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JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

Pré-publicação. O coração rebelde de Arundhati Roy

Apesar de conhecida pelos seus dois romances, Arundhati Roy tem-se dedicado mais à não-ficção e à escrita de ensaios ligados à sua faceta de ativista. Os 6 mais emblemáticos foram reunidos em livro.

Arundhati Roy é conhecida pelos seus dois romances, O Deus das Pequenas Coisas (1997) e O Ministério da Felicidade Suprema (2007), mas é à não-ficção que a escritora indiana tem dado mais atenção. Ativista política e ambiental, a escrita é um dos meios através dos quais se faz ouvir. Os seus ensaios — contra a corrupção no governo indiano,  o nacionalismo hindu, a independência de Caxemira ou os testes nucleares –, já apareceram em diversas publicações internacionais e também em livro.  

A Portugal chegam agora pela primeira vez, numa seleção publicada pela editora ASA. Coração Rebelde, que vai buscar o título a um ensaio sobre o nacionalismo hindu com o mesmo nome, publicado em 2006, reúne seis dos textos mais emblemáticos de Roy, em defesa da ecologia, do indivíduo e da sociedade, da justiça e da liberdade.

Antes da chegada do volume às livrarias nesta terça-feira, 2 de junho, o Observador pré-publica um destes ensaios, “O Fim da Imaginação”, contra o testes nucleares na Índia. O texto publicado originalmente a 27 de julho de 1998 nas revistas Outlook e Frontline. 

A coletânea de ensaios chega às livrarias nesta terça-feira, 2 de junho

O Fim da Imaginação

«O deserto tremeu», informou‐nos o governo da Índia (a nós, seu povo).

«Toda a montanha ficou branca», replicou o governo do Paquistão.

À tarde o vento tinha‐se calado sobre Pokhran. Às 15:45 o temporizador detonou os três engenhos. A cerca de 200 a 300 metros de profundidade, o calor gerado foi equivalente a um milhão de graus centígrados – uma temperatura tão alta como a do Sol. Rochas com cerca de mil toneladas, uma minimontanha subterrânea, vaporizaram‐se instantaneamente… as ondas de choque da explosão começaram a levantar vários metros um monte de terra do tamanho de um campo de futebol. Quando viu aquilo, um cientista disse: «Agora, sim, acredito nas histórias de Crixna a levantar montanhas» (India Today).

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Maio de 1998. Ficará registado nos livros de História, desde que, é claro, haja livros de História. Desde que, é claro, tenhamos futuro. Já não há nada novo ou original a dizer sobre as armas nucleares. Não pode haver nada mais humilhante para um escritor de ficção do que repetir a defesa de uma causa que, ao longo dos anos, já foi feita por outras pessoas, noutras partes do mundo, e feita apaixonadamente, eloquentemente e fundamentadamente.

Estou disposta a rastejar. A humilhar‐me abjetamente, porque, dadas as circunstâncias, o silêncio seria indefensável. Portanto, digo a todos quantos estiverem dispostos a isso: vamos escolher os nossos papéis, envergar essas vestimentas já postas de lado e dizer as nossas falas em segunda mão, nesta velha e triste peça de teatro. Mas não esqueçamos a enormidade do que está em jogo. O nosso cansaço e a nossa vergonha podem significar o nosso fim. O fim dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos. De tudo o que amamos. Temos de procurar dentro de nós e encontrar a força de pensar. De lutar.

