A audição tinha acabado e Luís Filipe Vieira já começava a descomprimir quando lhe saiu uma pergunta, ainda audível através dos microfones, e em jeito de desabafo. “Isto é todos os dias assim? Se é todos os dias assim, um homem morre”. “Há umas mais intensas do que outras”, respondem-lhe. “Ah sim? Bolas, isto dá cabo da cabeça a um homem…”
Foram, de facto, cinco horas intensas, nas quais o presidente do Benfica – e um dos maiores devedores do Novo Banco – procurou distanciar-se dos outros grandes devedores, atacando-os, e criticou, nos termos mais fortes, a decisão política (de Mário Centeno) que concretizou os termos da venda do banco. Disse que as suas dívidas não pesam sobre os contribuintes, e que nunca obteve do BES ou do Novo Banco perdões de dívida, favores ou descontos.
Sobretudo quis deixar claro que é diferente, dizendo que – ao contrário de outros empresários que ficaram a dever ao Novo Banco (“Não me cabe identificá-los, mas é revoltante”) – ele “deu a cara”, deu uma garantia pessoal e também um património (pelo menos uma parte dele) que, acredita, vale mais que a dívida ao banco de 400 milhões de euros. Mas é preciso tempo.
Quanto ao facto de ser presidente do Benfica – condição que invocou para estranhar o facto de “outros grandes clubes” não serem chamados a responder no parlamento – Vieira disse que a função não lhe trouxe benefícios, só um “escrutínio até à exaustão” e “mentiras”. Pelo meio deixou muitas perguntas sem resposta (em várias pediu para responder depois por escrito) e até acabou a pedir “imensa desculpa a todos” os deputados.
Reestruturação da dívida. Foi tudo feito “sem perdão, sem desconto, sem favores”
Luís Filipe Vieira começou a audição a puxar dos galões como empresário cuja carreira nada deve ao facto de ter sido presidente do Benfica ou de o seu grupo ter sido construído com empréstimos do Banco Espírito Santo. Garantiu que a reestruturação de dívida ao Novo Banco em 2017 foi feita “sem perdão, sem desconto e sem favores” e defendeu que o património que entregou nessa operação será suficiente para reembolsar o banco e até outras dívidas que ficaram de fora como os 160 milhões de euros de VMOC (valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis) que vencem em Agosto.
Ao longo da audição, o empresário foi confrontado com as várias reestruturações feitas – desde o tempo do BES ao Novo Banco – e que levaram ao adiamento de reembolsos e redução de juros, e das quais foi saindo mais crédito para os seus negócios, com o argumento de que era preciso financiar os projetos para eles darem retorno. Algo que já se tinha ouvido na comissão na audição a Moniz da Maia.
E manifestou-se intrigado quando lhe disseram que é o segundo maior devedor do Novo Banco em perdas já imputadas ao Fundo de Resolução, 181 milhões de euros. “Como é possível ser o segundo, até me está a assustar. Foi o Luís Filipe Vieira que deitou o banco abaixo”, respondeu à deputada do CDS Cecília Meireles. “Até me está a assustar”.
Apesar de ter querido logo separar a sua atividade de empresário da de dirigente desportivo, Vieira afirmou que, por ser presidente do Benfica, tem “sido vitima de mentiras e especulação neste processo. No campo de certas elites há quem não perdoe duas coisas: ter vindo do povo e ter vencido na vida pessoal e na vida empresarial e no Benfica”. Mas nega que isso lhe tenha trazido benefícios, apenas um escrutínio “até à exaustão”.
A garantia pessoal e a casa para palheiro que é o único bem em seu nome, mas há outros
Ao contrário de outros grandes devedores, Luís Filipe Vieira entregou avales pessoais ao Novo Banco. Mas qual é o seu património? Segundo um documento do Novo Banco citado por Mariana Mortágua do Bloco de Esquerda, o único bem em nome do presidente do Benfica é uma casa para um palheiro com área coberta de 160 metros quadrados e um logradouro. Terá sido por isso que o banco nunca o executou.
Vieira diz que tem mais património, mas não revelou qual. “Qual é a necessidade? Não estou em incumprimento”. Mas acabou por admitir que tem outros negócios, sociedades com outras pessoas e que não foram dadas como garantia ao Novo Banco. “Não estão, nem deviam estar”. Reconheceu ainda que vive bem. Como? Além dos outros negócios, tem uma boa reforma e até recebeu recentemente mais de dois milhões de euros do Fisco.
O empresário negou ainda ter ficado com oito milhões de euros de um financiamento a uma empresa sua que, segundo o Novo Banco, foi parar ao acionista.
O tema acabaria por fechar a sessão, de uma forma algo tensa: Que posses tem Vieira? O que foi dado como garantia ou aval pessoal? E quanto é que esses avales pessoais valem, em comparação com os milhões que são devidos pelas suas empresas? Vieira não respondeu, nem após três insistências pelo deputado João Paulo Correia, do PS, e mais uma das muitas reprimendas dadas pelo presidente da comissão, Fernando Negrão, que dirigiu os trabalhos.
