Cresceu na “presença da cocaína”, na Galiza. Passou a infância num ambiente onde o narcotráfico “era normal”. Sabia que “era normal ali mas não fora dali”. Tornou-se jornalista e durante anos manteve a ideia na cabeça: contar o fenómeno do narcotráfico na Galiza. E fê-lo em 2015. Agora, “ali” (na Galiza) e “fora dali” (em toda a Espanha) o livro não circula mais. Três anos depois de ter sido publicado, “Farinha” foi proibido em Espanha, na sequência de uma providência cautelar do antigo alcaide da localidade galega de O´Grove — acusado e condenado na Operação Nécora e depois absolvido. Nacho Carretero não sabia que se podia proibir um livro e sente que o mandaram calar. Admite estar a ser inocente mas recusa acreditar que exista uma “questão de poder ou de interesses políticos por trás da decisão da juíza”.
“A proibição do livro foi um marketing involuntário“, reconhece Nacho Carretero. A série de televisão que entretanto tinha sido realizada com base no livro — e que vai passar a fazer parte do catálogo da Netflix — estava à espera de uma data de estreia. A produtora viu na proibição do livro uma oportunidade. Era o momento certo: no dia 28 de fevereiro deste ano, a Antena 3 transmitiu o primeiro episódio de “Farinha”, uma série baseada num livro proibido. Políticos da oposição discutem “Farinha” no parlamento espanhol. Já nada estava sob o controlo de Nacho Carretero ou da editora. O sucesso ou a proibição do livro fê-lo chegar a Portugal. Nacho Carretero esteve em Lisboa para a apresentação do livro editado pela Desassossego e conversou com o Observador. É que “Farinha” conta como o narcotráfico nasceu na Galiza mas aborda também a estreita relação dessa atividade com o norte de Portugal.
Quando o seu livro foi proibido, em Espanha, sentiu que o estavam a mandar calar? Ainda por cima, sendo um jornalista.
De algum jeito, sim. Quando alguém proíbe um trabalho, está a mandar-nos calar. Não podemos vender o livro, não podemos imprimir, não podemos distribuir, por isso, estamos calados. Sobretudo, senti surpresa porque era algo que não esperávamos. Não me recordo, em toda a minha vida em Espanha, de um livro ter sido proibido. Pensava que não se podia fazer isso. Quando este homem pediu a paralisação da publicação, não levei muito a sério e não fiquei muito preocupado. Pensava que não seria possível. Nem sequer pensava nisso. Quando nos informam que sim, que a juíza lhe deu razão, foi muito surpreendente. E, por momentos, também foi irreal pensar que o livro estava proibido porque não são referidas pessoas importantes, no livro. Quando são, é apenas uma referência acessória. É uma pincelada em toda a obra. Por isso, pareceu-me um pouco exagerado e um tanto surpreendente.
O que é que acha que está na base da decisão de proibir o livro? Será por ter revelado ligações políticas à rede de narcotráfico galego ou por ter mostrado a passividade das autoridades?
Sou um pouco inocente. Mas não acredito que exista uma questão de poder ou de interesses políticos por trás da decisão da juíza. Penso que é uma questão que ocorre mil vezes mas, em 999 delas, o juiz não lhe dá razão. Mas aconteceu. Aconteceu que deu razão. Os motivos? Não sei. A única coisa que posso fazer é respeitar esta decisão. Não tenho outra solução senão esperar, resignado. Mas ainda assim, penso que não é justo. Não penso nas razões. Não as sei. Mas quero pensar que não há um interesse de trás maior porque, então aí seria preocupante.
Com a proibição em Espanha, acha que o livro pode vir a tornar-se um material de contrabando?
De facto, está a ser. As pessoas em Espanha estão a comprar livro em português, sobretudo na Galiza, onde conseguem ler em português porque a língua é muito parecida. Pessoas do sul da Galiza estão a passar a fronteira para comprar o livro. Há muita gente a pedir e a comprar o livro também através da internet. É tremendo que isto se esteja a passar! É como se se fechasse um ciclo. É como se fosse uma metáfora. Esta história começa com gente a cruzar a raia seca [nome dado à fronteira de Ourense entre a Galiza e Portugal onde passavam materiais] para trazer material e acaba com o próprio livro que conta isso a converter-se num material que, para o ter, as pessoas têm de cruzar a fronteira.
O facto de o livro ter sido proibido tornou-o mais apetecido? Fez com que as pessoas ficassem mais interessadas?