Uma vez mais, estamos miseravelmente atrasados – não apenas cientificamente e tecnologicamente (ignorem as proclamações ocas), mas mais pertinentemente na nossa capacidade de captar a verdadeira natureza das armas nucleares. A nossa Compreensão do Departamento do Horror é irremediavelmente obsoleta. Aqui estamos nós todos, na Índia e no Paquistão, a discutir as subtilezas da política e da política externa, portando‐nos absolutamente como se os nossos governos não tivessem feito mais do que inventar uma bomba nova e maior, uma espécie de imensa granada de mão com a qual aniquilarão o inimigo (um ao outro) e nos protegerão de todo o mal. Queremos desesperadamente acreditar nisso. Que gente maravilhosa, disposta, bem‐comportada e crédula nos revelámos. O resto da humanidade (sim, sim, já sei, já sei, mas ignoremo‐los por um instante; há muito tempo que renunciaram ao seu voto na matéria), o resto do resto da humanidade pode não nos perdoar, mas, assim como assim, o resto do resto da humanidade, consoante quem molda as suas opiniões, pode não saber que somos gente cansada, abatida, desconsolada. Talvez não tenha consciência da urgência com que precisamos de um milagre. Quão profundamente ansiamos por um truque de magia.

Se ao menos, ao menos, a guerra nuclear fosse apenas uma nova forma de guerra. Quem dera que respeitasse apenas às coisas do costume – nações e territórios, deuses e histórias. Quem dera que aqueles de entre nós que a temem fossem apenas indignos cobardes morais indispostos a morrer em defesa das suas crenças. Quem dera que a guerra nuclear fosse o género de guerra em que países combatem países e homens combatem homens. Mas não é. Se houver uma guerra nuclear, os nossos inimigos não serão a China ou a América ou sequer um de nós dois. O nosso inimigo será a própria Terra. Os próprios elementos, todos eles – o céu, o ar, o solo, o vento e a água –, se voltarão contra nós. A sua cólera será terrível. As nossas cidades e florestas, os nossos campos e as nossas aldeias arderão durante anos. Os rios transformar‐se‐ão em veneno. Quando tudo o que houver para arder tiver ardido e o fogo morrer, o fumo subirá e ocultará o Sol. A Terra ficará envolta em escuridão. Não haverá dia. Só uma noite interminável. As temperaturas cairão muito abaixo de zero e começará o inverno nuclear. A água tornar‐se‐á gelo tóxico. A radioatividade infiltrar‐se‐á na terra e contaminará os lençóis freáticos. A maior parte dos seres viventes, animais e vegetais, peixes e aves, morrerá. Só ratos e baratas se reproduzirão e se multiplicarão e concorrerão pela pouca comida que houver com os seres humanos sobreviventes em busca de alimentos.

"Que faremos então, aqueles de nós que ainda estiverem vivos? Queimados, cegos, carecas, doentes, carregando nos braços as carcaças cancerosas dos nossos filhos, para onde haveremos de ir? Que haveremos de comer? Que haveremos de beber? Que haveremos de respirar?"

Que faremos então, aqueles de nós que ainda estiverem vivos? Queimados, cegos, carecas, doentes, carregando nos braços as carcaças cancerosas dos nossos filhos, para onde haveremos de ir? Que haveremos de comer? Que haveremos de beber? Que haveremos de respirar?

O chefe do Grupo para Saúde, Ambiente e Segurança do Centro de Investigação Atómica de Bhabha, em Bombaim, tem um plano. Declarou numa entrevista (Pioneer, 24 de abril de 1998) que a Índia pode sobreviver a uma guerra nuclear. O seu conselho é que, se houver uma guerra nuclear, tomemos as mesmas medidas de segurança que os cientistas recomendam para o caso de acidentes em centrais nucleares.

Tomem comprimidos de iodo, sugere ele. E outros passos, como permanecer dentro de casa, consumir apenas água e comida armazenadas e evitar o leite. Às crianças pequenas deve ser dado leite em pó. «As pessoas na zona de perigo devem dirigir‐se imediatamente aos pisos térreos, se possível, às caves.»

Que fazer perante estes níveis de delírio? Que fazer quando nos vemos fechados num hospício e os médicos são todos perigosamente tresloucados?

