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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Este Outono/ Inverno será um período de grande pressão sobre os serviços de saúde. E, por isso, com o acelerar do número de infecções por Covid-19 (em Portugal e por toda a Europa), regressou em força o debate sobre eventuais medidas mais drásticas de confinamento. Ora, uma das medidas mais discutidas consiste no encerramento das escolas básicas e secundárias, parcial ou integralmente, repetindo o que foi feito no início de 2020. Será esta uma boa solução?
Ao contrário do que aconteceu em Março, neste momento sabemos muito mais sobre a Covid-19 e temos muito melhor informação ao nosso dispor para respondermos com critério a essa pergunta. E, como veremos ao longo deste ensaio, analisando as consequências do encerramento das escolas desde Março até Setembro, os dados apontam para uma resposta categórica: não, encerrar escolas não parece ser uma solução eficaz. Porquê? Porque, no plano de contenção da pandemia, as evidências não apontam para que as escolas sejam espaços de risco elevado de contágio. E porque, no plano do desenvolvimento das crianças e jovens, as consequências desse isolamento são fortemente negativas e duradouras — para a sua aprendizagem e para o seu bem-estar mental.
O peso destas evidências começa a notar-se nas decisões de confinamentos parciais pela Europa. França, Bélgica e Alemanha deram o tiro de partida para novas medidas de confinamento, sendo que todas optaram por manter as escolas abertas. Mas, mais recentemente, na Áustria, o encerramento das escolas foi mesmo decretado na segunda metade do mês de Novembro, assim como em Nova Iorque (EUA), onde as escolas fecharam portas a 19 de Novembro. O que isto mostra é que a rápida subida dos números de infecções e a proximidade do Natal estão a perturbar o consenso gerado à volta da abertura das escolas.
Em Portugal, o consenso social e político à volta dessas evidências demorou a ser alcançado. Durante os meses que se seguiram ao encerramento das escolas, poucas vozes se ergueram com apelos à reabertura das escolas — eu fiz muitos desses apelos, assim como o Luís Aguiar-Conraria. Mas esse consenso chegou finalmente com o arranque do ano lectivo, como provaram as declarações do primeiro-ministro a 14 de Setembro: “Não podemos continuar a pagar o preço de ter a escola encerrada, não podemos continuar a pagar o preço das desigualdades que gera a ausência do ensino presencial, não podemos continuar a sacrificar o processo de aprendizagem para as gerações futuras”. Uma posição que, em várias instâncias, tem sido reiterada pelo ministro da Educação — por exemplo, quando sublinhou que o encerramento das escolas será sempre a última opção possível.
Como é evidente desde o início de Setembro, o grande desafio não foi reabrir as escolas, mas mantê-las abertas: é que fechá-las não está inteiramente posto de parte, em função da evolução dos números da pandemia — como prova a suspensão das actividades escolares nos dias 30 de Novembro e 7 de Dezembro, vésperas de feriado. Ora, o risco é que o consenso alcançado sucumba à pressão pública e ao medo que possa causar a subida dos indicadores da pandemia. Antes que tal suceda, vale a pena rever a matéria: o que já sabemos acerca dos efeitos nas crianças e jovens do confinamento e do encerramento das escolas entre Março e Setembro? Ainda não sabemos tudo. Mas sabemos o suficiente para rejeitarmos um novo encerramento das escolas como solução na gestão da crise pandémica.
O impacto na aprendizagem: há alunos a regredir vários meses
Já existem evidências do impacto real que o encerramento das escolas teve na aprendizagem das crianças? Sim, ainda que provisórias. E, como se adivinhava, o impacto é negativo e severo. Mas, antes de olharmos para esses dados, vale a pena contextualizar.
Desde a primeira hora, quando se decretou o encerramento das escolas em Março, foi claro que o ensino à distância não seria um substituto real e eficaz para o ensino presencial. Contudo, nem todos o aceitaram inicialmente, dando lugar a entusiasmos com o que poderia ser uma oportunidade para revolucionar o ensino. Só que, passados vários meses, esse entusiasmo foi derrotado pela realidade, que demonstrou o vazio educativo que esse ensino à distância improvisado e de emergência representou. O cânone das políticas públicas de educação veio ao de cima: o papel do professor é determinante para a aprendizagem, e a interacção dos alunos com este é muitíssimo mais proveitosa em ensino presencial.
