Durante vários anos, Farid foi apenas Farid. Foi com esse nome que os pais o deixaram com uma família adotiva, recém-nascido, para fugirem às perseguições dos talibãs do Afeganistão por pertencerem à etnia hazara. Durante vários anos, Farid não tinha apelido. Teve de o conquistar.
Aos sete anos, com uma vida inteira passada dentro da guerra entre o próprio país e os Esatdos Unidos, o tio adotivo deu-lhe uma mochila com alguma comida e duas garrafas de água e obrigou-o a integrar um grupo de 25 a 30 pessoas que ia fugir do país. Ao longo de dois anos, completamente sozinho, Farid cruzou os desertos do Paquistão e do Irão, atravessou tempestades de neve e de areia, passou calor, frio e fome e chegou a ser preso depois de lhe terem colocado cocaína na mochila que levava às costas.
Até que chegou à Turquia. Ainda tentou cruzar o Mediterrâneo, com o objetivo de assentar na Grécia, mas naufragou em seis ocasiões — salvou-se sempre, entre as vezes em que nadou de volta à terra e as que foi resgatado pela Polícia Marítima, mas perdeu muitos amigos. Em Istambul, acabou por entrar num centro de acolhimento de refugiados. E a primeira coisa que ganhou foi um apelido: em conjunto com um tradutor, escolheu Walizadeh, que significa “amigo de Deus”.
Depois de vários anos na cidade turca, acabou por ser integrado no programa de realojamento da Turquia, que pretendia retirar as crianças menores de idade dos centros de refugiados e levá-las para outros países. Surgiram duas hipóteses: Estados Unidos e Portugal. Dos Estados Unidos, Farid só conhecia os tanques que invadiram o Afeganistão. De Portugal, Farid só conhecia Cristiano Ronaldo. Escolheu Lisboa e chegou nos últimos dias de 2012, com 15 anos.
Começou por viver no Centro de Acolhimento de Refugiados, onde aprendeu a ler, escrever e falar português ao consumir grande parte da biblioteca, juntando a língua ao persa, ao turco e ao inglês que já falava. Estudou na Escola Artística António Arroio, por ser apaixonado pelas artes, e entrou na Universidade Lusíada para seguir Arquitetura — por querer construir depois de ter visto tanta destruição. E até conseguiu reencontrar a família, a mãe e os irmãos, que trouxe para Portugal com a ajuda da Cruz Vermelha.
Pelo meio, perseguiu uma outra paixão. Depois de ter experimentado taekwondo e kung fu na Turquia, começou a praticar boxe sob a orientação de Paulo Seco, treinador que tem uma academia na Quinta do Loureiro, bairro de Campo de Ourique. Tornou-se campeão nacional em -57kg, tirou o curso de treinador e já competiu em diversas provas internacionais. Integrou o projeto de refugiados do Comité Olímpico de Portugal e foi aos Jogos Europeus do ano passado com a Equipa de Refugiados.
O sonho de Farid é chegar aos Jogos Olímpicos. Falhou o apuramento para Paris, muito devido a uma lesão no ombro que vai obrigar a cirurgia, mas quer ir a Los Angeles em 2028. Aos 27 anos, mais de uma década depois de ter chegado a Portugal, Farid Walizadeh tem apelido, tem objetivos e tem memória. E, acima de tudo, tem futuro.
Toda a travessia para sair do Afeganistão foi um bocadinho menos difícil porque era uma criança? Por ter menos noção dos perigos, provavelmente.
Eu agora tenho medo daquela viagem. Agora é diferente. Naquele tempo foi diferente. Havia medo, havia fome, havia dificuldades, mas não ter tanta noção dá-te coragem. Mas cresces rápido, num caminho destes. Ganhas maturidade e começas a criar medos, assustas-te.
E acha que durante todo aquele tempo teve noção de que tinha mesmo de ter medo?
Tinha alguma noção, porque se não tivesse medo também não ia conseguir ter cuidado. Tive sempre medo… Tive cuidado para evitar um animal ou a polícia ou para passar as fronteiras. Se não tivesse noção, saltava os muros todos. Como tinha noção, não saltava. Escavava ou escondia-me até as pessoas passarem. O meu maior medo eram os humanos. A maldade maior vinha dos humanos. Dos governos, porque não permitem que os refugiados fiquem ou passem nas fronteiras. E há muito negócio à volta das migrações. Negócios de droga, de tráfico humano, de tráfico de órgãos, de tráfico de crianças para prostituição, para casos de escravidão, muitas coisas… Há muita má-fé. Sempre tentei esconder-me, fugir, não ser encontrado por pessoas. E sem noção não consegues fazer isso.
E nunca ficou com rancor de tudo o que aconteceu?