Esqueçam, é só uma ingenuidade de romancista, dir‐vos‐ão, hipérbole de Profetas da Desgraça. Nunca se chegará a isso. Não haverá guerra. As armas nucleares têm a ver com a paz, não com a guerra. «Dissuasão» é a palavra de ordem das pessoas que gostam de se ver como falcões. (Pássaros simpáticos, esses. Fixes. Estilosos. Predadores. É uma pena que não sobrevivam muitos depois da guerra. «Extinção» é uma palavra a que temos de nos habituar.) A dissuasão é uma velha tese que foi ressuscitada e anda a ser reciclada com sabor local adicionado. A Teoria da Dissuasão açambarcou o crédito de ter impedido que a Guerra Fria se tornasse uma Terceira Guerra Mundial. O único facto imutável a respeito da Terceira Guerra Mundial é que, se vier a haver uma, será travada depois da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, não tem data marcada. Ou seja, ainda temos tempo. E talvez o jogo de palavras (a Terceira Guerra Mundial) seja presciente. A Guerra Fria acabou, é verdade, mas não nos deixemos ludibriar pelos dez anos de trégua no exibicionismo nuclear. Foi só uma piada cruel. Estava só em remissão. Não estava curado. Não prova qualquer teoria. No fim de contas, que são dez anos na história do mundo? Cá está outra vez a doença. Mais espalhada e menos suscetível do que nunca a qualquer tipo de tratamento. Não, a Teoria da Dissuasão tem falhas fundamentais.

A Falha Número Um é presumir uma compreensão completa e sofisticada da psicologia do inimigo. Parte do princípio de que aquilo que nos dissuade (o medo da aniquilação) o dissuadirá a ele. E os que não são dissuadidos por isso? A psique do bombista suicida – a escola do «vamos levá‐los connosco» – será uma ideia assim tão extravagante? Como morreu Rajiv Gandhi?

Em qualquer caso, quem é o «nós» e quem é o «inimigo»? Ambos não passam de governos. Os governos mudam. Usam máscaras por trás das máscaras. Mudam de plumagem e reinventam‐se a todo o momento. Aquele que temos de momento, por exemplo, nem sequer tem lugares suficientes no Parlamento para durar uma legislatura inteira, mas exige que confiemos nele para fazer piruetas e truques de magia com bombas nucleares, enquanto corre de um lado para o outro à procura de um apoio para manter uma maioria simples no Parlamento.

A Falha Número Dois é a dissuasão basear‐se no medo. Mas o medo baseia‐se no conhecimento. Na compreensão da verdadeira extensão e escala da devastação que uma guerra nuclear provocará. Não existe um atributo intrínseco e místico nas bombas nucleares que inspire automaticamente pensamentos de paz. Pelo contrário, é o trabalho de confrontação infindável, incansável, de pessoas que têm tido a coragem de as denunciar abertamente, as marchas, as manifestações, os filmes, a indignação – foi isso que evitou, ou tal‐ vez tenha apenas adiado, a guerra nuclear. A dissuasão não funcionou nem pode funcionar, dados os níveis de ignorância e iliteracia que pendem sobre os dois países como véus densos e impenetráveis. (Veja‐se o Vishwa Hindu Parisha – VHP – a querer distribuir areia radioativa do deserto de Pokhran como prasad por toda a Índia. Um bolinho de cancro?) A Teoria da Dissuasão não passa de uma piada perigosa num mundo em que são prescritas pílulas de tintura de iodo como profilaxia da radiação nuclear.

