“Quem é que em 2019 acha que o papel da mulher é cozinhar para o marido, estar em casa e não sair à noite?”, questiona, com espanto, Piet-Hein Bakker, em entrevista ao Observador, a propósito da polémica sobre “Quem quer Namorar com um Agricultor?” e “Quem quer Casar com o Meu Filho?”. O antigo produtor da Endemol, que há 18 anos trouxe para Portugal o “Big Brother”, o mais famoso “reality show” de sempre, entende que os novos programas de domingo à noite na SIC e na TVI, que têm hoje a sua segunda edição, são inofensivos e não têm de estar ao serviço da igualdade de género, porque “o objetivo de um programa de entretenimento não é educar o povo”.
Os “reality shows” apresentados por Andreia Rodrigues na SIC e Leonor Poeiras na TVI, têm sido muito criticados nas redes sociais. Mereceram a classificação de “formatos absolutamente degradantes para as mulheres” por parte de associações feministas e motivaram queixas junta da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Piet-Hein, que hoje dirige a produtora SP Entertainment, diz que a polémica favorece as estações de televisão e acha que as vozes críticas “estão a subestimar” a capacidade do público para entender o que aparece no pequeno ecrã.
Viu os dois novos “reality shows” da SIC e da TVI?
Não vi por inteiro. Vi uma parte dos dois, mais ou menos meia hora, o que me permite ter opinião, ainda que parcelar.
Muitas pessoas dizem que se tratam de programas sexistas, que transmitem uma imagem estereotipada das mulheres. Concorda?
Sem dúvida, jogam com estereótipos, o que é muito comum nos “reality shows”. São programas feitos com alguns pontos de partida básicos. Desde o “Big Brother” até hoje, todos têm isso em comum. O “casting” costuma ser estereotipado.
As produtoras procuram à partida concorrentes que encaixem em personagens-padrão, é isso?
Sim, mas a televisão em geral é baseada nisso e os “reality shows” são-no em particular. Os estereótipos são muitas vezes usados porque são fáceis de reconhecer pelos espectadores.
ERC recebeu queixas contra os novos reality shows da SIC e da TVI
Em “Quem Quer Casar Com O Meu Filho?” apareceu uma mãe a dizer que a concorrente não servia para o filho por não saber cozinhar.
Mas isso é um conteúdo cómico, só pode ser considerado cómico. Se fosse levado a sério, seria um momento muito grave. O essencial é isto: não podemos levar estes programas demasiado a sério, são programas de entretenimento, têm apenas o objetivo de entreter as pessoas. Quem vê, tem que ter isso em mente. Acho que hoje os espectadores têm noção do que estão a ver, muito mais do que há 10, 15 ou 20 anos. Aquilo é criado, não reflete a imagem ideal de uma mulher. Até pode funcionar ao contrário, porque quando nos rimos da situação estamos, no fundo, a desmontá-la. É desde logo ridículo uma mãe decidir seja o que for sobre a vida amorosa do filho. Só isso já é uma situação caricata e não acredito que aconteça na realidade. É uma situação artificial, não pode ser levada a sério. Se fosse um documentário, onde o realizador estivesse a tentar transmitir qual o papel da mãe ou da mulher numa relação, seria grave. Agora, aqui, não.
O debate que se gerou nas redes sociais é positivo? Pôs as pessoas a debater?
O objetivo de um programa de entretenimento não é educar o povo, o objetivo de um “reality show” é entreter e ter a maior audiência possível.
Terá havido uma intenção polémica, claramente pensada por parte dos criadores dos programas?
Bem, as polémicas nas redes sociais dão imenso jeito, claro.
Dão jeito?
Sim, dão continuidade ao programa. Claro, tudo tem os seus limites.
É de admitir que a pergunta da mãe à candidata sobre se ela sabia cozinhar tenha sido propositada, para gerar polémica?
Nada é ingénuo. Quando pensamos em entretenimento e audiências, pensamos em conteúdos mais “edgy”, como dizem os ingleses, conteúdos mais no limite. Isso é óbvio.
O facto é que muita gente levou aquilo a sério. Será que o público, em geral, ainda não se habituou à linguagem encenada dos “reality shows”?
Quem escreve nas redes sociais é quem tem opinião negativa. Quem tem opinião positiva, ou é indiferente, não escreve. Logo, aquilo que lemos não corresponde à opinião em geral, não será a perceção geral. Pode haver pessoas que acharam que aquilo era real, mas custa-me acreditar que hoje o espectador médio de televisão em Portugal ache que é a sério. O espectador tem plena noção do lado risível e ridículo destes programas.
Algumas críticas publicadas podem ser lidas como um ataque à classe social dos protagonistas destes programas e não ao que lá se passa?
Não sei, acho que as críticas refletem falta de sentido de humor. Quem critica, não entende que os programas são artificiais e cómicos. Tudo pode ser usado para fazer humor, o humor não tem limites. Claro que isto não são programas de humor, são “reality shows”, mas no fundo quem está a ver deve considerar que se trata de um programa de humor. Levei com situações destas há 25 anos, quando comecei a fazer um programa chamado “All You Need is Love”. Grande parte da imprensa caiu em cima de mim, a dizer que era ir longe de mais e brincar com as pessoas. Hoje, o “All You Need is Love” seria uma brincadeira de crianças ou, pelo menos, as pessoas não ficariam chocadas. Com o “Big Brother”, a mesma coisa: grande escândalo, invasão da privacidade, etc.. Hoje está tão banalizado que já ninguém se importa. E agora temos um novo ponto: o papel da mulher numa relação. Dizem que o programa é horrível, que as pessoas não podem viver assim. Isso todos sabemos. Quem é que em 2019 acha que o papel da mulher é cozinhar para o marido, estar em casa e não sair à noite? Quem é que acha isto? Estão a subestimar os portugueses. Os portugueses, graças a Deus, não acham nada disto.
