Pedro Soares, ex-deputado e crítico da liderança atual do Bloco de Esquerda, está satisfeito com o rumo que o partido decidiu tomar quando começou a votar contra os Orçamentos deste Governo — um “primeiro passo na direção correta”. O problema, avisa, é que esse primeiro passo para a rutura com o PS demorou demasiado tempo a chegar.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, Pedro Soares argumenta que depois de”seis anos a alimentar a ideia” de que o programa do BE girava à volta de entendimentos com o PS e a dar “prendas” negociais a António Costa, o partido vai ter dificuldades em explicar a sua opção aos eleitores que contavam com nova geringonça, admite Soares. Agora, o caminho é firmeza absoluta nas exigências sobre leis laborais e atenção às ruas, porque há vida além das eleições para o Parlamento.
A nível interno, os avisos à direção sobem de tom: há um “controlo absoluto do aparelho” do partido e pouco ou nenhum “otimismo” sobre o processo de construção das listas de candidatos a deputados que arranca em breve. E a liderança vai ter de “tirar ilações” sobre as perdas eleitorais que tem acumulado nos últimos anos.
Pouco depois de o Bloco ter anunciado que ia votar contra o Orçamento, o movimento Convergência, que integra, escreveu que “o chumbo tem de ser acompanhado de uma mudança séria no Bloco”. Que mudança séria é essa?
O nosso empenho absoluto é em que o BE tenha um bom resultado nestas eleições. Toda a linha política tem de ser debatida; vai haver uma conferência no dia 27 nesse sentido. O voto contra o OE foi um passo importante na direção correta. Agora, tudo o resto tem de ser aferido, porque o BE tem tido um ciclo de eleições com resultados menos positivos e é preciso tirar ilações disso.
Falou nesse ciclo negativo de eleições. O que terá motivado esses maus resultados?
Termos uma orientação política centrada na procura de uma aliança com o PS é um caminho errado. Isso foi demonstrado já em eleições em 2015, com o Livre. Esse caminho não polariza à esquerda, não demarca e não afirma um programa próprio. É isso que o BE tem de fazer, com toda a clareza, sem um discurso que se subjuga à necessidade ou à possibilidade de uma aliança com o PS. Isso poderá ser, eventualmente, uma consequência. Não estou a dizer que é impossível, que não podem ser feitas alianças com outras forças políticas; não vivemos na estratosfera. Toda a história do BE tem sido de procurar entendimentos no sentido de fazer passar propostas, fazer evoluir a situação em Portugal. E esse pode ser um resultado, mas não a condição sine qua non para que o BE afirme o seu programa.
O movimento Convergência disse também que quem alimentou em 2019 a ideia de uma nova geringonça “enganou-se, falhou e está envolvido numa teia de dificuldades” para falar com os militantes e a opinião pública. A direção do Bloco está a ter dificuldades em explicar porque é que chumba o Orçamento agora?
A direção do BE tem procurado explicar, mas sabemos que há muito ruído à volta desta questão…
Mas deviam ter rompido mais cedo?
Devia ter havido uma afirmação mais clara do nosso programa.
Porque é que não houve?
Porque, na nossa opinião, a direção concentrou os seus esforços e o seu discurso político na continuidade de uma geringonça…
Porque o poder era confortável?
Não vou fazer aqui uma análise psicológica do problema, acho que é político…
Mas a direção do BE cedeu demasiado?
Não falo em cedências, mas na necessidade de afirmação de uma orientação política. Precisamos de recorrer a factos: nas eleições de 2019, o BE perdeu eleitores, apesar de ter conseguido manter o grupo parlamentar. Houve uma perda relativa de peso político.
Mas não acha que pode agora haver um castigo nas urnas? Também haverá muitos eleitores que queriam a repetição da geringonça. O BE já teve quedas brutais na votação, desta vez isso não aconteceu.
É aí que estão as dificuldades. Alimentar durante seis anos a ideia de que o nosso programa só pode ser afirmado através de um acordo com o PS cria dificuldades de entendimento ao cidadão comum, mesmo aos aderentes, relativamente ao nosso projeto político.
Ou seja, o eleitor começa a questionar-se: porquê votar BE?