A Índia e o Paquistão têm agora bombas nucleares e sentem‐se perfeitamente justificados em tê‐las. Outros em breve as terão também. Israel, Irão, Iraque, Arábia Saudita, Noruega, Nepal (estou a tentar ser eclética), Dinamarca, Alemanha, Butão, México, Líbano, Sri Lanka, Birmânia, Bósnia, Singapura, Coreia da Norte, Suécia, Coreia do Sul, Vietname, Cuba, Afeganistão, Usbequistão… e porque não? Todos os países do mundo têm os seus argumentos. Toda a gente tem fronteiras e crenças. E, quando todas as nossas despensas estiverem a rebentar de bombas atómicas e os nossos estômagos vazios (a dissuasão é um animal exorbitante), poderemos trocar bombas por comida. E quando a tecnologia nuclear entrar no mercado, quando se tornar verdadeiramente competitiva e os preços caírem, não serão apenas governos, qualquer pessoa poderá ter o seu próprio arsenal privado – homens de negócios, terroristas, tal‐ vez até um ocasional escritor rico (como eu). O nosso planeta estará a transbordar de lindos mísseis. Haverá uma nova ordem mundial. A ditadura da elite pró‐bomba atómica. Podemos ter o prazer de nos ameaçarmos uns aos outros. Será como o bungee jumping quando não se pode confiar no cabo, ou jogar à roleta russa todo o dia. Uma vantagem adicional será a emoção de Não Saber Em Que Acreditar. Poderemos ser vítimas da imaginação predatória de qualquer charlatão em busca de uma «carta verde» que emerja no Ocidente com histórias inventadas sobre ataques iminentes de mísseis. Poderemos deliciar‐nos com a perspetiva de sermos reféns de qualquer pequeno agitador e fautor de boatos, quanto mais maluco, melhor, a bem dizer vale tudo para ter uma desculpa para fazer mais bombas. De modo que, bem veem, mesmo sem guerra, temos muito por que esperar.

Mas façamos uma pausa para dar o seu a seu dono. A quem temos de agradecer tudo isto?

Aos Homens que tornaram isto realidade. Aos Senhores do Universo. Senhoras e senhores, os Estados Unidos da América! Subam ao palco, meus amigos, ponham‐se de pé e recebam os aplausos. Obrigada por fazerem isto ao mundo. Obrigada por fazerem a diferença. Obrigada por nos mostrarem o caminho. Obrigada por terem alterado o próprio significado da vida.

De hoje em diante, não é de morrer que devemos ter medo, mas de viver.

É de uma suprema insensatez acreditar que as armas nucleares só são mortais quando usadas. A sua simples existência, a sua simples presença nas nossas vidas, causará mais devastação do que somos capazes de imaginar. As armas nucleares permeiam o nosso pensamento. Controlam o nosso comportamento. Administram as nossas sociedades. Informam os nossos sonhos. Enterram‐se profundamente, como ganchos de açougue, na base dos nossos cérebros. São fornecedores de loucura. São o supremo colonizador. Mais brancos do que qualquer homem branco que alguma vez tenha vivido. O verdadeiro coração da brancura.

O mais que posso dizer a todos os homens, mulheres e crianças conscientes aqui, na Índia, e aqui ao lado, bem perto, no Paquistão, é: levem isto a peito. Sejam quem forem – hindus, muçulmanos, urbanos, agrários – não importa. A única coisa boa da guerra nuclear é que é a ideia mais igualitária que o homem alguma vez teve. No Dia do Juízo Final, não nos pedirão que apresentemos as nossas credenciais. A devastação será indiscriminada. A bomba não está no nosso pátio das traseiras, está em nós. No vosso corpo e no meu. Ninguém, nenhuma nação, nenhum governo, nenhum homem, nenhum deus, tem o direito de a pôr lá. Já somos radioativos e a guerra ainda nem sequer começou. Portanto, levantem‐se e digam alguma coisa. Pouco importa que já tenha sido dita. Falem em vosso próprio nome. Tomem‐no muito a peito.

A Bomba e Eu

Em princípios de maio (antes da bomba), estive fora de casa durante três semanas. Pensava voltar. Fazia todas as tenções de voltar. As coisas não correram como eu tinha planeado, é claro. Enquanto estava fora, encontrei uma amiga minha de quem sempre gostei, entre outras coisas, pela sua capacidade de combinar uma profunda afeição com uma franqueza que raia a selvajaria.

