington e Moscovo, que decorreram em Genebra, durante meses e meses.
Foi então que o Presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, decidiu tomar uma atitude que poderia ajudar a quebrar o impasse: convidar o presidente do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) para visitar os EUA. Na sua cabeça, Eisenhower tinha uma ideia: Kruschev seria convidado para ir à América, mas com a condição de que ambos os líderes chegassem a um acordo final sobre a questão de Berlim Ocidental. Só que houve um problema: por falha dos americanos, a carta-convite oficial, enviada para Moscovo, não incluiu esta condição.
Kruschev, porém, não hesitou em aceitar o convite assim que recebeu a carta. E, perante o possível embaraço diplomático de deixar cair a visita, os norte-americanos não voltaram a levantar a questão. Para o Ocidente, a viagem de Kruschev seria importante para testar se a política de “coexistência pacífica” entre os dois blocos proposta pelo líder soviético era real ou apenas bluff. O desconhecimento e paranoia eram reais. Kruschev era um líder que, chegado ao poder, denunciou o terror estalinista e criticou-o em público, prometendo mudanças para a União Soviética. Ao mesmo tempo, foi ele quem liderou o esmagamento da revolta na Hungria, em 1956, que resultou na morte de 2.500 pessoas.
Do lado soviético, a desconfiança também existia. “Primeiro, não acreditei. Era tudo tão inesperado. Não estávamos preparados para algo assim. As nossas relações estavam tão tensas que um convite para uma visita amigável do chefe de governo soviético e secretário-geral do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética parecia inacreditável”, recordaria mais tarde o líder soviético a propósito do convite para visitar os EUA.
O desejo de Kruschev de conhecer a América, porém, não era novo. O próprio já o tinha expressado num encontro com governadores norte-americanos em 1957. O seu filho, Sergei, garante que o pai ficou satisfeito ao receber a carta de Eisenhower: “Era um reconhecimento de facto dos EUA da sua posição e uma resposta positiva de que iriam tratar a União Soviética de igual para igual. Ele viu isto como uma vitória da sua política”, recordou Sergei Kruschev à académica norte-americana Kyle A. Cordon, numa entrevista em 2009.
Com o convite aceite, os dois lados começaram a preparar os detalhes e a logística de toda a viagem. E, logo aí, tornou-se evidente o quão pouco norte-americanos e soviéticos se conheciam. Quando Kruschev recebeu o programa e viu que incluía negociações em Camp David, a casa de férias dos presidentes norte-americanos onde é habitual receberem chefes de Estado estrangeiros, os soviéticos ficaram em pânico. “Como a palavra ‘campo’ na União Soviética era associada a uma zona militar ou a um campo de trabalhos forçados, Kruschev e os seus conselheiros temeram que pudesse ser um aterro escolhido para humilhar a delegação soviética”, resumiria anos mais tarde a investigadora Tatyana I. Puchkova. Depois de vários contactos, o mal-entendido foi clarificado.
Enquanto em Moscovo se questionava tudo, em Washington preparava-se uma operação de segurança monumental. “O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, estimou que pelo menos 25 mil americanos queriam matar Kruschev. E um responsável do Departamento de Estado disse aos jornalistas que o número de ameaças de morte ‘deixou-nos muito preocupados’”, conta o jornalista Peter Carlson, autor do livro K Blows Top (sem edição em português) sobre toda a viagem do líder soviético à América.
Assim, ficou definido que, quando Nikita Kruschev, a mulher e os três filhos chegassem a território norte-americano, seriam protegidos por 3.300 agentes, incluindo um guarda-costas pessoal. Um artigo da altura, da agência de notícias UPI, nota como era um cordão de segurança maior do que aquele que tinha protegido a Rainha britânica Isabel II, que visitara Nova Iorque dois anos antes. “Só Hitler podia ter sido pior para nós”, desabafava um polícia sobre as preparações de segurança.
Terça-feira, 15 de setembro de 1959. Uma receção com curiosidade e um jantar com regras de etiqueta quebradas
Ultrapassados todos os constrangimentos, Kruschev e a família finalmente aterram na base aérea de Andrews a 15 de setembro de 1959. Vêm num Tupolev 114, o novo avião militar soviético, capaz de fazer a viagem sem ter de parar para abastecer. O modelo, porém, era tão recente que ainda tinha problemas técnicos — razão pela qual o engenheiro que projetou a aeronave foi convidado para seguir a bordo durante a viagem até Washington, caso surgisse algum problema.