Sim. Claramente, a proibição do livro foi um marketing involuntário tremendo. Isto porque a proibição do livro converteu-se também, em Espanha, num escândalo. O “Farinha” começou a aparecer nas televisões. Nesse dia, o meu telemóvel só tocava. Toda a gente estava interessada. Nas redes sociais, por exemplo. A proibição acabou por fazer com que o livro chegasse a toda a gente. Agora, é conhecido em todo o lado. Infelizmente, é conhecido como um livro proibido. Mas, pelo menos, é conhecido.
“Farinha” acabou por servir de inspiração para uma série televisiva que bateu recordes de audiência. Este interesse no livro pode justificar o êxito da série?
A série já está feita quando o livro foi proibido. A produtora estava ainda a pensar quando é que a série ia ser transmitida e qual o dia para a sua estreia, na Antena 3. Quando se dá o sequestro do livro, a cadeia de televisão decidiu que era o momento. Seria uma série baseada num livro proibido. Toda a gente fazia marketing em volta disto. A partir do momento em que a decisão de proibir o livro é conhecida, tudo saiu um pouco do meu controlo e do controlo editorial. O livro converteu-se numa ferramenta política. A oposição começou a falar dele contra o governo. Havia debates no parlamento espanhol por causa do livro. A produtora, a televisão, todos aproveitaram esta situação. Mas por detrás de tudo isto nós estamos frustrados. No final, depois de todo este escândalo em volta do livro, diziam-me: “Afinal é bom! É uma campanha de marketing. Parabéns pelo que se passa!” Eu só pensava: Não, não! Para nós é muito divertido isto, mas o livro está proibido”. Está proibido há cinco meses. Para a editora, é um problema muito grande. Para mim, também é muito frustrante. Tem esta parte de popularidade, sim. Mas tem a parte real: já estamos há cinco meses sem o livro e não sabemos quando é que vai ser libertado.
O livro começa por recordar os naufrágios na Galiza e mostra como o povo ganhou o hábito de se apropriar das mercadorias desses barcos que naufragavam devido às rochas. É certo que, mais tarde, começaram a ser assaltados pela população mesmo antes de irem ao fundo. Mas se não tivesse havido naufrágios esta rede de contrabando não tinha nascido ali?
Os naufrágios têm um sentido em como todo o contrabando nasce. Há uma conexão com o mar, muito importante. A Galiza sempre viveu do mar e do mar chegavam todas as mercadorias, todos os materiais que os habitantes de aldeias vizinhas e o povo da costa precisavam. E começa aí uma cultura do contrabando, de agarrar coisas para trocar por outras que não sejam legais. A fronteira com Portugal é muito importante nesta história porque, depois da Guerra Civil, nos anos 30, a Galiza passou a ser um sítio bastante pobre, com bastantes necessidades. Portugal tinha as colónias africanas. Contavam os moradores da raia que eles [os portugueses] tinham lâmpadas de azeite, que, do outro lado da raia, tinham eletricidade. Era uma diferença. Os contrabandistas traziam alimentos e medicamentos de Portugal para viver melhor. Portanto, aí surgiu uma atividade que era respeitada. A gente que fazia isso era boa gente. A gente que fazia isso era gente que ajudava os demais. Então, o contrabando foi penetrando na sociedade galega como algo normal, algo bom.
Essa ideia de normalidade persistiu quando o material do contrabando deixou de ser alimentos e medicamentos e passou a ser tabaco? E, mais tarde, droga?
Quando se deu o salto para o contrabando do tabaco, essa ideia persistiu. Quando se chegou ao narcotráfico, também. Gerava riqueza. Mas tudo mudou quando as drogas começaram a ter efeito na sociedade galega, na geração perdida na Galiza — que também surge em Portugal, nos anos 80 –, quando a droga fez muitíssimo dano. Aí, foi quando a sociedade galega, sobretudo as mães e os pais confrontaram os filhos. Foi o que fez o narcotráfico na Galiza chegar aos jornais e finalmente ao poder, que, até esse momento, estava calado.
E Portugal? Era só um lugar de fuga e para onde os narcotraficantes vinham reunir-se?
A atividade do norte de Portugal e da Galiza estava conectada intimamente. Há uma história muito paralela entre Portugal, sobretudo no norte, e Galiza, na cultura, na língua, na história. Havia uma conexão em todos os níveis. De facto, o contrabando de tabaco na Galiza começou porque os contrabandistas galegos trabalhavam para os portugueses, para os contrabandistas portugueses. É verdade que os galegos depois dão um salto e convertem-se nos contrabandistas mais importantes da Europa. Mas com o narcotráfico passava-se o mesmo.