«Tenho andado a pensar a teu respeito», disse‐me ela, «a respeito d’O Deus das Pequenas Coisas – do que lá está, do que está por cima, por baixo, em volta, acima…»

Calou‐se por um bom bocado. Fiquei pouco à vontade e não tinha a certeza de querer ouvir o resto do que ela tinha para dizer. Ela, porém, estava certa de que o ia dizer. «Neste último ano (menos de um ano, na verdade), tens tido de tudo em demasia – fama, dinheiro, prémios, adulação, críticas, condenações, ridicularização, amor, ódio, ira, inveja, generosidade –, tudo. Em certo sentido, é uma história perfeita. Perfeitamente barroca nos seus excessos. O problema é que só tem, ou pode ter, um final perfeito.» Tinha os olhos postos em mim, cintilando com um brilho ínvio, inquisitivo. Sabia que eu sabia o que ela ia dizer. Estava doida.

Ia dizer que nada do que me acontecesse no futuro poderia alguma vez igualar a excitação disto. Que o resto da minha vida ia ser vagamente insatisfatório. E, por conseguinte, o único final per‐ feito da minha história seria a morte. A minha morte.

Esse pensamento já me tinha ocorrido também. Claro que tinha. Tudo isto, este deslumbramento global – estas luzes nos meus olhos, os aplausos, as flores, os fotógrafos, os jornalistas a fingirem um profundo interesse na minha vida (e com dificuldade, no entanto, em acertar num único facto), os homens de fato e gravata a bajular‐me, os quartos de banho resplandecentes dos hotéis, com toalhas sem fim –, nada disto era provável tornar a acontecer. Sentir‐lhes‐ia a falta? Tinha ficado a precisar daquilo? Era uma viciada na fama? Teria sintomas de abstinência?

Quanto mais pensava nisso, mais claro se tornava para mim que a fama me mataria se se tornasse a minha condição permanente. Me espancaria até à morte com as suas boas maneiras e higiene. Admito que desfrutei imensamente dos meus próprios cinco minutos de fama, mas principalmente porque foram só cinco minutos. Porque sabia (ou julgava que sabia) que podia ir para casa quando estivesse farta e rir‐me dela. Ficar velha e irresponsável. Comer mangas ao luar. Talvez escrever um par de livros falhados – worstsellers –, para ver o que sentia. Há um ano inteiro que ando aos pinotes pelo mundo, ancorada sempre no pensamento da casa e da vida para as quais voltaria. Ao contrário de todas as perguntas e previsões sobre a minha emigração iminente, era nesse poço que eu bebia. Era o meu sustento. A minha força.

Disse à minha amiga que uma história perfeita era coisa que não havia. Disse‐lhe que, em qualquer caso, ela tinha uma visão externa das coisas, a presunção de que a trajetória da felicidade de uma pessoa, ou, digamos, da sua realização, chegara a um pico (e agora tinha de descer) porque tropeçara acidentalmente no «êxito». Assentava na crença pouco imaginativa de que a riqueza e a fama eram a substância obrigatória dos sonhos de toda a gente.

Viveste tempo demais em Nova Iorque, disse‐lhe eu. Há outros mundos. Outros tipos de sonhos. Sonhos em que o fracasso é viável. Honroso. Às vezes, até digno de se procurar. Mundos em que o reconhecimento não é o único barómetro do brilhantismo ou do valor humano. Conheço e amo muitos guerreiros, pessoas muito mais valiosas do que eu, que todas as manhãs partem para a guerra, sabendo antecipadamente que falharão. São menos «bem‐sucedidas», é verdade, no mais vulgar sentido do termo, mas nem por isso menos realizadas.

"O único sonho digno de ser acalentado, disse‐lhe eu, é sonhar que viveremos enquanto estivermos vivos e só morreremos quando morrermos. (Presciência? Talvez.)"