Não aconteceu nada. Quando os Kruschev aterraram, “o tempo estava maravilhoso”, recordaria o líder soviético mais tarde. “Quando olhei pela janela do avião, vi muita gente reunida. Havia um pódio montado para alguém discursar, soldados alinhados para darem boas-vindas oficiais e uma passadeira estendida. Mas o que chamou a minha atenção foi a multidão de pessoas nas suas vistosas roupas de verão, muito elegantes.”
Perante uma assistência de centenas de pessoas, o Presidente Eisenhower começa por receber Kruschev e dar-lhe a palavra. “Viemos ter convosco de coração aberto e com boas intenções”, garante Kruschev. “O povo soviético quer viver em paz e amizade com o povo americano.”
A visão de um líder atarracado, careca e com uma grande verruga na cara impressiona muitos dos populares que ali se reuniram para o ver ao vivo pela primeira vez. “Que homem tão curioso”, comenta uma mulher. Curiosidade é, de facto, a palavra que melhor resume o estado de espírito dos norte-americanos em relação à visita de Kruschev. À medida que a coluna de carros sai da base militar e segue em direção ao centro de Washington DC, as multidões por que vai passando observam quase em silêncio.
Há alguns que se manifestam: muitos húngaro-americanos, por exemplo, mostram cartazes onde se lê “Assassino” e “Carniceiro de Budapeste”. Mas a maioria dos milhares que acompanham a passagem do carro de Kruschev mantêm-se apenas calados a observar. “Parece mais uma procissão funerária do que uma parada”, comenta uma mulher com o jornalista do New York Times. “Não sabia se havia de aplaudir ruidosamente, se devia aplaudir educadamente ou apenas ficar ali a emitir pequenos sons que podiam ser traduzidos como qualquer coisa”, resumiria mais tarde o colunista do Washington Post George Dixon. Kruschev notou. “As pessoas olhavam para nós como se fôssemos uma coisa estranha”, comentaria depois Kruschev.
A estranheza não vinha apenas do facto de estarem na presença do líder soviético. Em particular, os norte-americanos estavam preocupados com um comentário feito por Kruschev anos antes de que a União Soviética iria “enterrar” os Estados Unidos. Sabendo disso, Nikita decide abordar o tema de frente e, assim que tem oportunidade, fala disso aos jornalistas em Washington: “As minhas palavras foram distorcidas deliberadamente”, afirma. “Aquilo que eu queria dizer é que, no sentido histórico, o capitalismo vai ser enterrado, porque estou convencido de que o comunismo vencerá.”
O programa dita que, nessa noite, Kruschev e a família serão recebidos com um banquete na Casa Branca. Na Sala Oval, o soviético entrega a Eisenhower uma réplica da sonda espacial Lunik II, que tinha aterrado na lua dois dias antes. Podia ter sido visto como uma pequena provocação, em plena corrida ao espaço entre as duas potências. Mas o Presidente norte-americano decide não levar a mal.
Também não leva a mal o facto de Kruschev ter quebrado as regras de etiqueta do convite para o jantar, que exigia aos homens que levassem gravata branca e fraque. O soviético opta antes por um fato preto e gravata cinzenta; mas, como lembra o jornalista Carlson no seu livro sobre a visita, não foi o único. Toda a delegação soviética acompanhou o líder na forma de vestir.
Ao jantar, os mais de cem convidados — onde se incluem os diretores do FBI e da CIA, bem como o presidente da Bolsa de Nova Iorque — são servidos com salada de caranguejo e peru assado com molho de broa de milho. A banda Fred Waring e The Pennsylvanians toca para entreter os convidados.
Quarta-feira, 16 de setembro de 1959. Porcos e perus, a vénia a Lincoln e o comunismo igual “à verruga” de Kruschev
Na manhã seguinte, Kruschev não perde tempo. Logo às 9h40, a sua delegação vai visitar uma estação experimental agrícola ali perto, em Beltsville. O líder soviético deixa um comentário sobre o que vê: “Os porcos são demasiado gordos e os perus demasiado pequenos.”