E questiona-se sobretudo se é possível ter um caminho que não seja em aliança com o PS. Quando há uma rutura motivada pelo OE é natural que as pessoas se questionem. Essa é a dificuldade que temos de enfrentar.
E como é que devem enfrentá-la na campanha? Com que discurso?
Com toda a firmeza e clareza. Os eleitores até podem não estar de acordo ou ter dúvidas, mas uma força como o BE quando é clara só ganha com isso.
O que é a clareza? Dizer se quer acordos escritos, se isso é desejável, se há condições específicas para isso?
É preciso dizer, por exemplo, que não há qualquer possibilidade de compromisso com uma força que não quer mexer no Código do Trabalho, principal fator da manutenção de salários baixos — e isso tem consequências económicas.
Mas este desentendimento já se colocou e desta vez resultou no chumbo. Se voltar a acontecer, pode significar que o PS não consiga formar Governo e a direita possa voltar ao poder. O BE não se importa de ficar com esse ónus?
Podemos traçar todos os cenários a que a nossa imaginação for capaz de chegar. Mas não há nenhum indicador que trace com alguma seriedade a possibilidade de a direita ganhar as eleições. Nenhum estudo de opinião, a vida interna do PSD e CDS não indicam nada que dê confiança aos eleitores…
Nas autárquicas, as sondagens surpreenderam.
Mas o PS e a esquerda tiveram a maioria dos votos. Houve um caso ou outro particular e estamos muito sugestionados por Lisboa. E Lisboa, apesar de tudo, não é o país.
Ainda assim, há o precedente do PEC IV, em que o BE votou com a direita para fazer cair um governo socialista e foi muito prejudicado nas urnas. É um preço a pagar para manter a coerência?
O BE foi penalizado em 2011 mas a realidade é que depois em 2015 recuperou e teve o maior grupo parlamentar de sempre, com 19 deputados. Há muito mais vida além das próximas eleições. O que não quer dizer que o BE não vai lutar com toda a convicção pelo melhor resultado que permita capacidade negocial, de apoiar as movimentações sociais. Hoje está a decorrer a greve da Frente Comum da Função Pública, com um nível de adesão muito significativo — e o partido tem de estar ligado aos movimentos e combates fundamentais.
Acredita que com Pedro Nuno Santos na liderança do PS poderia ter sido mais fácil a negociação que agora falhou no Orçamento e poderá ser mais fácil negociar no futuro?
Já tive oportunidade de ter várias reuniões e processos negociais com o atual ministro Pedro Nuno Santos. Aliás, a lei de bases da habitação na fase final foi negociada com o Pedro Nuno Santos, na altura secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Foi um passo importante, o resultado foi positivo. Como deve imaginar não me vou pronunciar sobre os protagonistas dentro do PS.
Quando falamos em Pedro Nuno Santos falamos de alguém que estará hipoteticamente colocado mais à esquerda do que António Costa no PS. Não focando no nome, esta corrente interna facilita o que é o entendimento do Bloco de Esquerda? Acredita que poderia ter corrido de outra forma no OE?
Não me vou pronunciar sobre eventuais próximos dirigentes do PS. Gostava de que o atual ministro e dirigente socialista Pedro Nuno Santos se pronunciasse sobre a questão que coloquei. Está disponível para alterar a legislação laboral, para destroikizar a legislação laboral, para anular a caducidade da contratação coletiva, para ter uma política de aumentos salariais que potencie e dinamize a economia?
Mas gostava que Pedro Nuno Santos se pronunciasse porque já não acredita que António Costa tenha essa disponibilidade?
Gostava que se pronunciasse pelas razões que me colocaram aqui. Evidente que não vou questionar Pedro Nuno Santos sobre isso.
Mas ainda tem esperança em António Costa ou já não é solução e é parte do problema à esquerda?
O primeiro-ministro e secretário-geral do PS tem tido um percurso muito errático relativamente às alianças à esquerda. Tanto diz que há uma esquerda que é parasitária, como depois diz que não faz outros acordos que não com a esquerda e, portanto, há uma geometria variável muito complicada que é colocada por António Costa.
Com a conivência de Catarina Martins?
