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Previa-se uma manifestação “tradicional”: foi definido um ponto de encontro para onde se deviam dirigir de autocarro todos os Sapadores. Quando chegassem, a concentração devia decorrer sem incidentes e o presidente do Sindicato Nacional dos Bombeiros Sapadores (SNBS) devia falar com os elementos de norte a sul do país que participassem no protesto, deixar claras as exigências e explicar que “a luta não se faz num dia”. Mas nada disto aconteceu.
Em vez de um protesto pacífico, os bombeiros decidiram dar “um murro na mesa” e alterar o plano: lançaram petardos, queimaram pneus, derrubaram as grades de segurança e subiram a escadaria da Assembleia da República. Os responsáveis? “Movimentos inorgânicos” que estão habituados a organizar-se sozinhos, sem ligação a qualquer organização, diz o vice-presidente do SNBS. Ao Observador, Leonel Mateus assume que compreende as motivações daqueles que levaram a manifestação para outro nível — e garante que os Sapadores vão voltar a sair à rua.
Há muito que esta manifestação estava a ser pensada pelo Sindicato Nacional de Bombeiros Sapadores, organização criada em setembro de 2019. “Houve uma reunião com a direção e aprovou-se esta forma de protesto”, conta o dirigente do SNBS, acrescentando que a data do protesto ficou marcada há cerca de três semanas.
“Havia um ponto de encontro validado e comunicado” a todos os que quisessem participar na concentração desta quarta-feira — entre os quais a própria Assembleia da República. O sindicato convocou os Sapadores através dos dirigentes sindicais que tem espalhados por todo o país.
Também não se previa “qualquer percurso apeado”, mas é aqui que surge o primeiro imprevisto. “Devido às obras [na cidade de Lisboa] e ao trânsito, os autocarros foram desviados para a zona do rio, na avenida 24 de Julho, onde era mais fácil encostar. E, daí, fazia-se deslocação apeada, conforme iam chegando. Segundo sei, correu lindamente, foram cerca de 600 metros” de marcha até à Assembleia, detalha o vice-presidente do sindicato, acrescentando que todo o percurso foi acompanhado pela PSP, “de modo a que não houvesse constrangimentos”.
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Sindicato não chegou a fazer o que queria
O início estava preciso para as 11h30, explicou ao Observador o sub-chefe principal da região de Coimbra. João Patriarca demorou cerca de 2h10 a chegar à capital, mas há quem tenha feito mais tempo de viagem. Na manifestação participaram Sapadores de todo o país: de Setúbal ao Porto, passando por Faro, Braga, Leiria, Vila Nova de Gaia e até Madeira. Os homens de João Patriarca chegaram por volta das 12h, mas nessa altura já os acontecimentos se afastavam do cenário que o SNBS tinha previsto para a tarde desta quarta-feira.
O barulho era muito, ao ponto de, no interior do Parlamento, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, ter desabafado que se tornava difícil continuar a audição na Comissão Parlamentar de Saúde. Na rua, os ânimos estavam cada vez mais exaltados. Quando os primeiros Sapadores se aproximaram da praça em frente à Assembleia da República, sem hesitar, deitaram abaixo as grades de segurança e subiram a escadaria. Pelo caminho, ouviam-se gritos de ordem, erguiam-se punhos, eram rebentados petardos, lançado fumo laranja e empilhados pneus que logo a seguir já estavam em chamas.
A subida dos degraus da escadaria fez-se rapidamente e, quando os primeiros bombeiros estavam quase a chegar ao último patamar, o dispositivo da PSP formou um cordão impedindo que o grupo avançasse mais e, eventualmente, invadisse os corredores do Parlamento. Os manifestantes vinham fardados e muitos tinham o capacete colocado, impedindo que fossem identificados.