As evidências da investigação já existente apontavam com precisão para os riscos do ensino à distância. Primeiro, para os alunos mais novos, que sendo os menos autónomos seriam igualmente os menos capazes de tirar proveito dessa via de ensino, ficando a milhas dos níveis de aprendizagem que alcançariam em regime presencial. Segundo, os alunos em risco de insucesso escolar, também por terem menos autonomia, enfrentariam maiores obstáculos, pois não somente lhes faltava a consolidação de conhecimento como também era mais escassa a sua resiliência perante a adversidade — e, como tal, a distância que os separava dos bons alunos aumentaria. Terceiro, os alunos socialmente desfavorecidos seriam aqueles que, à partida, teriam maiores fragilidades (na aprendizagem, nos meios de acesso remoto às aulas, no apoio dos pais em casa) e, por isso, os principais penalizados pelo encerramento das escolas e suspensão do ensino presencial.
Todos estes riscos parecem ter-se confirmado. E, pior ainda, foram ampliados pelas questões logísticas do contexto excepcional vivido. Por um lado, pelo facto de o ensino à distância que efectivamente existiu ter sido, na prática, um ensino de emergência, improvisado e de qualidade díspar — em alguns casos, existiu e funcionou minimamente, noutros casos foi uma mera aparência de escola, completamente ineficaz para a aprendizagem. Por outro lado, porque se multiplicaram situações de exclusão do ensino à distância por via de falta de meios tecnológicos (computador ou dispositivo tecnológico), acesso a internet de banda larga e conhecimentos informáticos mínimos para a utilização diária das ferramentas.
Ou seja, é inquestionável que existiu um dano na aprendizagem e que esse dano incidiu em particular sobre os mais frágeis, acima descritos. A questão agora é quantificar esse dano. E é aqui que o exercício se complica, pelo menos por enquanto, dada a informação disponível permanecer escassa.
Comecemos, desde já, pelas estimativas de impacto. Com base em investigação previamente realizada, é possível estimar o dano na aprendizagem causado por períodos longos sem contacto com a escola. Uma grande parte dessa investigação focou-se no chamado “deslize de Verão” (“summer slide”), que corresponde à perda de conhecimentos que se observa nos meses de férias — 2 a 3 meses, consoante os sistemas educativos. A comparação destas evidências em tempo normal (férias escolares) com um contexto excepcional de pandemia que afastou os alunos do ensino presencial durante 6 meses terá, forçosamente, várias limitações, mas tem igualmente a virtude de atribuir ao problema uma ordem de grandeza baseada em evidências.
O que nos propõem essas estimativas, representadas nas figuras 1 e 2? Em primeiro lugar, sobre o impacto na aprendizagem, as estimativas colocam dois cenários, que comparam com o “normal” (pré-Covid). Assim, dizem-nos que, se o aluno tiver mantido algum tipo de contacto com conteúdos educativos ininterruptamente durante os seis meses que separaram Março e Setembro (portanto, incluindo aulas ou apoio durante as férias de Verão), seria possível como que preservar os níveis de conhecimento de Março até Setembro. Ou seja, esses alunos não evoluiriam particularmente, mas também não regrediriam, chegando a Setembro com níveis de desempenho próximos do esperado num ano normal. Por outro lado, as estimativas traçam um cenário muito inquietante para os alunos que tenham tido pouco ou nenhum contacto com a escola entre Março e Setembro, apontando para um retrocesso que pode ser equivalente, nos casos mais extremos, a meses de aprendizagem — por exemplo, um aluno nessas condições chegaria a Setembro 2021 com os níveis de aprendizagem equivalentes a Dezembro 2020. Ora, entre estes dois cenários, aquele que mais se aproxima da realidade portuguesa é, infelizmente, o pior: seja porque muitos alunos não tiveram acompanhamento escolar adequado desde Março, seja porque, mesmo os que tiveram, não terão mantido actividades escolares durante as férias de Verão (para compensar e/ou manter os níveis da aprendizagem).
