Primeiro foram os apoios públicos à realização da Jornada Mundial da Juventude. Agora, a atribuição do nome do ainda cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, a uma ponte pedonal construída sobre o rio Trancão, no parque onde aconteceram as celebrações finais da JMJ. Em vários momentos deste verão, marcado pela realização do maior evento católico do mundo em Lisboa, com a presença estimada de 1,5 milhões de jovens de todo o globo na capital portuguesa, têm sido muitas as críticas à proximidade entre o Estado português e a Igreja Católica. E há um argumento que sobressai, esgrimido até à exaustão pelos críticos: a ideia de que o Estado é laico e, por isso, deve afastar-se de qualquer interação com a Igreja Católica.
No caso da ponte pedonal — uma homenagem que o próprio Manuel Clemente acabaria por recusar —, chegou mesmo a circular uma petição online, que reuniu mais de 15 mil assinaturas, na qual era possível ler que a “suposta laicidade do Estado deveria ser suficiente para acautelar que a atribuição de toponímia não fosse feita com a escolha de nomes do clero”. Antes disso, o próprio apoio público de vários milhões de euros à JMJ, que envolveu o empenho do Governo e de várias câmaras municipais, chocou vários críticos. O artista “Bordalo II” terá sido um dos mais audíveis: colocou no altar-palco do parque Tejo um tapete feito de notas de 500 euros e argumentou: “Num Estado laico, num momento em que muitas pessoas lutam para manter as suas casas, o seu trabalho e a sua dignidade, decide investir-se milhões do dinheiro público para patrocinar a tour da multinacional italiana.”
O que significa, afinal, o Estado laico? E o que diz a lei portuguesa sobre a laicidade do Estado? Deve o Estado português afastar-se das comunidades religiosas que existem no país? Ou cooperar com elas — incluindo financeiramente? E o que dizer das ruas, praças e avenidas com nomes de padres, bispos, cardeais e papas?
Ouvido pelo Observador, o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos considera que é “um tiro ao lado” usar o argumento da laicidade do Estado para criticar os excessos verificados durante a JMJ, explica que a Constituição está desenhada para garantir a isenção e a imparcialidade do Estado em relação a todas as religiões e destaca que o argumento da laicidade também não faz sentido em relação à ponte pedonal: então seria preciso, diz, mudar nomes de ruas, avenidas, edifícios e até feriados em todo o país.
O que diz a lei sobre a laicidade do Estado?
Na verdade, apesar de criada a convicção geral de que existe na Constituição da República Portuguesa a garantia explícita da “laicidade” do Estado, a verdade é que não é possível encontrar na lei fundamental qualquer referência à palavra “laico” ou “laicidade”. Aquilo que a Constituição defende é, na verdade, a liberdade religiosa. Concretamente, no artigo 41.º da Constituição, é salvaguardada a “liberdade de consciência, de religião e de culto”, que é classificada como “inviolável”. Trata-se de um artigo destinado a proteger os fiéis do Estado — e não o contrário.
A lei portuguesa e a religião
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“As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”
CRP, artigo 41.º, 4
“O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.”
CRP, artigo 43.º, 2
“O Estado não discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às outras.”
LLR, artigo 2.º, 2
“O Estado não adota qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas.”
LLR, artigo 4.º, 1
“O Estado cooperará com as igrejas e comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância.”
LLR, artigo 5.º
Constituição da República Portuguesa (CRP) e Lei da Liberdade Religiosa (LLR)
“Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa”, lê-se. “Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.”
Depois, a Constituição protege também as igrejas e comunidades religiosas de eventuais interferências do Estado, sublinhando que “estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”. Ao mesmo tempo, “é garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades”, e também o direito à objeção de consciência por motivos religiosos.
Mais à frente, no artigo 43.º, a Constituição determina também que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.