De regresso à capital, é recebido num almoço no National Press Club. Após o seu discurso, onde reafirma o desejo de criar laços entre soviéticos e americanos, é confrontado com perguntas — e, inevitavelmente, surge a questão sobre o comentário do “enterro”. Kruschev reage primeiro com uma piada: “Se eu tentasse começar a enterrar só o grupo que aqui está, uma vida inteira não chegava.” Depois, tenta explicar uma vez mais que falava não de matar literalmente os norte-americanos, mas da sua crença no determinismo histórico marxista que previa a vitória inevitável do comunismo a longo prazo, em todo o mundo. “O comunismo irá tomar o lugar do capitalismo e o capitalismo será, de certa forma, enterrado”, clarifica.
Após o almoço, é preciso ocupar algum tempo até ao encontro com o comité de Relações Externas do Senado, e Kruschev pede para ir ver o Lincoln Memorial. Henry Cabot Lodge, o embaixador norte-americano nas Nações Unidas e cicerone oficial da visita, explica ao soviético a importância da figura. “Lincoln foi o homem que acabou com a escravatura e nos colocou no caminho da igualdade plena”, diz. Kruschev responde com admiração: “É por isso que o nosso povo respeita Lincoln. É por isso que o honramos e nos curvamos perante ele”, afirma, enquanto faz uma vénia à estátua.
Às 15h30, Kruschev chega ao Capitólio para o encontro com os senadores, onde estava combinado que tomariam chá. Nikita, porém, não aceita a chávena: “É difícil beber e falar ao mesmo tempo”, diz. “Mas, em geral, gosto de chá”. “Podemos oferecer-lhe antes vodka”, sugere o presidente do Comité, William Fullbright, mas Kruschev recusa. Em vez disso, aproveita o momento para reiterar aos congressistas a relevância e poder da União Soviética.
— “O comunismo é como a verruga na minha cara”, diz, apontando para o visível sinal ao lado do seu nariz. “Não posso fazer nada quanto a isto.”
— “Está, portanto, convencido de que o vosso sistema é melhor do que o nosso…”, começa por dizer Fullbright.
— “Completamente convencido”, responde Kruschev, cortando-lhe a palavra.
Nessa noite, é a vez dos Kruschev receberem os Eisenhower na embaixada soviética. Não há salada de caranguejo e peru, mas sim caviar, borscht (sopa ucraniana de beterraba) e perdiz, acompanhados de vinho do Cáucaso e vodka. Desta vez, a música fica a cargo do pianista americano Van Cliburn, vencedor da última Competição de Música Internacional Tchaikovsky, patrocinada pela União Soviética.
Ao brindar, Nikita Kruschev descreve o Presidente Eisenhower como “um bom amigo” e diz esperar que a visita leve a “um período caloroso nas relações internacionais”. O norte-americano responde com outro brinde, elevando a sua taça de champanhe: “Que isto seja pelo menos o começo do degelo de que o senhor Kruschev fala.”
Quinta-feira, 17 de setembro de 1959. Kruschev fica preso num elevador e garante aos capitalistas que não tem “cornos na testa”
Ao terceiro dia, Kruschev e a família partem para a cidade de Nova Iorque.
A receção dos nova-iorquinos é também morna, como em Washington. O responsável do hotel onde fica alojado, o Waldorf-Astoria, diz aos jornalistas que os aplausos da multidão reunida à porta “não foram entusiásticos, mas amigáveis”. Já dentro do hotel de luxo, acontece um momento embaraçoso. Nikita entra no elevador com Henry Cabot Lodge, o seu cicerone da ONU, e o responsável do hotel. Mas, enquanto sobem, o elevador fica encravado entre dois pisos. Acabam por ter de tentar escalar para o piso de cima, com Lodge a empurrar a traseira de Kruschev.
Passada a estranheza do momento — e com o elevador já a funcionar normalmente —, os Kruschev instalam-se. O líder soviético almoça com o presidente da Câmara, Robert Wagner Jr., e depois segue para um encontro com empresários do Clube Económico de Nova Iorque, que tem lugar numa sala de conferências de Waldorf-Astoria. Perante o grupo de capitalistas, Nikita justifica a sua visita à América recordando um episódio passado com o marechal norte-americano McDuffy, que conheceu quando ambos estiveram na Ucrânia.