Em segundo lugar, as estimativas ajudam a prever os contextos em que os danos na aprendizagem terão sido mais acentuados. Desde logo, comprovam que os alunos mais novos serão os principais prejudicados pelo encerramento das escolas — quanto mais baixo for o ano de escolaridade, maior o dano causado pela interrupção do ensino presencial. O que, diga-se, não constitui qualquer surpresa, visto que são esses os alunos que ainda não têm os seus conhecimentos consolidados. Mais ainda, as estimativas mostram que o dano não é igual em todas as disciplinas. Por exemplo, em matemática o impacto da suspensão do ensino presencial faz-se sentir muito mais severamente do que na leitura.
Estas eram as estimativas fundamentadas pela investigação. A pergunta do momento actual é esta: as estimativas confirmaram-se? O regresso às aulas no ano lectivo 2020/2021 ocorreu apenas há cerca de dois meses, pelo que não se dispõe, por enquanto, de um largo conjunto de dados para avaliar o que realmente aconteceu. Mas já existem alguns estudos preliminares com dados recentes. E, sim, confirmam um impacto negativo na aprendizagem.
Um desses estudos usou os dados de uma plataforma online de apoio à aprendizagem de matemática (ZEARN, usada em sala-de-aula), nos EUA, para comparar os desempenhos médios dos alunos em Janeiro de 2020 e Outubro de 2020, mostrando como esses desempenhos evoluíram nesse período. Como se observa na figura 3, os dados reais do desempenho dos alunos seguem o padrão apontado pelas estimativas, permitindo-nos retirar três conclusões.
Primeiro, que até Março, os desempenhos médios dos alunos estavam alinhados — alunos socialmente favorecidos e alunos socialmente desfavorecidos evoluíam a um ritmo semelhante na sua aprendizagem.
Segundo, que a partir de Março, quando as primeiras medidas restritivas foram aplicadas e as escolas encerradas, as diferenças de contexto social entre alunos manifestaram-se nos resultados, criando um fosso entre os alunos socialmente favorecidos (que continuaram a evoluir na aprendizagem) e os alunos socialmente desfavorecidos (cujos desempenhos pioraram aceleradamente).
A terceira conclusão possível é que, agora em Outubro, esse fosso ainda prevalece e que, comparativamente aos desempenhos dos alunos em Janeiro de 2020, houve um efectivo retrocesso na aprendizagem. Em média, os desempenhos estão 7,2% abaixo do que estavam em Janeiro 2020, sendo que esse valor é de 10,2% abaixo para os alunos socialmente desfavorecidos. Só os alunos de elevado perfil socioeconómico melhoraram face a Janeiro: mais 4,3%. Ou seja, tudo se confirma: todos os alunos pioraram (ou evoluíram menos) face ao que seria esperado, sendo que no caso dos alunos desfavorecidos e em risco essa pioria foi tão acentuada que confirmou um retrocesso de aprendizagem.
Um outro estudo comparou o desempenho dos alunos do 6º ano na Bélgica flamenga, comparando os seus resultados nas provas finais do ano escolar 2019/2020 com os de anos anteriores (2015 a 2020) — o que é relevante para este tema porque os alunos realizaram essas provas após 9 semanas de encerramento e uma reabertura do ensino presencial sob várias restrições. As conclusões do estudo confirmam um dano na aprendizagem: uma queda de 19 pontos percentuais face aos anos anteriores em matemática e 29 em Holandês. Mais ainda, os resultados apontam para um aumento de desigualdades dos resultados entre escolas e entre alunos numa mesma escola, confirmando-se também a tendência de maior penalização para os alunos socialmente desfavorecidos.
Pergunta final: será este dano na aprendizagem recuperável? Na teoria, sim, caso os alunos disponham de apoio reforçado ao longo deste ano lectivo. Na prática, dadas as circunstâncias actuais das escolas, ainda a lidar com a pandemia, não é certo que esse apoio possa ser efectivamente prestado aos alunos — e as consequências desse vazio serão provavelmente negativas, embora de dimensão ainda incerta.
O impacto económico futuro: uma geração pior preparada tem efeitos económicos
Sabemos que a pandemia está a ter, no presente, um efeito devastador na economia. Esse é o presente. Mas se olharmos para o futuro, há ainda mais motivos para preocupação. É que o encerramento das escolas e as quedas na aprendizagem têm, também, um impacto económico futuro. É esse que abaixo analisamos.