Já deixei de ter. Já deixei de fazer essas questões do ‘por que é que isto me aconteceu a mim?’. Uma vez, numa competição, o meu treinador disse-me: ‘Não procures a razão do problema, procura a solução. Se não tens solução, deixa estar o problema.’ Não encontro razão. A razão é o meu país, a razão é o meu governo, é a economia do país, a guerra. É o mundo inteiro, que não tem a sensibilidade para ver que um povo inteiro está a sofrer. Há razões, mas não posso fazer nada em relação a elas. Fui obrigado a fazer este caminho e a minha motivação foi sempre essa. Calhou-me esta dificuldade, a outros não calhou. Algumas crianças têm vidas espetaculares e eu nunca tive um carrinho para brincar. Os meus amigos da faculdade falavam e falam das brincadeiras de quando eram miúdos, do Super Mario e assim, e eu perguntava o que era o Super Mario. Eu tinha de sobreviver, essa parte eu sei o que é. Às vezes, quando vamos acampar, eles ficam atrapalhados porque não têm isqueiro para fazer fogo. Eu consigo fazer fogo com pedras, eles não. Não é porque tinha essa capacidade, é porque fui obrigado a aprender. Não tinha opção.
Mantém-se a fé depois de tudo isto? Acredita em Deus?
Depende dos dias, da minha motivação. Mas quando acredito penso que, se tive estas dificuldades todas, é porque Deus ou a força ou seja quem for viu que eu tinha capacidade para superar isto. E fico motivado.
Estudou na Escola Artística António Arroio durante o Ensino Secundário. Já foi com a ideia de estudar Arquitetura ou só pensou nisso depois?
Eu adoro artes. Tenho o lado do boxe, agressivo, da porrada, mas o meu amor é a arte. Gosto de desenhar, pintar, escrever poemas. Leio. E gosto de arquitetura porque gosto de construir e criar.
Foi fácil fazer amigos depois de chegar a Portugal?
É fácil ser amigo de portugueses, porque vocês são super comunicativos. Foi sempre fácil.
Esteve recentemente nos Jogos Europeus e já integrado na Equipa de Refugiados. Falam entre vocês sobre as vossas experiências, sobre o vosso passado, ou preferem não tocar no assunto?
Por acaso tivemos uma boa interação. Eles são quase todos atletas profissionais e é óbvio que são bons no que fazem, para estarem àquele nível. Ao mesmo tempo, temos problemas mais ou menos parecidos, conseguimos entender-nos. Tivemos uma boa comunicação entre nós, trouxe boas amizades. Sempre que vou a outras competições, ligam e perguntam. Nem todos têm a mesma mentalidade e alguns até ligam a pedir ajuda, a perguntar como é que vão lidar com algumas coisas. Entendemo-nos. Podem não estar a passar pelas coisas da mesma maneira que eu, mas eu passei pior ou melhor e consigo ouvir e ajudar.
Na Turquia, teve a possibilidade de vir para Portugal ou de ir para os Estados Unidos.
Sim. Foi durante o programa de realojamento da Turquia, que passava por tirar as crianças menores de idade dos campos de refugiados e levá-las para outros países. E tinha essas duas possibilidades: Estados Unidos, para o Estado do Utah, ou Portugal. Eu não conhecia nada de Portugal, mas já tinha visto os tanques norte-americanos no Afeganistão. Escolhi Portugal porque não conhecia nada, só o Cristiano Ronaldo.
E gosta de futebol?
Nunca vejo futebol! Por mim punham 22 bolas em campo e cada um jogava com a sua. Gosto mais de desportos individuais.
Disse que gosta de ler e escrever. O que é que costuma ler?
Gosto muito de ler sobre História, mas a filosofia é a minha área. E escrevo poesia. Ler poesia… Há coisas que não entendo.
E escreve em que língua?
Escrevo na língua através da qual me chegou a inspiração. Às vezes fico inspirado em português, outras em turco, outras em persa. Escrevo na língua que calhar no momento. Depende da noite ou do dia em que chega aquele pensamento.
Quais são os objetivos a partir de agora? Os Jogos Olímpicos de 2028, claro, mas o que é que quer alcançar no futuro?
Terminar o curso de Arquitetura, faltam-me dois anos e meio. Tive de parar para tentar ir aos Jogos Olímpicos e ainda tenho algumas disciplinas para trás. Recuperar o meu ombro, porque tenho de ser operado, e treinar. Já tirei o curso de treinador nacional e internacional e estou a pensar em encontrar alguma maneira de ter uma academia minha para passar a minha experiência, os meus ensinamentos. Há muitos treinadores que nunca competiram internacionalmente, nas principais provas do mundo, e eu tenho essa experiência. E sei como motivar as pessoas, como as ajudar antes do combate ou mesmo ao longo da vida. Quando vou dar palestras às escolas, sei que consigo motivar as pessoas. Se tivesse uma academia, que também me ajudasse a sustentar a minha vida, podia passar este conhecimento e criar futuros para as novas gerações.
A ideia é ficar em Portugal?
Sim, não quero sair de Portugal. Não quero sair daqui.