Ou seja, aquilo que a Constituição Portuguesa garante não é o afastamento total do Estado das comunidades religiosas, ou a ausência de relação entre o Estado e as comunidades religiosas, mas uma proteção especial a essas comunidades, para que seja respeitado o direito fundamental dos indivíduos à sua liberdade religiosa e de culto — ao mesmo tempo que garante que o Estado português é neutro em termos religiosos, não deixando que aspetos como a educação ou a programação cultural sejam influenciados por uma ou outra inclinação religiosa.
Os pormenores da relação entre o Estado e as comunidades religiosas estão delineados na Lei da Liberdade Religiosa — uma lei aprovada em 2001 e que tem sido amplamente elogiada a nível global, colocando Portugal como um dos países do mundo em que o diálogo e a convivência entre as diferentes religiões é mais saudável. Trata-se, aliás, de uma lei aprovada no âmbito de um esforço de aumentar a igualdade entre as várias religiões em Portugal. Até então, a Igreja Católica — cujas relações com o Estado português têm sido, historicamente, reguladas pela Concordata com a Santa Sé — beneficiava de um estatuto diferenciado. Uma grande parte da Lei da Liberdade Religiosa serve justamente para aplicar à generalidade das confissões religiosas, desde que tenham uma presença estável no país, um conjunto de benefícios atribuídos à Igreja Católica, incluindo vários benefícios fiscais e, de modo especialmente importante para os fiéis, o reconhecimento dos efeitos civis das celebrações de casamento em diferentes religiões.
A lei, que é bastante extensa e detalhada, enuncia alguns princípios importantes do modo como o Estado português se relaciona com as confissões religiosas, incluindo o princípio da igualdade (nenhuma religião pode ser discriminada em relação a outra), o princípio da separação (o Estado não se intromete na organização interna das comunidades nem no culto), a não confessionalidade do Estado (o Estado não adota uma religião oficial nem se pronuncia sobre matérias religiosas), e também o princípio da cooperação. Aqui, a lei é clara: “O Estado cooperará com as igrejas e comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância.”
“Aquilo que a Constituição implica em termos de autonomia do Estado e das suas instituições, dos governos e dos partidos políticos que, no quadro democrático, disputam a orientação do Governo, é um dever de isenção, de imparcialidade do Estado”, explica ao Observador o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, sublinhando que a lei fundamental prevê “a necessidade de garantir isenção e imparcialidade na forma como as confissões religiosas exercem a sua atividade no nosso país”.
Para o constitucionalista, é imperativo olhar para o assunto por um prisma histórico e lembrar que, até 1910, Portugal foi uma monarquia confessional. “Só com a República, a partir de 1910, é que deixou de ser um estado confessional”, recorda, sublinhando que não há “um conflito de natureza antagónica” entre um estado confessional e a democracia. A título de exemplo, Pedro Bacelar de Vasconcelos menciona o Reino Unido, que até aos dias de hoje mantém uma confissão religiosa oficial — a denominação anglicana do Cristianismo, encimada pela Igreja de Inglaterra. “As relações com as confissões religiosas existem e existirão. Depende da expressão que tenham em cada Estado”, diz. “É diferente falarmos das relações entre o Estado e a Igreja Católica em Portugal, no Afeganistão ou no Reino Unido. Evidentemente, pesa, porque os católicos fazem parte da sociedade.”
Criticar apoio à JMJ à luz do princípio da laicidade é “tiro ao lado”, diz constitucionalista
Concretamente sobre o apoio público a um evento organizado por uma comunidade religiosa, o constitucionalista admite, em abstrato, que isso “poderia ferir” os princípios constitucionais caso se tratasse de “um apoio destinado especificamente à promoção de uma determinada confissão”. No entanto, o apoio público atribuído à JMJ “não se confina no plano doutrinal”, considera o constitucionalista, sublinhando que o evento assumiu características que o tornaram não só aberto a outras confissões religiosas como também o transformaram numa “enorme mobilização” de pessoas no qual o Estado pode, legitimamente, encontrar interesse público.