Na literatura académica, verifica-se uma relação consolidada entre estas duas áreas: economia e educação estão correlacionadas positivamente, pelo que o crescimento de uma está associado ao crescimento da outra. De resto, os dados revelam aquilo que é intuitivo para quem estuda o desenvolvimento económico de países: o investimento em capital humano (formação) estimula (a médio e a longo prazo) um crescimento económico mais acelerado e robusto. Por essa ordem de razão, no contexto pandémico que vivemos, o encerramento das escolas e consequente dano na aprendizagem terão forçosamente um impacto no desenvolvimento económico futuro dos países. Mas será possível estimá-lo e quantificá-lo?
Foi esse o desafio que dois dos mais prestigiados economistas da educação (Eric Hanushek e Ludger Woessmann) abraçaram num estudo publicado pela OCDE, em Setembro. Através dos seus cálculos, os dois investigadores determinaram um valor médio de perda no PIB (presente e futuro) em função do número de dias de escolaridade perdidos — havendo, como seria expectável, diferenças significativas entre países, seja pelo seu perfil económico, seja pelas restrições aplicadas no encerramento/ abertura das escolas. Apesar dessas diferenças, o valor médio de impacto futuro no PIB é tudo excepto negligenciável: a perda de 25% das aulas num ano lectivo produziria uma perda média estimada em 1,1% do PIB; a perda de meio ano de aulas representaria um impacto negativo no PIB futuro em 2,2%. E, mesmo no ano de 2100, esse impacto manter-se-ia presente no PIB.
Neste quadro, a estimativa para Portugal corresponderia à perda de, sensivelmente, um terço das aulas do ano lectivo 2019/2020 (o equivalente ao terceiro período). E, de acordo com as estimativas dos investigadores em artigo publicado no Iniciativa Educação, para o caso português isso implicaria no longo prazo uma perda de cerca de 212 mil milhões de euros.
Importa, contudo, assinalar que estas estimativas preliminares podem ser contrariadas por uma recuperação da aprendizagem. Ou seja, o impacto negativo no PIB de décadas vindouras não é inevitável. Mas, para o evitar, importa agir rapidamente no sentido de apoiar os alunos a retomar o seu percurso de sucesso. E, como sublinham os dois investigadores, “não basta regressar aos níveis de desempenho pré-COVID”, uma vez que “as perdas de aprendizagem só serão colmatadas se as escolas se tornarem mais eficazes do que eram anteriormente, o que não é, de todo, impossível”.
O impacto na saúde mental das crianças: mais ansiedade e mais depressões
A saúde mental foi o elo mais fraco no período de confinamento e suspensão do ensino presencial: raramente foi motivo de discussão na arena política. Durante meses, ouviram-se intervenções de responsáveis políticos e de comentadores no debate público a assinalar o prejuízo académico e social causado pelo encerramento das escolas. Mas, nesse período, poucas vezes se assinalou a necessidade de reagir aos desafios que a pandemia colocou na saúde mental das crianças. O resultado é este: activaram-se medidas no âmbito social e programou-se um ano lectivo tendo consciência da necessidade de recuperar a aprendizagem. Mas, no apoio à saúde mental, o mesmo nível de investimento não foi aplicado.
Vale a pena, por isso, contextualizar este ponto de forma um pouco mais detalhada. Durante a idade escolar, é suposto as crianças socializarem, criarem laços e conviverem. A pandemia interrompeu subitamente essas interacções. Ora, imagine-se o que é interromper a adolescência e trancar em casa todo aquele fogo de independência e de pertença a um grupo de amigos. Ou imagine-se o que é, nos primeiros anos de vida escolar, cortar as ligações das crianças entre si. Ou ainda o que é ter tantas vivências que não foram vividas nas idades naturais, desde os namoros à cumplicidade com os amigos. A pandemia travou isso tudo. E, em alguns casos, fez ainda pior. Seja porque, para as crianças em contextos familiares difíceis e violentos, lhes retirou a escola como espaço de segurança. Seja porque, para tantas outras crianças, remeteu a socialização para as redes sociais, onde se observou uma subida do cyberbullying — ou seja, houve crianças não só penalizadas pelo encerramento das escolas como, também, pela perseguição no mundo digital.