“Depois da morte de Estaline, comecei a trabalhar em Moscovo”, conta. “Recebi o senhor McDuffy algumas vezes. Ele foi até Moscovo e insistiu que seria uma coisa muito boa se eu viesse à América. Perguntei-lhe porquê e ele disse que muitos americanos acham que eu tenho cornos na testa e que seria um grande feito para a União Soviética se eu conseguisse provar o contrário”. A multidão aplaude o comentário. “Os cavalheiros aqui presentes podem ver facilmente que não tenho cornos na testa, porque não há muito cabelo para os esconder.”
Sexta-feira, 18 de setembro de 1959. Sete minutos com Eleanor Roosevelt e Kruschev pouco impressionado com o Empire State Building
A manhã de sexta-feira começa chuvosa, mas nada trava o programa da visita.
Kruschev e Lodge entram na limusine para ir até Hyde Park encontrarem-se com a antiga primeira-dama Eleanor Roosevelt. O líder soviético deixa uma coroa de flores no túmulo de Franklin D. Roosevelt e passeia pela biblioteca com a viúva. A visita, contudo, é apressada, porque é suposto Kruschev discursar nas Nações Unidas. “Ele não gostou nada”, recordaria Eleanor. “Um homem atrás dele estava a sussurrar ‘Sete minutos, sete minutos’”.
Kruschev segue então para o edifício da ONU, onde discursa perante os delegados e volta a afirmar o desejo de que seja possível concretizar o desarmamento nuclear e o fim da Guerra Fria. Ao final do dia, faz uma última visita à cidade, acompanhado de Lodge. O Empire State Building não o impressiona — “Quando já se viu um arranha-céus, já se viu todos”, diz.
Em vez disso, sublinha aos jornalistas que lamenta não se ter podido encontrar com os trabalhadores. “Como antigo trabalhador mineiro, teria um prazer especial em encontrar os trabalhadores da cidade”, confessa. “Mas disseram-me que, se fosse aos bairros populares, poderia ser alvo de provocações e disseram-me que isso traria dificuldades em termos de segurança.”
Apesar disso, no caminho para o aeroporto, Kruschev faz questão de pedir para que atravessem o bairro do Harlem, apesar de não lhe ser permitido sair do carro. Próxima paragem: Califórnia.
Sábado, 19 de setembro de 1959. O almoço com estrelas de Hollywood e a birra por não ir à Disneyland
O itinerário na cidade californiana começa com um encontro com a elite de Hollywood. Organizado pelo estúdio Twentieth Century Fox, o almoço tem lugar no Café de Paris e conta com 400 convidados. Longe vão os tempos do macartismo, em que as estrelas temiam ser associadas ao comunismo; agora, estão ali Gary Cooper, Frank Sinatra, Elizabeth Taylor, Kim Novak, Dean Martin, Judy Garland, Kirk Douglas, Zsa Zsa Gabor e tantos outros. Poucos recusaram o convite — entre eles Bing Crosby e Ronald Reagan.
O evento foi recordado por Peter Carlson num longo artigo para a revista Smithsonian. Ali se relata como o estúdio fez questão de que Marilyn Monroe fosse uma das presentes: “Disseram-lhe que, na Rússia, a América significava duas coisas: Coca-Cola e Marilyn Monroe. Ela adorou ouvir isso e acedeu”, revelou mais tarde a sua antiga criada, Lena Pepitone.
Enquanto o almoço decorre, o chefe da polícia de Los Angeles aproxima-se de Henry Cabot Lodge para lhe explicar que uma das partes do programa terá de ser eliminada: a visita à Disneyland, que Kruschev tinha sugerido. Na chegada à cidade, um popular atirara um tomate à limusine da delegação — e os agentes viram isso como um sinal de problemas se decidirem ir ao parque temático. “Como representante do Presidente, quero dizer-lhe que não serei responsável pela segurança do secretário-geral se formos à Disneyland”, diz o agente ao ouvido de Lodge. “Muito bem, chefe. Se não é responsável, não vamos e fazemos outra coisa”, responde-lhe o embaixador.
Um soviético da delegação ouve a conversa e vai informar Kruschev do que se passa. Este escrevinha uma nota e pede que seja passada a Lodge: “Percebi que cancelou a viagem à Disneyland. Estou muito desagradado.” A mulher do secretário-geral, Nina Petrovna Kruscheva, comenta com o ator David Niven a desilusão pelo cancelamento. Sinatra, que está sentado ao lado deles, irrita-se. “Que se lixem os polícias”, diz a Niven. “Diz à velha que eu e tu os levamos lá à tarde.”