O presidente do Sindicato Nacional dos Sapadores apressou-se a tentar controlar os cerca de mil bombeiros que se reuniam na praça da Constituição de 1976. Mas sem sucesso: os Sapadores não arredaram pé. Sentaram-se nos degraus, preenchendo a quase totalidade da escadaria, e voltaram costas ao Palácio de São Bento.
O que aconteceu “foi além do que o sindicato tinha planeado”, admitiu mais tarde o presidente do sindicato, Ricardo Cunha. “Os Bombeiros extrapolaram. Fizeram o que tinham a fazer, pronto, e o que está feito está feito. Mas nada disto estava planeado.”
A ideia do SNBS era fazer “um protesto à frente da Assembleia”, diz. “Aquilo que queríamos fazer, não chegámos a fazer, que era falar com os Bombeiros, explicar o que queremos e dizer que a luta não se faz num dia. Queríamos mostrar também ao Governo que o SNBS é o sindicato mais representado do país.” No entanto, não foi isso que aconteceu.
Já quase no final do protesto, um dos grupos de bombeiros que ainda se encontravam ao fundo da escadaria conversavam sobre o que tinha acontecido nas horas anteriores. “Estavam a mandar-nos descer. Ele [o presidente do sindicato] estava a fazer o papel dele e esteve bem. Mas a gente tinha de fazer o papel que fez”, assumiam. Numa conversa entre bombeiros de diferentes zonas do país, os três homens que ouviam o colega defender a forma que o protesto assumiu anuíram. E o apoio saiu reforçado quando um deles garantiu que “para a próxima não vai ser assim”, fazendo antever formas mais radicais de protesto. “Isto foi só o princípio.”
“Movimentos inorgânicos não esperam pelos sindicatos para agir”
Pelas 13h30, o ambiente estava mais calmo. Alguns bombeiros desceram da escadaria para comer e levar reforços ao que não arredaram pé. Ao fundo, quando as chamas dos pneus incendiados ameaçavam extinguir-se, um dos bombeiros nas proximidades encarregava-se de ir buscar um novo pneu para alimentar o incêndio.
Por entre novos gritos de ordem, ia surgindo a questão: quem incentivou a invasão da escadaria da Assembleia da República?
Confrontado com a dúvida, o presidente do SNBS prefere voltar aos motivos do protesto e recusa-se a “criticar” a subida do tom: “São 22 anos de desgaste. E acho que a posição do Governo acabou por instigar este acontecimento.” Ricardo Cunha refere-se à reunião de sindicatos representativos dos bombeiros com o secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias, e com o secretário de Estado da Proteção Civil, Paulo Simões Ribeiro. Sobretudo, critica o facto de os governantes não terem apresentado qualquer solução para os problemas apresentados: baixos salários e o baixo valor atribuído ao subsídio de risco, a carreira que não é atrativa, os horários que não são regulados e uma carreira que não é revista há duas décadas.
É o próprio Ricardo Cunha quem se refere aos chamados “grupos inorgânicos” que se terão intrometido no protesto: “O pessoal que está aqui de forma espontânea, não sei o que tem em mente, mas já alertei o Governo para a existência destes grupos.”
Esses “movimentos inorgânicos”, complementa o vice-presidente do sindicato, Leonel Mateus, “não esperam pelos próprios sindicatos para agir, já não têm aval dos sindicatos”. Exemplo disso são as vigílias do último mês que os bombeiros têm realizado no último mês.
“As vigílias têm autoria destes movimentos, onde estão Bombeiros Sapadores 24h por dia para que esteja sempre lá alguém. Os Bombeiros organizam-se entre si autonomamente. Juntam-se e criam este tipo de protestos porque sentem que os sindicatos não resolvem nada”, assume o sindicalista.
E garante: “Não conheço as tutelas dos grupos inorgânicos, não sei quem dá a cara. E desconheço, até, quem foi o primeiro a subir a escadaria, ainda para mais com todo o fardamento.” Contudo, o sindicato diz ter alertado o Governo para a possibilidade de estes grupos influenciarem a manifestação e afirma que não tem “hábito nem intenção, sequer, de controlar” esses protestos, diz o presidente Ricardo Cunha.