A reabertura das escolas resolveu esse problema? Sim e não. O regresso à escola e ao ensino presencial foi um balão de oxigénio, sim, mas no actual contexto, sustentado em tantas restrições e receios, é também gerador de desconforto e estranheza. A escola que os alunos reconhecem como sua está diferente neste ano lectivo — sem os rostos descobertos de professores, sem liberdade de circulação, sem abraços, sem contactos com colegas de outras turmas. Ou seja, mesmo que possam retomar a sua socialização, o ambiente está suficientemente tenso para que o reconforto do regresso à escola não seja integral.
Por todas estas razões, é apenas expectável que a saúde mental dos mais jovens se tenha deteriorado. Como? Através de aumentos de stress e ansiedade. Através de maior sentimento de insegurança. Através de baixas na auto-estima ou no surgimento de casos depressivos. O feedback e os alertas de várias instituições e especialistas têm apontado precisamente para aí: aumento de sinais exteriores que indiciam o agravamento de mal-estar mental.
Ora, se é razoável presumir que o dano existe, o desafio actual está em quantificar esse impacto. Em Portugal, e na Europa em geral, a investigação ainda não teve oportunidade de recolher dados suficientes para fazer o retrato da situação, embora existam análises preliminares. Mas, na China, onde os efeitos da pandemia se manifestaram mais cedo, a investigação já começou a produzir evidências. Vejamos dois estudos em particular.
Num primeiro estudo, foram aplicados inquéritos online, realizados em Março de 2020, a mais de 8000 jovens (dos 12 aos 18 anos, amostra não aleatória), oriundos de várias províncias do país. Esses inquéritos seguiram o guião de questionários cientificamente validados para a identificação de indícios de estados depressivos ou de ansiedade. E os resultados (figura 5) revelaram níveis anormalmente elevados desses indícios: 44% dos inquiridos apresentou sinais de depressão e 37% dos inquiridos tinha indícios de ansiedade (sendo que, no global, 30% dos inquiridos tinha ambos). Contudo, apenas 3% dos jovens inquiridos apresentou indícios considerados graves.
Este estudo tem várias insuficiências. Uma delas é a inexistência de comparativo pré-Covid, que nos informe sobre o bem-estar mental destes jovens antes do confinamento a que foram sujeitos por causa da pandemia. Não havendo essa informação sobre os inquiridos, há dados internacionais e estudos anteriores na China, que sugerem que os valores “normais” rondariam os 15% a 20%. E, assim sendo, os resultados obtidos nos inquéritos referidos seriam particularmente elevados — a comparação deve, no entanto, ser feita com cautelas, face às limitações metodológicas.
Um segundo estudo (figura 6) ajuda a completar o retrato, até porque, neste caso, o comparativo pré e pós-Covid é possível de ser efectuado. Uma equipa de investigação aplicou questionários a alunos, numa região da China considerada de baixo risco de contágio Covid-19, como parte integrante de um estudo em curso sobre a saúde mental dos jovens. Os primeiros questionários foram aplicados em Novembro de 2019, semanas antes de a pandemia surgir. Os segundos questionários (aos mesmos alunos) foram aplicados em Maio de 2020, quando os alunos regressaram à escola após um período de confinamento e vários meses a viver sob medidas de contenção da pandemia de Covid-19. No total, houve 1241 alunos (entre 9 e 15 anos) que preencheram ambos os questionários, permitindo assim obter-se uma percepção sobre os efeitos da pandemia na sua saúde mental. E, confirmando as expectativas, os resultados apontam no sentido de um agravamento do mal-estar mental desses jovens. Observou-se um aumento de indícios de depressão (de 18,5% para 24,9%), de ideação suicida (de 22,5% para 29,7%) e de tentativas de suicídio (3% para 6,4%).