Kruschev não sabe nada disto, mas, quando finalmente é chamado a discursar perante as estrelas de Hollywood, o líder soviético deixa claro esse desagrado: “Mas vocês têm lá plataformas de lançamento de foguetes? O que se passa? Há lá uma epidemia de cólera ou peste? Ou os gangsters tomaram conta do local e podem destruir-me? Queria muito ir ver a Disneyland. Para mim, esta situação é inconcebível.”
Mais tarde, já mais calmo, pede desculpa. “Vocês talvez digam ‘Que convidado difícil’. Mas eu sigo a regra russa: ‘Come o pão e o sal, mas diz sempre o que pensas’. Por favor, perdoem-me se fui um pouco irascível. Mas a temperatura aqui contribui para isso.”
Após o almoço, o diretor do estúdio leva Kruschev para um dos sets onde está a ser filmado o filme Can-Can. Pelo caminho, cruzam-se com Marylin Monroe. Kruschev aperta-lhe a mão.
— “Você é uma jovem adorável”, diz-lhe.
— “O meu marido, Arthur Miller, envia-lhes cumprimentos”, responde a atriz. “Devia haver mais coisas deste género. Ajudaria os nossos países a compreenderem-se.”
Mais tarde, Marilyn confessaria que se sentiu desconfortável com a atitude do soviético: “Olhou para mim como um homem olha para uma mulher”.
A caminho do estúdio, Sinatra — que é a estrela principal do Can-Can — aproxima-se de Kruschev. “Este é um filme sobre raparigas bonitas e os tipos que gostam delas”, diz-lhe. Mas, ao assistir às gravações, o secretário-geral do PCUS fica desconfortável. “Há momentos nesta dança que não podem ser considerados decentes, cenas que não seriam aceites por toda a gente”, comenta a seguir.
O dia termina com um banquete no Hotel Ambassador, organizado pelo presidente da Câmara Norris Poulson. E, depois da visita cancelada à Disneyland, acontece outro momento tenso. Poulson decide usar o seu discurso para confrontar Kruschev uma vez mais com o comentário sobre “enterrar” os norte-americanos. “Não pode enterrar-nos, senhor Kruschev, portanto nem tente”, diz o autarca. “Se formos desafiados, lutaremos até à morte.”
Kruschev reage irritado: “Às vezes assalta-me o pensamento desagradável de que talvez Kruschev tenha sido convidado para ser mergulhado no vosso molho e para que demonstrem o poder e força dos EUA, de forma a fazer os joelhos tremerem-lhe. Se for esse o caso… Demorei 12 horas a chegar aqui, não demoro mais de 10h30 a voar de volta.”
Depois do jantar, Lodge tenta acalmar Kruschev. “Não temos controlo sobre os nossos autarcas”, explica. “O Presidente não o convidaria para depois tentar causar-lhe infelicidade”, garante. O soviético, ainda irritado, responde que Poulson “tentou mandar um peido, mas acabou a cagar-se nas calças”.
Chegado ao hotel, Kruschev reúne-se com a sua delegação e volta a expressar o seu desagrado, dizendo que afinal a viagem deve ter sido um plano americano para colocar pressão sobre a União Soviética. Mas, nota a académica Tatyana I. Puchkova, a conversa teve um pormenor interessante: quando acabou de falar, Kruschev sorriu “e apontou em silêncio para as paredes e para o teto do quarto, que ele tinha a certeza que teriam escutas”. O objetivo era demonstrar aos americanos que não estava intimidado. Mais tarde, o próprio confessaria que não tinha intenções de regressar mais cedo, mas que achou “necessário que este anti-soviético levasse na boca, mesmo tendo um cargo de relevo”.
Domingo, 20 de setembro de 1959. Um banho de multidão num apeadeiro, o fim da “prisão domiciliária” de Kruschev
A manhã de domingo começa com uma viagem de comboio em direção a São Francisco. Kruschev ainda não sabe, mas será muito importante para ele: irá permitir-lhe pela primeira vez ter contacto de perto com a população, como tanto deseja.
“Quando o comboio chegou a Santa Barbara, a primeira paragem, Lodge levou Kruschev até à plataforma, que estava cheia de gente. Era um lindo e solarengo domingo e as pessoas estavam vestidas de forma bastante casual e foram amigáveis”, recorda Peter Carlson no seu livro.