O único sonho digno de ser acalentado, disse‐lhe eu, é sonhar que viveremos enquanto estivermos vivos e só morreremos quando morrermos. (Presciência? Talvez.)

«E isso quer dizer exatamente o quê?» (Sobrolhos arqueados, um bocadinho irritada.)

Tentei explicar, mas não me saí muito bem. Às vezes, tenho de escrever para pensar. De modo que lho escrevi num guardanapo de papel. Eis o que escrevi: Amar. Ser amado. Nunca esquecer a nossa própria insignificância. Nunca nos habituarmos à indizível violência e à grosseira disparidade da vida que nos rodeia. Procurar alegria nos lugares mais tristes. Perseguir a beleza até ao seu covil. Nunca simplificar o que é complicado nem complicar o que é simples. Respeitar a força, nunca o poder. Acima de tudo, observar. Tentar compreender. Nunca voltar a cara. E nunca por nunca esquecer.

Conheço‐a há muitos anos, a esta minha amiga. Também é arquiteta.

Pareceu dubitativa, pouco convencida pelo meu discurso do guardanapo de papel. Percebi muito bem que estruturalmente, apenas em termos da elegante simetria narrativa das coisas e porque gostava de mim, o seu entusiasmo com o meu «êxito» era tão intenso, tão generoso, que pesava no seu horror (antecipado) à ideia da minha morte. Entendi que não era nada pessoal. Apenas uma questão de design.

De qualquer maneira, duas semanas após esta conversa, regressei à Índia. Ao que penso/pensava ser a minha casa. Tinha morrido alguma coisa, mas não fora eu. Era infinitamente mais precioso. Era um mundo que estava mal de saúde havia já uns tempos e finalmente exalara o último suspiro. Já foi cremado. O ar apesta de fealdade e há na brisa o fedor inconfundível do fascismo.

Dia após dia, em editoriais jornalísticos, na rádio, nos programas de televisão, na MTV – por amor de Deus! –, gente em cujos instintos uma pessoa pensava poder confiar – escritores, pintores, jornalistas – faz a travessia. O frio penetra‐me nos ossos à medida que se torna dolorosamente evidente, nas lições do quotidiano, que o que se lê nos livros de História é verdade. Que o fascismo tem efetivamente tanto a ver com as pessoas como com os governos. Começa em casa. Nas salas de estar, nos quartos. Nas camas. «Explosão de Autoestima», «A Caminho do Ressurgimento», «Momento de Orgulho», são os cabeçalhos dos jornais nos dias seguintes aos testes nucleares. «Provámos que já não somos eunucos», disse o Sr. Thackeray, do partido Shiv Sena. (Quem disse que o éramos? Muitos de nós são mulheres, é verdade, mas, tanto quanto sei, não é a mesma coisa.) Lendo os jornais, era muitas vezes difícil de dizer quando as pessoas falavam do Viagra (que competia pelo segundo lugar nas primeiras páginas) e quando falavam da bomba: «Temos força e potência superiores.» (Palavras do nosso ministro da Defesa, depois de o Paquistão ter completado os seus testes.)

«Isto não são testes nucleares, são testes de nacionalismo», diziam‐nos repetidamente.

Isto tem‐nos sido martelado aos ouvidos, uma e outra vez. A bomba é a Índia. A Índia é a bomba. Não simplesmente a Índia, mas a Índia hindu. Por conseguinte, considerem‐se avisados, qual‐ quer crítica a essa Índia é, além de antinacional, anti‐hindu. (No Paquistão, é claro, a bomba é islâmica. Fora isso, politicamente, aplicam‐se as mesmas leis físicas.) É uma das vantagens inesperadas de ter uma bomba nuclear. O governo pode usá‐la quer para incutir medo ao inimigo, quer para declarar guerra ao seu próprio povo. Nós.