Outros estudos confirmam a tendência — como neste, também na China, focado sobretudo em indícios de depressão, ansiedade e bem-estar mental da população chinesa, com mais de 56 mil inquiridos da província de Hubei. Ou seja, são vários os estudos onde se constata uma deterioração da saúde mental dos jovens, mesmo que permaneçam questões no ar à espera de resposta. Desde logo, não é possível extrapolar estes resultados para a realidade portuguesa, que apesar de tudo é muito distinta da chinesa. Depois, a quantificação do agravamento não é ainda consensual e poderá variar entre regiões, países e contexto das medidas implementadas para a contenção da pandemia. Do mesmo modo, não se pode prever a durabilidade deste mal-estar mental (se é “passageiro” ou se veio para ficar e impor consequências futuras). Mas, apesar das várias dúvidas (metodológicas e de impacto), há pelo menos algo já evidente: os dados confirmam um agravamento preocupante da saúde mental dos mais novos, resultante em grande medida do confinamento após o encerramento das suas escolas — e é necessário dar uma resposta a este problema nas políticas públicas.
O impacto na contenção da pandemia: fechar escolas não é solução
Sobre o encerramento das escolas, há ainda um ângulo a explorar. Mesmo sendo agora consensual que provoca um dano na aprendizagem das crianças, no potencial económico do país e na saúde mental dos jovens, permanece uma questão no outro lado da balança: fechar escolas é uma medida de contenção eficaz para prevenir contágios de Covid-19? Reformulando de forma mais pragmática: a eficácia do encerramento das escolas no combate à Covid-19 justificaria tolerarmos os danos acima referidos?
É aqui que reside o ponto-chave da decisão política. Ora, há uma parte da resposta à pergunta que nunca será consensual, pois depende da subjectividade de quem fizer a avaliação e dos factores que cada um mais valoriza — se a educação, se o desenvolvimento económico, se a implementação de medidas para travar a pandemia. Mas há uma outra parte da resposta à pergunta que pode ser objectivamente discutida, analisada e avaliada: o encerramento das escolas é ou não é uma medida eficaz para travar o contágio de Covid-19? De acordo com os dados conhecidos, a resposta apoiada nas evidências científicas é esta: não é.
A explicação é esta: os estudos já publicados para diferentes contextos internacionais (desde a China aos países europeus) mostram que as escolas não são espaços de alto risco de contágio. Mais precisamente, os estudos mostram que a reabertura das escolas não está associada ao aumento dos números de contágios, desde que cumpridas as regras sanitárias nas escolas, na medida em que os casos de infecções sinalizados em contexto escolar decorrem geralmente de contágios fora-da-escola. Ou seja, com a aplicação das medidas sanitárias (distanciamento possível, porte de máscara, higienização das mãos e arejamento dos espaços), as escolas não têm sido focos de contágio.
É essa a grande conclusão de um estudo realizado para o caso alemão, recentemente publicado, onde se conclui que a reabertura das escolas em Agosto (quando começa o seu ano lectivo) não produziu aumento de casos no país. Algo semelhante pode ser verificado em Espanha, onde, de acordo com um estudo sobre o Covid-19 e o impacto da reabertura das escolas espanholas em Setembro, 87% dos infectados detectados em escolas foram casos isolados e que não resultaram em contágio de outros membros da comunidade escolar. De resto, há duas constatações imediatas a fazer, ambas no sentido de confirmar que as escolas em Espanha não foram promotoras de contágios. Por um lado, o aumento das infecções por Covid-19 acelerou ainda antes da reabertura das escolas, pelo que não seria correcto relacionar os dois acontecimentos. Por outro lado, há regiões espanholas onde, com as escolas abertas, o número de infecções por Covid-19 diminuiu ou estagnou — novamente mostrando que os dois acontecimentos (mais infecções e reabertura das escolas) não estão interligados.
Além disso, mesmo em contextos diferentes (com menores restrições e regras sanitárias), as escolas continuaram a não ser um espaço de alto risco — veja-se, por exemplo, o caso da Dinamarca, que aplicou regras sanitárias menos exigentes na sua reabertura do ano lectivo, com bastante sucesso. Enfim, os exemplos internacionais multiplicam-se e, embora não definam um padrão específico, vão no sentido de confirmar que o funcionamento das escolas não está directamente relacionado com mais infecções por Covid-19: no Japão houve aumento e descida de infecções apesar de as escolas terem permanecido abertas, tal como na África do Sul as escolas reabriram e não evidenciaram impacto nos contágios de Covid-19 — contudo, no Reino Unido, a subida do número de casos coincidiu temporalmente com a reabertura das escolas, embora a relação entre os dois acontecimentos não tenha sido confirmada.