“Lodge apresentou o visitante, a audiência aplaudiu e Kruschev, sorrindo com um ar feliz, foi em direção à multidão. Deu apertos de mão. Deu palmadinhas nas costas. Fez festinhas nas cabeças das crianças. Fez vénias elegantes às senhoras. Até deu um beijinho a um bebé.”
De regresso ao comboio, perguntam-lhe se quer beber um copo de vodka, conhaque ou whiskey. “Não, está demasiado calor”, responde. “Hoje, conquistei a minha liberdade. Pude conhecer americanos reais e olhá-los nos olhos. Estou feliz, porque a prisão domiciliária em que fui colocado acabou.”
Segunda-feira, 21 de setembro de 1959. Kruschev fica impressionado com um refeitório e tem uma visita caótica a um supermercado
Já em São Francisco, a primeira paragem é na IBM, empresa fabricante de computadores. “O pai e os especialistas soviéticos tinham apenas uma vaga ideia do que era a IBM”, revelaria décadas mais tarde o filho Sergei. “O pai não ligou muito aos computadores, mas ficou pasmado com o refeitório da IBM.” O modelo de tabuleiros em linha, onde cada um se ia servindo do buffet impressiona o líder soviético, que considera aquele exemplo “uma disposição democrática” e anuncia que irá tentar implementar o mesmo em Moscovo.
Depois da visita à empresa, Kruschev volta a ter um banho de multidão — desta vez num grande supermercado. “As portas do supermercado abriram-se e Kruschev entrou, seguido de Lodge e da habitual multidão de guarda-costas”, pode ler-se em K Blows Top. “O líder foi primeiro à secção de vegetais. Inspecionou as batatas e apertou uma romã. Pegou numa meloa, cheirou-a, apalpou-a com o polegar e perguntou quanto custava. ‘Ali! Está ali o russo!’, gritou uma velhinha. ‘O fofinho é gordo!’”. Num instante, Kruschev está rodeado de pessoas a tentarem tocar-lhe.
À tarde, contudo, o momento será mais polémico. O líder do PCUS encontra-se com um sindicato de estivadores conhecido por ter simpatias comunistas. Kruschev defende o presidente, Harry Bridges: “Ele não é comunista, mas tem uma posição de esquerda e uma atitude muito positiva em relação à União Soviética”, afirma. Depois tira fotos com os trabalhadores — “Posso chamar-vos camaradas?”, pergunta a certa altura — e um deles tira o boné e coloca-o na cabeça de Kruschev. A imprensa norte-americana, porém, não gostou da visita, que considerou política. “Kruschev deixou claro que aprecia mais homens como Bridges do que os líderes da AFL-CIO [maior sindicato norte-americano], os verdadeiros porta-vozes da classe trabalhadora neste país”, escreveu o Los Angeles Times.
Kruschev, contudo, está felicíssimo. “Todas as cidades americanas que visitei são boas, mas São Francisco é a melhor”, declara.
Terça-feira, 22 de setembro de 1959. “Vocês fazem melhores salsichas do que nós”
A viagem continua e, no dia seguinte, a próxima paragem é o estado do Iowa, com uma receção inicial na mansão do governador Herschel Loveless, na capital de Des Moines.
Segue-se uma visita uma fábrica de produtos alimentares. A certa altura, oferecem-lhe um cachorro-quente tirado de uma máquina automática. “Com ou sem mostarda?”, perguntam. “Com mostarda, é claro”, responde Kruschev. Come rapidamente o cachorro e, no final, decreta: “Nós chegámos primeiro à lua, mas vocês fazem melhores salsichas do que nós.”
Quarta-feira, 23 de setembro de 1959. A visita a uma quinta e a ameaça do agricultor Garst aos jornalistas
A tour económica continua. Depois da fábrica, é a vez de a delegação ir até Coon Rapids para visitar uma exploração agrícola. Lá chegado, Kruschev considera que o local é muito semelhante às cooperativas agrícolas do seu país.
O dono da quinta, Roswell Garst, faz-lhe uma visita guiada — mas fica irritado com o grupo de jornalistas que os seguem para todo o lado. “Olhem que largo um touro enraivecido sobre vocês”, avisa a certa altura. Kruschev, porém, está bem disposto. “A atmosfera lá foi a mais relaxada de toda a visita à América”, comentaria mais tarde. “O encontro [com Garst] teve uma qualidade humana calorosa, apesar de sermos pessoas com visões políticas diferentes a encontrarem-se.”