Em 1975, um ano após a Índia ter molhado os pés pela primeira vez no mar nuclear, a Sr.a Gandhi declarou a Emergência. Que nos trará 1999? Fala‐se da corrente organização de células para monitorizar atividades antinacionais. Fala‐se de emendar as leis da televisão por cabo, para banir canais que «lesem a cultura nacional» (Indian Express, 3 de julho). De igrejas riscadas da lista de lugares religiosos porque «é servido vinho» (anunciado e desmentido, Indian Express, 3 de julho; Times of India, 4 de julho). Artistas, escritores, atores e cantores andam a ser perseguidos e ameaçados (e a sucumbir às ameaças). Não apenas por esquadrões de sicários, mas por instrumentos do governo. E nos tribunais. Há cartas e artigos a circularem na Internet, interpretações criativas das profecias de Nostradamus pretendendo que está para emergir uma poderosa e avassaladora nação hindu – uma Índia ressurgente que «irromperá sobre os seus antigos opressores e os destruirá completamente». Que «o início da terrível vingança (que varrerá todos os muçulmanos) será no sétimo mês de 1999». Isto pode muito bem ser obra de algum maluco solitário ou de um punhado de esotéricos esquadrões de Deus. O problema é que ter uma bomba nuclear viabiliza pensamentos como estes. Cria pensamentos como estes. Dá às pessoas estas ideias absolutamente deslocadas, absolutamente mortais, do seu próprio poder. Está a acontecer. Está tudo a acontecer. Gostava de poder dizer que está a acontecer paulatina‐ mente, mas não posso. As coisas estão a mover‐se a um ritmo bastante acelerado.

Porque é que tudo isto parece tão familiar? Será porque, mesmo enquanto a observamos, a realidade se dissolve e se transforma sem cisão nas imagens a preto e branco de velhos filmes – cenas de pessoas empurradas para fora das suas vidas, presas e arrebanhadas para os campos? De massacre, de violência, de intermináveis colunas de gente alquebrada que se dirige para parte nenhuma? Porque é que não há banda sonora? Porque está a sala tão silenciosa? Terei andado a ver filmes a mais? Estarei doida? Ou tenho razão? Podem essas imagens ser a culminação inevitável do que pusemos em movimento? Poderá o nosso futuro estar a empurrar‐nos velozmente para o passado? Acho que sim. A não ser, é claro, que a guerra nuclear resolva o assunto de uma vez para sempre.

Quando disse aos meus amigos que estava a escrever este texto, preveniram‐me. «Avança», disseram‐me, «mas primeiro certifica‐te de que não és vulnerável. Certifica‐te de que tens todos os documentos em ordem. Certifica‐te de que tens os impostos em dia.»

Os meus documentos estão em ordem. Os meus impostos estão pagos. Mas como pode uma pessoa não ser vulnerável num clima como este? Toda a gente é vulnerável. Os acidentes acontecem. Só há segurança na aquiescência. Escrevo cheia de maus pressentimentos. Neste país, conheci verdadeiramente o que significa um escritor sentir‐se amado (e, em certa medida, odiado também). No ano passado, fui um dos itens passeados na Parada do Orgulho Nacional que os media organizam no fim do ano. Entre os outros, para minha grande mortificação, contavam‐se um fabricante de bombas e uma rainha de beleza internacional. Cada vez que uma pessoa sorridente me parava na rua e me dizia «encheu a Índia de orgulho» (referindo‐se ao prémio que ganhei, não ao livro que escrevi), sentia‐me um bocadinho desconfortável. Assustava‐me então e aterroriza‐me hoje, porque sei como é fácil que essa onda, essa maré de entusiasmo, se volte contra mim. Esse momento talvez tenha chegado. Vou sair de debaixo das luzinhas cintilantes e dizer o que me vai na alma.

"Sou uma cidadã do mundo. Não possuo território. Não tenho bandeira. Sou mulher, mas não tenho nada contra os eunucos. A minha política é simples. Estou disposta a assinar qualquer tratado de não‐proliferação nuclear ou de proibição de testes nucleares que apareça."