“Isso a mim não me assusta nada. No dia que eu estiver em incumprimento é que as pessoas me podem perguntar certas coisas. O que eu garanto é que não fujo”, afirmou Vieira, sublinhando que não irá “delapidar património” seu.
A defesa face aos outros devedores que têm iates e pediram insolvência. “Eu não fugi”
A este propósito, algumas horas antes, Vieira aproveitou para tentar fazer um contraste entre a sua postura e a de outros. “Sabe o que é que revolta nisto tudo?”, perguntou Luís Filipe Vieira ao deputado Duarte Alves: “Há gente que anda a passear. Têm iates, têm aviões, pediram insolvência… Aos milhões… E quem tentou fazer contas para aquilo que deve e deu a cara tem de vir para interrogatório”. Uma última referência a si próprio.
O mesmo contraste foi repetido mais tarde, quando reafirmou que a reestruturação realizada em 2017 foi um “bom negócio para o banco”. No entanto, reconheceu também que o Fundo ficou com o património imobiliário de Vieira pediu mais tempo, dois ou três anos (por causa da pandemia), para reembolsar a dívida depois de o gestor deste instrumento já ter admitido que ia falhar o primeiro reembolso de 60 milhões de euros previsto para 2022.
Ainda assim, sublinha: “Quem deve ser chamado à responsabilidade foi quem fez os contratos e os outros que foram à insolvência e andam a passear por aí. Eu dei a cara, não fugi. Nunca vou fugir, ao contrário dos devedores que o Parlamento nem consegue contactar”. Uma referência a João Gama Leão (Prebuild), que estava no Brasil e cuja convocatória deu mais trabalho ao parlamento.
Quem assinou contrato com Lone Star “devia ser enforcado”
Outros alvos foram os vendedores do Novo Banco — o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal.
Em várias ocasiões, Luís Filipe Vieira levantou os braços ao ar e abriu as mãos, para indicar que muito do que saía da boca dos deputados não eram coisas da responsabilidade do empresário. E foi a gesticular que lançou um dos “soundbytes” da tarde: “quem assinou aquele contrato de venda [à Lone Star] devia ser pendurado, devia ser enforcado”.
É esse contrato, na ótica do empresário, que gera os incentivos que estão na base nas perdas milionárias que são anualmente suportadas pelo Fundo de Resolução, que é um organismo público para o qual contribuem os bancos mas que, grosso modo, tem injetado dinheiro no Novo Banco graças a empréstimos dos contribuintes.
Quem assinou esse contrato foi o Banco de Portugal, com a bênção do Governo e do Ministério das Finanças (na altura liderado por Mário Centeno, que hoje é governador do Banco de Portugal), como aproveitaram para sublinhar os deputados do PSD e do CDS presentes.
A dívida que o sócio (rei dos Frangos) comprou com desconto a um fundo
Foi uma das revelações desta audição. Luís Filipe Vieira confirmou que o sócio que tem em outras empresas imobiliárias, José Manuel Santos (que é também um dos maiores acionistas do Benfica) acabou por ficar com a dívida de uma empresa sua, a Imosteps. O empresário dono da Valouro tinha tentado comprar esta dívida de 55 milhões de euros por 10 milhões de euros ao Novo Banco.
Vieira admitiu que tinha sido ele a falar com José Manuel dos Santos, que também é conhecido como o Rei dos Frangos, para o avisar de que era um bom negócio. Mas o Fundo de Resolução impediu a venda ao sócio do presidente do Benfica e o Novo Banco colocou o crédito na carteira de malparado Nata II, vendida ao fundo Davidson Kempner (que Vieira apelidou de “fundo abutre”) por quatro milhões de euros (menos de 10% do valor do crédito). Mais tarde, José Manuel dos Santos acabou por adquirir o referido crédito (mais a garantia associada) ao Fundo, pagando oito milhões de euros.
A Imosteps, cujos ativos eram terrenos no Rio de Janeiro, numa zona em que era proibida a construção, ficou de fora da reestruturação de 2017 que envolveu cerca de 270 milhões de euros de dívidas de um total de mais de 400 milhões de euros de empréstimos em risco do Novo Banco ao grupo Promovalor. E foi um dos temas que mais perguntas suscitou.
O favor a Ricardo Salgado e como Vieira foi usado para limpar balanço do GES
A divida da Imosteps “não era minha”, já existia dentro do banco – era uma dívida da Opway (construtora do Grupo Espírito Santo). O terreno ficava numa reserva na Barra, no Rio de Janeiro, e seria complicado construir lá. “E como nós estávamos no Rio de Janeiro, o dr. Ricardo [Salgado] pediu-me se podíamos olhar para aquilo”. Uma explicação parecida com as de João Gama Leão numa audição anterior, quando o empresário da Prebuild disse aos deputados que as dívidas da Aleluia Cerâmicas, por exemplo, tinham sido herdadas do tempo em que o BES lhe pediu para tomar conta do negócio.