O soviético fica impressionado com as técnicas agrícolas da exploração de Garst, mas declara que parte daquela produção intensa é também fruto da sorte. “Vocês são um povo inteligente, mas Deus também vos ajudou”, diz. “Kruschev, é claro, estava a brincar”, nota um recente artigo da Universidade do Kansas. “Ele era um ateu empedernido.”
A visita à quinta termina com um almoço debaixo de uma tenda, que inclui frango frito, entrecosto grelhado e tarte de maçã. O dia seguinte será já longe do Iowa.
Quinta-feira, 24 de setembro de 1959. Kruschev admira as roupas “práticas” das mulheres e visita uma fábrica no meio de uma greve
Quinta-feira é dia de chegar a Pittsburgh, na Pensilvânia. A primeira coisa que impressiona Kruschev é a forma de vestir das mulheres: “Fiquei surpreendido pela forma livre como elas se vestiam”, comentaria mais tarde. “Estas mulheres andavam de calções, calças de ganga e vestidos leves. Pessoalmente, penso que é algo prático.”
O objetivo da paragem na cidade industrial é o de visitar fábricas e falar uma vez mais com trabalhadores, mas a greve de meses que está em curso não o permite. Mesmo assim, Kruschev vai a uma das fábricas de máquinas industriais da Mesta Machine Company e encontra-se com três mil trabalhadores não sindicalizados.
Ao almoço, aproveita o facto de esta ser a última parte pública da viagem para agradecer ao anfitrião e companheiro de viagem, Henry Cabot Lodge. “O senhor Lodge… Não sei se posso dizê-lo, mas… Deve estar contente: a laboriosa tarefa de me acompanhar na minha viagem pela América está quase a chegar ao fim.”
Sexta-feira, 25 de setembro de 1959. Bowling e um western com Eisenhower
De facto, a parte pública da viagem está a chegar ao fim.
Kruschev voa de volta para Washington DC para se encontrar com o Presidente norte-americano a fim de discutir política. Na Casa Branca, Eisenhower leva-o até um dos relvados, onde um helicóptero os espera para voarem até Camp David — e, antes disso, para verem a cidade a partir do céu. “Queria que Kruschev visse todas aquelas casas da classe média e todos os automóveis a saírem de Washington ao final do dia”, admitiria anos depois, como forma de impressionar o homólogo.
O soviético, porém, desconfia. Teme que seja uma armadilha, uma possível forma de o assassinar. Por isso, quando Eisenhower faz o convite oficial para subir a bordo, Kruschev responde: “Se for no mesmo helicóptero que eu, claro que aceito.”
Partem depois para Camp David. Eisenhower faz uma visita guiada à propriedade. “Por fora, parecia uma caserna militar”, escreveria Kruschev nas suas memórias. “Mas, por dentro, tinha uma decoração luxuosa e, ao mesmo tempo, muito profissional — tipicamente americana. Tudo estava bem construído, limpo e confortável.”
Fazem uma visita à cidade próxima de Hickory Lodge, onde visitam um sítio para jogar bowling. Kruschev fica impressionado com o automatismo da maquinaria que substitui os pinos. Quando um dos jogadores ganha, Eisenhower e Kruschev dão-lhe os parabéns e assinam o seu cartão de pontuação. “O meu objetivo nestas conversas de homens para homens era o de perceber melhor as suas intenções, objetivos e características pessoais”, resumiria Eisenhower nas suas memórias. “Usámos um único intérprete — o dele.”
Chegados novamente a Camp David, adiam por mais um pouco as conversas sérias.
— “Quer ver um filme?”, pergunta o Presidente.
— “Claro, se for bom.”
— “Que género prefere? Pessoalmente gosto de westerns. Sei que não têm muita substância e não exigem grande pensamento, mas têm sempre acrobacias pomposas. Para além disso, gosto dos cavalos.”
— “Sabe, quando Estaline era vivo, costumávamos ver westerns a toda a hora”, responde Kruschev. “Quando o filme acabava, Estaline denunciava sempre o conteúdo ideológico [do filme]. Mas, no dia seguinte, lá estávamos nós outra vez no cinema a ver outro western. Tenho um fraquinho por este género de filmes.”