Acho que o Bloco devia ter colocado com maior clareza, como defendo para estas eleições, as linhas vermelhas. Recordo-me de ter havido declarações da direção do Bloco que dizia que o partido ia abertamente para as negociações sem colocar linhas vermelhas. Isso foi uma prenda que foi dada a António Costa.
E agora com as eleições antecipadas aproxima-se mais um processo de construção de listas de deputados. Acha que a direção vai incluir os chamados críticos? Está otimista quanto a este processo?
Com toda a sinceridade não estou otimista. Na última reunião da Comissão Política defendemos que devia haver para a formação de listas o método das listas abertas, ou seja, a formação de listas seria por proposta das direções distritais e regionais do Bloco às quais se poderia acrescentar nomes e depois a votação nominal iria determinar a hierarquia dessa lista e isso foi recusado pela maioria da direção.
Mas acha que a direção do Bloco de Esquerda está agarrada ao poder?
Não sei se está agarrado ao poder, sei é que há alguns membros da direção, alguns deputados que estão há muito tempo a exercer o mandato, que a direção do Bloco privilegia manter um controlo absoluto sobre o aparelho, sobre a organização que não privilegia a formação de uma rede de intervenção na base do Bloco.
Mas em que é que se verifica esse controlo do aparelho?
O controlo do aparelho é o controlo do aparelho. Ipis verbis.
Mas em que aspeto?
Toda a cadeia da direção é determinada a partir de uma cadeia de funcionários que estão dependentes da direção e a autonomia própria e democracia própria das organizações locais tem sido diminuída. Veja-se o que aconteceu há dois anos quando há um plenário que aprova por cerca de 80% determinada candidatura e dias depois a direção impõe uma outra candidatura.
Por falar em direção, Com derrotas pesadas em duas eleições seguidas – Presidenciais e autárquicas -, acha que o partido devia tirar ilações sobre as responsabilidades diretas de Catarina Martins?
Isso é uma matéria que será colocada com certeza na próxima convenção nacional.
Na última convenção a moção que foi proposta pela atual direção já acabou por ser um pouco menos votada do que na convenção anterior.
Um pouco é uma figura de estilo.
No seu entender é um sinal óbvio?
Sim. O que acho é que a próxima convenção vai ter de tirar ilações, fazer balanços de todo este ciclo eleitoral.
Acha que Catarina Martins atingiu o fim de ciclo?
Espero é que a Catarina Martins tenha um grande resultado eleitoral nestas eleições.
Porque se não tiver…
Eu não vou fazer ameaças.
Não, não. Se não tiver, que leituras tira daí?
Estou absolutamente empenhado num grande resultado da Catarina Martins, das listas do Bloco em todos os distritos, espero que haja um aumento do número de deputados para o grupo parlamentar porque isso é bom para o país, vai ser bom para os movimentos sociais, lutas do quotidiano.
E a pergunta da praxe: a seguir a Catarina Martins quem é o senhor ou a senhora que se segue?
Não tenho essa bola de cristal à minha frente.
Pedro Filipe Soares é um bom nome para a liderança do partido?
Não me vou pronunciar sobre isso, é a convenção nacional que vai ter de se pronunciar. O que defendo é que haja uma afirmação clara e mais forte de quem defende um Bloco de Esquerda mais aberto, mais democrático, mais participado, mais ligado às bases, aos movimentos, é para aí que eu aponto e é aí que o Bloco se reforça.
Vamos avançar para o segundo segmento da nossa refeição, “Carne ou Peixe”. Quem preferia levar numa visita guiada a Vouzela: Catarina Martins ou Pedro Filipe Soares?
Catarina Martins já lá esteve e teria muito gosto em voltar a recebê-la.
Preferia ser ministro num Governo Bloco-PS ou líder de um Bloco que estivesse sempre na oposição?
Preferia fazer parte de uma direção do Bloco capaz de estar no governo e de ser oposição.
Com quem preferia liderar o BE numa liderança bicéfala: Mariana Mortágua ou Jorge Costa?
Isso já foi chão que deu uvas.
A quem é que dava uma aula de Geografia política? António Costa ou Pedro Nuno Santos, quem está a precisar mais?
A ambos fazia-lhes bem conhecer um pouco mais a geografia.