“O festival — designo assim para encontrar uma expressão laica para o evento — é sobretudo um evento mediático de grande escala. A verdade é que, como tal, independentemente da confissão religiosa que o promova, tem uma projeção que leva a que ele seja tratado mais de acordo com a projeção que tem do que com os dogmas e predicados de qualquer expressão religiosa”, sustenta Pedro Bacelar de Vasconcelos.
No entender do constitucionalista ouvido pelo Observador, o grande problema nos apoios públicos à JMJ terá sido o “aproveitamento” da parte dos decisores políticos. “O que mais me chocou foi a permanente alusão ao que estava a ser investido e ao retorno que se esperava”, sublinha Bacelar de Vasconcelos, lamentando o “aproveitamento de um acontecimento, neste caso com uma vertente religiosa explícita”.
“Penso que houve exagero, sobretudo da parte dos titulares dos órgãos de poder democrático, no compromisso e no empenhamento, que foi para além daquilo que seria a natural satisfação dos nossos órgãos por um evento desta dimensão ter lugar em Portugal”, aponta. “Pode haver titulares de órgãos de soberania que vão demasiado longe, assumindo um fervor religioso que porventura não deveriam assumir. Fale-se da Presidência da República ou da presidência de um município. Mas este não é um problema de natureza constitucional.”
Para Bacelar de Vasconcelos, tirando este exagero da parte dos decisores políticos, não houve “problemas específicos no que diz respeito ao dever de isenção” durante a JMJ. “Colocar a questão nesses termos é errado”, diz o constitucionalista, referindo-se a quem alega que os apoios públicos à JMJ feriram a laicidade do Estado. “É um tiro ao lado atacar os excessos a que assistimos, o oportunismo que nos pode surpreender e indignar, à luz do princípio da laicidade.”
O Estado relaciona-se com as comunidades religiosas “de forma proporcional à expressão religiosa que têm e às iniciativas que tomam”, defende Pedro Bacelar de Vasconcelos. “Há confissões que preferem ser discretas ou passar despercebidas. Mas o relacionamento deve ser transparente. Não deve haver favorecimento de uns em detrimento de outros. Se agora o xeque David Munir [imã da Mesquita Central de Lisboa] tomasse a iniciativa de um encontro, evidentemente que mereceria, da parte das instituições públicas, um empenhamento e uma deferência análogos. Isto não se mede ao metro, depende do que estiver em causa e da dimensão. Mas se fosse por razões de crença religiosa que uma iniciativa na área do Islão ou do Judaísmo fosse discriminada, aí sim teríamos um problema.”
“Tínhamos de ir alterar a toponímia toda”
A última edição dos Censos, realizada em 2021, dá conta do atual panorama religioso em Portugal: 80,2% dos portugueses com mais de 15 anos assumem-se publicamente como católicos, seguindo-se em segundo lugar os protestantes/evangélicos (2,1%). Outras religiões, como o Islão (0,4%) ou o Hinduísmo (0,2%) são ainda mais minoritárias. Isto ajudará, naturalmente, a compreender que a cooperação entre o Estado e as diferentes comunidades religiosas, que acontece “tendo em consideração a sua representatividade”, aconteça maioritariamente com a Igreja Católica.
Ainda assim, são vários os exemplos de cooperação do Estado português — até financeira — com comunidades religiosas minoritárias em Portugal.
O exemplo mais conhecido será, provavelmente, o da comunidade Ismaili, uma denominação islâmica que é minoritária até dentro do próprio Islão: trata-se de uma das três escolas teológicas do Islão xiita, liderados por um imã — o Aga Khan — que se acredita pertencer a uma linha de descendência direta do profeta Maomé. Estima-se que existam apenas 12 a 15 milhões de Ismailis em todo o mundo, o que não impede que a comunidade Ismaili seja uma das mais influentes correntes religiosas do planeta. Em 2015, o atual imã dos Ismailis, o Aga Khan IV, assinou um protocolo com o Estado português para instalar em Lisboa a sede mundial do Imamato Ismaili — no antigo Palácio Henrique de Mendonça, na capital portuguesa. O convite partiu do próprio Governo português.