Nos anos 90, com a “operação Nécora” — a primeira grande operação contra o narcotráfico –, o juiz Baltazar Garzón, responsável pela investigação, veio ao norte de Portugal. Ao Porto, por exemplo. A investigação estendeu-se a Portugal. De facto, quando os contrabandistas e narcotraficantes tinham de fugir da justiça, cruzavam a raia rapidamente e os irmãos portugueses acolhiam-nos e escondiam-nos. A ligação com a Galiza é constante na história de contrabando e narcotráfico.
O Nacho Carretero é natural da Galiza. A ideia de escrever o livro está de alguma forma relacionada com as suas raízes?
Passei a minha infância e a minha adolescência num ambiente na Galiza onde isto era normal. Era normal a presença de cocaína, eram normais as descargas nos portos, nas praias. Era algo com o qual cresci, dia-a-dia. Mas tinha na cabeça que aquilo era normal ali mas não era normal fora dali. E que tinha de ser contado. Não sabia como. Mas sabia: algum dia isto tem de ser contado. É verdade que o jornalismo galego sempre contou e esteve muito atento a isto, mas faltava uma exportação cultural deste fenómeno, num livro, num documentário. Fiquei sempre com esta ideia na cabeça. Quando a editora me contactou e disse que gostava que eu escrevesse um livro com eles, perguntaram: “Tens alguma ideia? Alguma proposta?” Eu disse: “Sempre tive isto na cabeça”. E expliquei. Eles não são galegos e, quando lhes contei, disseram: “Não. Nós somos uma editorial jornalística”. E eu respondi: “Mas isto é tudo verdade”. Pensavam que era ficção! Tentei contar a história de uma forma mais literária. Também não conta nenhuma história exclusiva. O que fiz foi juntar todas as peças e dar-lhe um pouco uma linguagem mais fácil, mais atrativa e jogar com isso. É algo que sempre se fez em Itália, com a máfia, na América Latina ou nos Estados Unidos: recuperar este fenómenos é exportá-los culturalmente. E em Espanha, até há bem pouco tempo, não o fazíamos.
Como foi todo processo de escrever “Farinha”? Quanto tempo é que demorou a recolher informação e a escrever o livro?
Bem, foi duro. É uma investigação que não precisei de fazer. Já a conhecia. Já sabia por onde tinha de caminhar. Mas a verdade é que a investigação foi longa e exaustiva. E, depois, deparei-me com muitos problemas porque as pessoas não queriam falar. O que também me surpreendeu porque tinha a ideia de que as pessoas já não tinham problemas em falar. Vi que o passado estava muito presente. Não queriam falar. Os que falavam pediam-me anonimato — que também é um problema jornalístico. Isto fez com que tudo fosse mais lento. Foi difícil nesse sentido, mas a escrever foi mais rápido porque tinha bem claro como queria contar e o que queria contar. Até porque tinha prazos de entrega. O processo total durou entre um ano e meio a dois anos. Na altura, era freelancer, estava a trabalhar por conta própria. Não podia abdicar de todo o meu tempo. Tinha que fazer outras coisas por isso foi uma época muito dura de trabalho. Por exemplo, aproveitava as noites para escrever. Assim que saiu o livro, teve muito sucesso. Antes mesmo de ser proibido, já era um sucesso. Era conhecido. Quando saiu, tinha pessoas a ligar-me: “Olha, quero contar-te uma coisa”. “Agora não. Devias ter-me contado antes”, respondia-lhes.
Qual é o tema de um próximo livro que possa escrever e, quem sabe, ser proibido em Espanha?
Esperemos que não. Em Setembro, sai outro livro mas não tem nada relacionado com este tema. O que queria fazer sobre narcotráfico na Galiza, já o fiz. E era isto. Não sou um especialista em narcotráfico. Não queria fazer nada mais do que isto. O que escrevi foi a história de um rapaz espanhol que está condenado à morte na Flórida, nos Estados Unidos. Está há 24 anos no corredor da morte. Conheci-o há uns anos e fui fazer umas entrevistas ao corredor. Conheço a família. Segui toda a história. E agora vão repetir o julgamento. Provavelmente será libertado, depois de 24 anos no corredor da morte. Pareceu-me uma história muito interessante. O que fiz foi escrevê-la. Será publicada. Uma vez que não é sobre narcotráfico, penso que correrá bem.