Terminada a sessão de cinema, segue-se o jantar de rosbife e pargo vermelho. As negociações ficam para o dia seguinte.
Sábado, 26 de setembro de 1959. As negociações infrutíferas sobre Berlim em Camp David
O dia de sábado é todo passado com discussões sérias, em particular sobre a questão de Berlim Ocidental. Mas não há qualquer avanço.
“Para resumir”, contaria Kruschev, “as nossas conversas não foram muito produtivas. Na verdade, falharam. Não conseguimos remover os grandes obstáculos que existiam entre nós. Examinámo-los, mas não os retirámos. Perdemos toda a esperança de encontrar uma saída realista para o impasse a que as negociações nos levaram.”
Domingo, 27 de setembro de 1959. “Adeus, boa sorte, amigos”
Apesar disso, no dia da partida Kruschev deixa palavras calorosas para os norte-americanos e, em particular, os que o acompanharam ao longo da viagem — “os meus sputniks”, diz, usando como alcunha os satélites soviéticos.
Num discurso feito a partir de Washington, transmitido na televisão, o soviético dirige-se aos “estimados cidadãos dos EUA”. “Daqui a poucas horas o meu avião irá abandonar solo americano e quero expressar uma vez mais o meu agradecimento ao povo americano, ao Presidente Eisenhower e ao governo dos Estados Unidos, pela sua bondosa hospitalidade e os bons sentimentos que nos demonstraram.” As suas últimas palavras são “Adeus, boa sorte, amigos.”
Kruschev segue depois para a embaixada soviética, onde recolhe toda a bagagem, que inclui produtos comprados em várias lojas americanas como a Saks. Com ele e a família seguem também dois chihuahas, um presente do empresário Alexander Lieb — que levaria a que fosse investigado pelo FBI por receio de que tivesse simpatias comunistas.
É por fim altura de regressar à base aérea Andrews, de onde partirá o Tupolov. Mais uma vez, há passadeira vermelha e salva de tiros. Kruschev volta a agradecer a hospitalidade dos americanos. “Desejo que passemos a usar de forma mais frequente, na relação entre os nossos dois países, a curta palavra americana ‘Okay’”. Depois, com um ramo de rosas vermelhas na mão, o líder soviético entra no avião e deixa a América para trás.
A visita que “teve tudo”, mas não chegou para travar a Guerra Fria
O impacto da visita de 1959 de Kruschev aos EUA marcou todos os que a acompanharam. “Teve tudo”, resumiu o jornalista do Washington Post Chalmers Roberts. “Uma personalidade fabulosa, conflito, interesse humano, o inesperado. Foi mais do que podíamos esperar.”
O fator humano de aproximação entre os dois países foi completamente atingido: americanos e soviéticos viram-se como pessoas reais. E, contudo, houve pouca evolução em termos políticos no que diz respeito à Guerra Fria. O único elemento palpável foi a aceitação de Eisenhower em participar numa cimeira sobre Berlim Ocidental proposta por Kruschev e um convite ao Presidente norte-americano para que visitasse a União Soviética.
O otimismo deixado pela viagem desvanecer-se-ia nos meses seguintes. Duas semanas antes da cimeira combinada para Paris, uma aeronave de espionagem norte-americana foi detetada em espaço aéreo soviético e abatida. Quando Kruschev vai ver os destroços, deixa palavras duras aos jornalistas: “Fiquei horrorizado por saber que o Presidente permitiu estes atos. Se os EUA ainda não tiveram uma guerra real no seu território e querem uma, iremos disparar rockets e atingir o seu território minutos depois.”
Quando lhe perguntam se mantém de pé o convite a Eisenhower para visitar a União Soviética, Kruschev fica em silêncio algum tempo. “O que querem que vos diga?”, acaba por dizer. “Sou um ser humano e tenho sentimentos. Tinha esperanças e elas foram traídas. Como posso agora pedir ao nosso povo que saia à rua e dê as boas-vindas ao caro convidado? Vão dizer ‘Estás maluco? Que raio de caro convidado permite que um avião nos sobrevoe para nos espiar?‘”
Um ano depois deste incidente — e dois anos depois da viagem de Kruschev à América —, no verão de 1961, o Muro de Berlim começaria a ser construído.