O Imamato, que é a cúpula global desta confissão religiosa, é uma entidade jurídica supranacional, que atua em relações nacionais e internacionais — muito à semelhança do que acontece, por exemplo, com a Santa Sé. No entanto, enquanto a Santa Sé governa um território próprio, o Estado da Cidade do Vaticano, o Imamato Ismaili não governa qualquer território — mas tem uma sede global em Portugal devido a um acordo com o Estado português, que tem desenvolvido uma relação muito próxima com o príncipe Aga Khan, que em 2018 celebrou em Lisboa o seu jubileu de diamante, uma comemoração que atraiu à capital portuguesa dezenas de milhares de pessoas de todo o mundo.
Outro exemplo conhecido é o da construção da nova mesquita de Lisboa, incluída num projeto de requalificação que a câmara de Lisboa tem pensado para a zona da Mouraria — e que inclui também a criação de uma praça coberta e de um jardim. O projeto já foi orçamentado em cerca de três milhões de euros, embora ainda não tenha avançado, e pretende servir a comunidade muçulmana daquela zona da cidade.
Iniciativas como a lei dos sefarditas (destinada a atribuir a cidadania portuguesa aos descendentes dos judeus expulsos de Portugal no final do século XV) ou a audição das várias comunidades religiosas durante a pandemia da Covid-19 a propósito das restrições ao culto também mostram que o Estado português tem mantido uma relação de proximidade com a generalidade das comunidades religiosas presentes em Portugal — e, particularmente, com a Igreja Católica, a confissão religiosa maioritária do país. Uma proximidade que tem raízes no pensamento de Mário Soares, que, na década de 1970, depois da Revolução, acreditava que para o sucesso do novo regime era imprescindível não cometer novamente os erros da Primeira República, marcada pelo anticlericalismo e pelo corte total com a Igreja Católica (que Soares, que não era crente, considerava ter sido uma das razões que condenaram aquela experiência republicana).
Por exemplo, o KAICIID (Centro Rei Abdullah Bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e intercultural), uma instituição global para o diálogo inter-religioso e para a cooperação entre estados fundada na sequência de um encontro entre o Papa Bento XVI e o rei saudita que dá nome ao centro, tem a sua sede internacional em Lisboa desde o ano passado.
No que diz respeito à toponímia, também não seria novidade a atribuição de nomes de importantes clérigos portugueses a estradas e praças. Aliás, basta uma rápida consulta ao Google Maps para encontrar, só em Lisboa, pelo menos uma Praça Dom António Ribeiro e uma Avenida Dom José Policarpo (ambos antigos patriarcas de Lisboa), além da mais que célebre Avenida João XXI (o único Papa português, no século XIII). Por todo o país, avenidas com nomes de papas (até já há algumas avenidas Papa Francisco), cardeais, bispos e padres de importância local são frequentes, para não falar dos milhares de santos e santas católicas que dão nome a povoações, avenidas ou hospitais — prática que nunca terá, aparentemente, ferido o princípio da neutralidade que o Estado mantém em relação a todas as religiões.
“Tínhamos de ir alterar a toponímia toda, os feriados de São João e Santo António”, comenta Pedro Bacelar de Vasconcelos, perante o uso do argumento da laicidade do Estado para impedir a atribuição do nome de um clérigo à ponte pedonal sobre o rio Trancão. “Acho infeliz e caricata a utilização do argumento.”
Ainda assim, o constitucionalista considera que a iniciativa de propor o nome de Manuel Clemente para batizar a nova ponte é “lamentável”, até “pela consideração que D. Manuel merece”. “Se o D. Manuel Clemente já tivesse morrido e houvesse o reconhecimento da Câmara Municipal de Lisboa de que tinha o dever de o assinalar… Agora, neste quadro e neste momento acho uma ideia extremamente infeliz. Não deviam sujeitar o D. Manuel, na qualidade de figura religiosa no ativo, ao desencadear desta polémica.”