Que opinião tem sobre a igualdade de direitos entre homens e mulheres?
Ainda há muito terreno para percorrer, acho que a igualdade ainda não foi atingida e é muito bom haver movimentos que lutam por essa igualdade. Sou de um país do norte da Europa e vejo que na Holanda o assunto está melhor do que em Portugal. Não está ótimo, mas está melhor. Não acho é que o caminho seja a crítica, é muito mais sério do que isso. A igualdade homem-mulher é um assunto cultural, social, político e económico, não se resolve nem se agrava com um “reality show”. A televisão, pelo menos na área do entretenimento, não estou a falar da informação, não tem como função equilibrar estas forças.
Como acaba de dizer, quando o “Big Brother” apareceu em Portugal era criticado por fomentar o voyeurismo e isso hoje já se aceita com naturalidade. Parece, portanto, que os “reality shows” influenciam mesmo a sociedade e a perceção das pessoas.
Não acho. Seria dar demasiada importância à televisão. A televisão, muitas vezes, vai atrás da sociedade. Qual é a real invasão de privacidade hoje? Não é estar fechado numa casa num programa de televisão, são as redes sociais, as câmaras de vigilância, o reconhecimento de expressões faciais, o controlo social pela tecnologia. Isso é que é grave. Há um aspeto interessante: este debate sobre a igualdade entre homens e mulheres, a partir dos dois novos “reality shows”, tem que ver com o formato em si. Estamos a falar de “dating shows” [programas de encontros], que são à partida um pouco sexistas. Neste caso, são homens que veem não sei quantas mulheres para as escolherem. É machista? Parece que sim, mas aparece num contexto de entretenimento e não é para ser levado a sério, não pode ser levado a sério.
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Alguma vez imaginou estes programas em que apenas se procura um parceiro sexual, um marido, uma mulher?
Os “dating shows” existem há mais anos do que os “reality shows”. Lembro-me de que em 1994, quando cheguei a Portugal, era uma coisa que estava no ar em todo o mundo, menos cá. Havia uma resistência a este género, os diretores de programas diziam que não era bom, porque os portugueses não gostavam. Nessa altura, eram “dating shows” puros, digamos assim, um concurso com três pessoas e uma para escolher, um concurso com “dating”, todo gravado em estúdio, sem exteriores. Hoje, estão misturados com a linguagem “reality”, são “dating reality”, ou seja, “reality shows” com “dating”.
Há quem diga que o formato “reality show” está em crise, mas os canais comerciais portugueses apostam cada vez mais neles. O que é que ainda torna o “reality show” tão atraente para os diretores de programas?
Duas coisas: as audiências, que são o mais importante, e o facto de ser um conteúdo relativamente barato. Consegue-se tirar dali muitos minutos de televisão. Aquilo tem um custo, mas depois tira-se um programa semanal e outro diário. Se somarmos esses minutos todos, o preço por minuto é muito inferior ao da ficção televisiva ou dos concursos semanais.
Esses concursos semanais, sobretudo os de talentos, têm cada vez mais uma componente de “reality show”. Porquê?
Porque as pessoas no entretenimento querem aproximar o espectador do conteúdo. Tudo o que é artificial e soa a falso, afasta o espectador. Regra geral, as pessoas não gostam de frases feitas, não gostam de um texto escrito.
Os concorrentes de “reality shows” são informados sobre o papel que vão desempenhar, sobre o que se espera que façam e digam?
Não estou na produção destes novos programas, mas nos “reality shows” que eu fiz era essencial as pessoas saberem ao que iam. Claro, quando o “Big Brother” se estreou em Portugal só havia dois modelos, só tínhamos a versão holandesa e a espanhola para mostrar. Hoje, quem participa são profissionais, viram tudo e mais alguma coisa, sabem o que é preciso para ganhar, têm plena noção da popularidade, tudo. Tornou-se muito mais um jogo, enquanto no início era uma coisa mais ingénua. Mas todos sabiam ao que iam. As pessoas não são malucas, querem saber onde se vão meter e nós temos obrigação de explicar.
Os novos “reality shows” da SIC e da TVI têm um guião? Tudo o que é dito e feito está previamente definido?
Não, nada disso. Quem tem guião é a apresentadora e normalmente são apenas tópicos. Os concorrentes não têm guião, não são atores. Funcionaria muito mal se houvesse guião. Os “reality shows” só funcionam porque as pessoas falam como costumam falar. O que está “guionado” é a situação: “Agora vocês sentam-se aqui, depois entra uma pessoa, primeiro pergunta a mãe, depois pergunta o filho”. É um guião da situação. As perguntas não estão “guionadas”. Pelo menos, nos programas que eu produzi não era assim.
Um guião na forma e não no conteúdo.
Exatamente.