“Não houve violência extrema”
Por volta das 14h, restavam poucos Sapadores na escadaria do Parlamento, estando a maioria na rua a descansar. Mas rapidamente a situação se alterou: a rua voltou a ficar vazia, dezenas de bombeiros dirigiram-se rapidamente para as escadas que tinham invadido cerca de uma hora antes e a voltaram a colocar-se em posição.
Nessa mancha de bombeiros sobressaía um grupo, na base das escadas, que não envergava farda. Todos os homens desse grupo vestiam apenas uma camisola de manga curta preta onde se lia “Sapadores em Luta”. Nas mãos, à sua frente, seguravam uma baixa que os identificava como Sapadores de Braga.
De repente, a alegria: ouviram-se palmas, viram-se sorrisos e a vontade de exigir direitos voltou. A reação — incentivada pelo grupo de Braga — coincidiu com a chegada de André Ventura, líder do Chega, ao local. Vinha acompanhado de um grupo de deputados do partido e ainda se juntou aos manifestantes quando entoaram o hino nacional.
Ventura foi depois cumprimentar alguns dos Bombeiros que se manifestavam e foi recebido de braços abertos. Outros partidos estiveram presentes na manifestação, como a Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda e PAN, mas nenhum deles foi recebido como o Chega. Horas antes de se juntar aos manifestantes, Ventura publicava na rede social X que aquele foi um protesto “bonito de se ver”.
Bombeiros e polícias, dois dos setores mais maltratados pelo Estado, frente àquela que devia ser a casa da democracia. Bonito de se ver. AO VOSSO LADO pic.twitter.com/l4ZsJqj7bA
— André Ventura (@AndreCVentura) October 2, 2024
Neste grupo de Bombeiros de Braga, os primeiros a serem cumprimentados pelo presidente do Chega, estava Pedro Carvalho. A sua companhia deixou o quartel pelas 7h30 e pelas 15h30 estava prestes a deixar a capital porque alguns Bombeiros ainda iam trabalhar.
“O quartel não vai ficar vazio, garantimos que os colegas que estão lá vão continuar lá até chegarmos”, disse, acrescentando que fizeram a longa viagem por considerar que a forma como têm sido tratados pelos sucessivos governos “é uma falta de respeito” — e, diz, sente-se “pisado”.
“Há mais de 22 anos que a carreira não é revista. Quando entrámos, era apelativa. Hoje não dá para preencher as vagas mínimas, muitas vezes não dá. Chega uma altura em que temos de dar um grito mais forte”, diz. E remata: “Não vamos lá só com palavras bonitas. Hoje, no meu entender, não houve violência extrema. Se estivéssemos só a falar não teríamos o mesmo impacto, é necessário que haja um murro na mesa para dizer que estamos aqui.”
Sindicato vai fazer “balanço da manifestação”
Para o presidente do sindicato que organizou a manifestação desta quarta-feira, “só há uma maneira de acalmar as pessoas: dar resposta ao que querem”. “Parece que o Governo está a levar isto de forma muito leviana”, critica Ricardo Cunha.
“Não se pode pedir cordialidade a quem está há 22 anos em luta”, acrescenta o vice-presidente. Leonel Mateus avança que ainda esta quarta-feira a direção do sindicato “vai fazer um balanço” da manifestação. Por agora, ainda não há datas definidas para uma próxima manifestação, diz, mas isso não significa que estejam prontos a baixar os braços. Até porque “alguns partidos manifestaram disponibilidade para reunir e acelerar o processo” da revisão da carreira.
Em resposta às declarações da ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, durante a tarde — quando disse que os bombeiros são competência das autarquias e não do Governo —, Leonel Mateu é taxativo: “As autarquias aplicam o que o Governo diz e quem legisla é a Assembleia.”