O que explica que as escolas sejam, maioritariamente, espaços seguros, ao contrário de outros espaços fechados? Como em quase tudo o que envolve a Covid-19, ninguém tem certezas. Mas a resposta mais provável, até ao momento, parece ser esta: para além da aplicação rigorosa das regras sanitárias e os alunos estarem em ambientes controlados nas salas-de-aula, facilita muito o facto de as crianças serem tendencialmente menos contagiadas pela Covid-19, conforme tendo sido amplamente discutido e anunciado pelas autoridades públicas — por exemplo, aqui, no Reino Unido.
Em Portugal, esta análise é difícil de realizar, na medida em que os dados sobre casos Covid-19 nas escolas não têm sido divulgados de forma sistemática pelas autoridades públicas (ministério da educação ou DGS), havendo depois uma guerra de números entre governo e sindicatos de professores. Mas até nessa guerra os números não batem certo, misturando-se casos com focos de contágio, casos activos com casos curados, escolas com agrupamentos — tornando praticamente impossível uma análise da situação (algo que seria resolvido se o ministério da educação publicasse a informação conforme acontece noutros países).
Assim, sobre a situação portuguesa, importa sobretudo desfazer um mito e reter dois pontos-chave para a análise da situação. Vamos desde já ao mito: é falso que os números recordes em Portugal de infecções por Covid-19 sejam um resultado da reabertura das escolas para o ano lectivo 2020/2021. Na verdade, bastará observar a evolução dos indicadores da pandemia no nosso país para o verificar: a subida do número de casos iniciou-se e consolidou-se ainda antes da reabertura das escolas. De resto, esta situação é coincidente com os dados da investigação acima mencionados, que precisamente não associam a reabertura das escolas a novos casos.
Agora, os pontos-chave. Primeiro, a existência de um caso Covid-19 numa escola não equivale à existência de um foco de contágio. Ou seja, não significa que, na comunidade escolar, tenha havido contágio ou que a escola tenha deixado de ser um espaço seguro — quase sempre, a infecção deu-se num contexto não-escolar. Segundo, os números divulgados (oficialmente ou pelos sindicatos de professores) correspondem a uma muito pequena parte da rede escolar, mostrando assim que as situações nas escolas são, apesar de tudo, minoritárias — mesmo que o destaque mediático sugira o contrário.
So what? 7 pontos para enquadrar as próximas semanas
Ponto 1: não se deve suspender o ensino presencial de forma transversal, nem retirar os mais novos da escola. A suspensão do ensino presencial produz um dano na aprendizagem que é muito acentuado para todos os alunos, mas em particular para os alunos que frequentam os primeiros anos de escolaridade (1º e 2º ciclos do ensino básico). Os dados mostram que, para os alunos mais novos, a suspensão do ensino presencial corresponde, na prática, a suspender a sua aprendizagem, visto que, na grande maioria dos casos, o ensino à distância é ineficaz para estes alunos. Do mesmo modo, haverá sempre regiões e concelhos mais afectados pela Covid-19 do que outros, razão pela qual uma medida uniforme para todo o país (como em Março) seria injusta e desproporcional. Assim, a ter de ser excepcionalmente suspenso o ensino presencial, tal só deve suceder para os alunos a partir do 3º ciclo do ensino básico e apenas nas localidades onde a situação sanitária é comprovadamente muito grave.
Ponto 2: a recuperação da aprendizagem foi um fiasco (até ao momento). O ministério da educação havia definido que as primeiras cinco semanas de aulas, neste ano lectivo 2020/2021, seriam destinadas à recuperação da aprendizagem. Contudo, entre as limitações impostas pelas regras sanitárias e a falta de professores em centenas de escolas, não houve condições objectivas para as escolas e os professores se dedicarem com a merecida atenção a essa recuperação da aprendizagem — sobretudo, sabendo-se quão profundo foi o dano causado no final do ano lectivo passado. Isto não quer dizer que esteja tudo perdido logo à partida, mas significa que se arrancou o ano lectivo com uma proposta educativa muito aquém das necessidades dos alunos. Isto acrescenta ainda mais responsabilidade a qualquer decisão de nova suspensão do ensino presencial: o dano anterior está longe de ter sido anulado, e um novo golpe no percurso escolar dos alunos somar-se-ia ao atraso que já trazem do final do ano lectivo passado.