“Empenhámo-nos naquela situação, estava numa zona que depois viria a ser considerada reserva ecológica, havia outros detentores de terrenos ali, e conseguimos chegar a acordo com o Prefeito, noutra área, conseguimos 102 mil m2 de construção, o que quer dizer que aquilo tem um valor”, explicou Vieira.
O empresário deu a entender que a sua titularidade da empresa seria transitória — Vieira diz que entrou para resolver um problema ao banco — mas entretanto o Banco Espírito Santo caiu e ficou com a dúvida que não considera sua. Depois, “surgiram os fundos abutres” e o ativo foi vendido no pacote do Nata II – “fomos confrontados com isso”. “Alguém (o dono da Valouro) comprou a ImoSteps, aquilo tem um valor, não sei porque é que o banco não quis reestruturar…”, diz.
Os terrenos mais valiosos de Lisboa e o “pior erro de gestão”
As ligações estreitas entre o Banco Espírito Santo como o grande financiador dos negócios imobiliários de Vieira tiveram um ponto alto na aquisição a que o empresário deu cara no início do século. A compra dos terrenos da Matinha à Galp Energia, na zona da Expo 98, foi financiada pelo BES, revelou Vieira. O empresário conta que até nem ficou em primeiro lugar, mas a Galp (à data liderada por António Mexia) tinha pressa em vender porque queria meter as mais-valias nas contas desse ano.
Esses terrenos, que Vieira descreve como os mais valiosos de Lisboa, eram controlados por um fundo, o Fimes, onde o grupo BES tinha 45% e o empresário 55%. Mas foram vendidos ao banco em 2012 por razões que não soube (ou não quis) explicar. Segundo Luís Filipe Vieira foi o banco que quis comprar os terrenos que, pelo seu valor, dariam para pagar toda a dívida. E como o dinheiro era deles (o financiamento), não podia dizer que não. Vendeu por um pequeno lucro no que descreve como o pior erro de gestão que fez. Era o “melhor património de Lisboa que era meu (meu com dinheiro do banco)”.
A Matinha foi vendida em 2019 pelo Novo Banco à VIC Properties por cerca de 140 milhões de euros, operação que gerou um pequeno lucro para o banco. O grupo imobiliário alemão comprou outro ativo do Novo Banco (que não era de Vieira), a herdade do Pinheirinho em Sesimbra, tendo contado com empréstimo do Novo Banco.
Se não houve perdão, de onde vêm as perdas que o banco já reconheceu?
Mas se no caso da Imosteps a perda do Novo Banco já entrou para as contas dos chamadas de capital ao Fundo de Resolução (perda superou 50 milhões de euros), o maior dano deverá vir das VMOC. Estas obrigações no valor de 160 milhões de euros foram emitidas por empresas de Vieira em 2012 e ficaram também de fora da reestruturação de 2017. O Novo Banco já provisionou este crédito a 100%. Ou seja, conclui o deputado do PS, João Paulo Correia, não acredita que irá recuperar.
Segundo Vieira, o pagamento destes 160 milhões de euros ainda pode acontecer, com o retorno obtido na exploração dos ativos imobiliários. Mas o deputado socialista cita uma nota do Banco de Portugal sobre o fundo que resultou da reestruturação da dívida que é muito crítico do plano de negócios associado. Era preciso que o tal fundo que vai falhar o primeiro reembolso em 2022 tivesse um retorno de mais de 200 milhões de euros. Se a dívida vencer, o Novo Banco pode converter os VMOC em capital e ficar o maior acionista da Promovalor e da Inland, empresas do presidente do Benfica que estão em falência técnica.
O empresário insiste que foi um bom negócio para o Novo Banco e que ser acionista em vez de credor “é a única forma de o banco recuperar a dívida”. E defendeu a qualidade dos ativos que ficaram no fundo — o melhor hotel do Brasil (na reserva do Paiva), o melhor edifício de Moçambique (torre de escritórios em Maputo), para além de vários terrenos por urbanizar em zonas de grande procura à volta de Lisboa e Algarve.
E destaca que esta emissão vence em agosto. A reestruturação da dívida de Luís Filipe Vieira suscitou uma auditoria independente pedida pelo Fundo de Resolução, mas que ainda não foi entregue, deverá sê-los nos próximos dias. Os VMOC e a dívida da Imosteps justificam grande parte das perdas já registadas pelo Novo Banco com as dívidas do empresário (225 milhões de euros até 2018) e a dimensão de prejuízos que já foi levada ao Fundo de Resolução (181 milhões de euros).