Ponto 3: o ensino a distância não funcionou e continuará a não funcionar. A experiência mostrou a ineficácia do ensino à distância entre Março e Junho, que em muitos casos foi uma ausência de escola — por várias razões. Por um lado, foi uma solução de improviso e de emergência, para a qual os professores e as escolas não estavam preparados. Por outro lado, é uma solução que, por definição, é ineficaz em alunos muito jovens ou com dificuldades de aprendizagem, que vão ficando para trás e cada vez mais longe dos seus colegas. Por fim, houve vários factores de exclusão social de alunos, por via da falta de computadores e acesso à internet com larga de banda. Ora, apesar de não se estar hoje ao mesmo nível de impreparação de Março, a situação não é estruturalmente diferente: os professores não tiveram ainda as devidas formações, os computadores ainda não chegaram aos alunos que deles precisam, e os alunos desfavorecidos continuariam em casa sem o apoio específico de que necessitam.
Ponto 4: o ensino à distância só deve ser aplicado excepcionalmente e em períodos temporais muito curtos. Sendo, geralmente, um péssimo substituto do ensino presencial, com todas as consequências educativas e sociais que isso implica, o ensino à distância não pode ser visto como uma solução real para uma espécie de pré-confinamento da população. Se implementado, irá sempre pôr em causa o percurso escolar dos alunos. Como tal, apesar de motivado por razões sanitárias, só se poderá tolerar a adopção do ensino à distância em períodos temporais muito curtos, para não sacrificar a escolaridade e ampliar desigualdades sociais. E, idealmente, nunca antes de o governo assegurar que nenhum aluno ficará prejudicado por falta de equipamento e condições materiais.
Ponto 5: encerrar escolas não tem grande impacto na evolução da pandemia. É uma afirmação que poderá soar contra-intuitiva, mas é uma afirmação consistente com as evidências da investigação já realizada. Essas evidências apontam para que o contágio em espaços escolares seja raro, tanto por virtude das medidas de contingência implementadas nas escolas como pelo facto de as crianças serem, à partida, menos passíveis de contágio do que os adultos. Mais ainda, em muitos países europeus, a linha do tempo da evolução da pandemia não coincide com o encerramento ou a reabertura das escolas — e, em Portugal, por exemplo, os casos começaram a subir para níveis considerados preocupantes ainda durante as férias escolares e antes de as escolas reabrirem. Isto não significa que o impacto seja nulo. Apenas que, sobretudo para os alunos mais novos do ensino básico, as escolas continuam a ser espaços seguros, e que, como medida de combate à pandemia, o seu encerramento não tem uma eficácia proporcional ao dano que causa nas crianças e famílias.
Ponto 6: há que moderar o alarmismo sobre os casos Covid-19 nas escolas e evitar as guerras de números. Com a subida do número de infecções, é também expectável que se intensifique a tensão nas comunidades escolares e aumente a pressão exercida pelos sindicatos de professores. A forma mais eficaz de travar estes alarmismos gerados por dados inconsistentes é ser-se transparente: o ministério da educação deveria publicar regularmente a informação sobre a pandemia nas escolas, indicando as escolas que têm turmas enviadas para casa ou que estão integralmente encerradas (como se faz noutros países europeus).
Ponto 7: não negligenciar (outra vez) a saúde mental das crianças e jovens. No período de Março a Setembro, a saúde mental das crianças e dos jovens ficou nas notas de rodapé do debate público e da discussão de medidas de contingência. Sem surpresa, a investigação existente sugere que a pandemia e o isolamento dos jovens causaram uma deterioração da sua saúde mental, que não deve ser continuamente ignorada. Sobretudo perante um cenário que temos pela frente: vem aí o Inverno, a situação sanitária está a agravar-se, o risco de confinamento é real e todo o novo mal-estar mental causado acrescerá à fadiga já existente. Numa frase: a saúde mental não pode permanecer no ângulo morto das medidas de contenção da pandemia.