É isto:

Se protestar contra ter uma bomba nuclear implantada no meu cérebro é anti‐hindu e antinacional, então eu entro em secessão. Venho, por este meio, proclamar‐me uma república independente e móvel. Sou uma cidadã do mundo. Não possuo território. Não tenho bandeira. Sou mulher, mas não tenho nada contra os eunucos. A minha política é simples. Estou disposta a assinar qualquer tratado de não‐proliferação nuclear ou de proibição de testes nucleares que apareça. Os imigrantes são bem‐vindos. Podem ajudar‐me a desenhar a nossa bandeira.

O meu mundo morreu. E escrevo para carpir o seu passamento.

Era, reconheço, um mundo imperfeito. Um mundo inviável. Um mundo ferido e cruzado de cicatrizes. Era um mundo que eu própria critiquei sem piedade, mas só porque o amava. Não merecia morrer. Não merecia ser desmembrado. Desculpem‐me, tenho consciência de que o sentimentalismo não é fixe – mas que hei de fazer com a minha desolação?

Amava‐o simplesmente porque oferecia à humanidade uma escolha. Era uma rocha no meio do oceano. Era uma teimosa fresta de luz que insistia em que havia uma maneira diferente de viver. Era uma possibilidade funcional. Uma verdadeira opção. Tudo isso desapareceu. Os testes nucleares da Índia, o modo como foram conduzidos, a euforia com que foram saudados (por nós) são indefensáveis. Para mim, significam coisas temíveis. O fim da imagina‐ ção. O fim da liberdade, de facto, porque, afinal, a liberdade é isso. Escolha.

A 15 de agosto do ano passado, comemorámos o quinquagésimo aniversário da independência da Índia. Em maio, podemos assinalar o nosso primeiro aniversário de escravidão nuclear.

Porque é que o fizeram? Conveniência política é a resposta óbvia e cínica, exceto que só serve para levantar outra pergunta, mais básica: porque haveria de ser politicamente conveniente?

As três Razões Oficiais que foram dadas são: China, Paquistão e Expor a Hipocrisia Ocidental.

Tomadas à letra, e analisadas individualmente, são um tanto desconcertantes. Não estou nem por um momento a sugerir que estes não sejam verdadeiros problemas. Meramente que não são novos. A única coisa nova no velho horizonte é o governo indiano. Na sua carta espantosamente displicente ao Presidente dos Estados Unidos (para quê escrever‐lhe sequer, se é para escrever uma coisa assim?), o nosso primeiro‐ministro diz que a decisão da Índia de avançar com os testes nucleares se deveu a um «ambiente que se está a deteriorar em matéria de segurança». Prossegue mencionando a guerra com a China em 1962 e «as três agressões que sofremos por parte do Paquistão nos últimos 50 anos. E nos últimos dez anos temos sido vítimas de um terrorismo incessante e de uma militância patrocinados por ele […] especialmente no Jamu e Caxemira».

A guerra com a China foi há 35 anos. A não ser que haja algum vital segredo de Estado que não conheçamos, parece que as coisas entre nós melhoraram ligeiramente. Poucos dias antes dos testes nucleares, o general Fu Quanyou, chefe do Estado‐Maior‐General do Exército Popular da China, foi convidado do nosso chefe do Estado‐Maior do Exército. Não ouvimos nenhumas palavras de guerra.

A nossa mais recente guerra com o Paquistão foi travada há 27 anos. É certo que Caxemira continua a ser uma região profunda‐ mente perturbada e o Paquistão atiça, sem dúvida, as chamas com regozijo. Mas tem mesmo de haver chamas que atiçar? Está a lenha realmente a estalar e pronta a arder? Pode o Estado indiano com um módico de honestidade que seja absolver‐se completamente de dar uma ajuda na agitação de Caxemira? De Caxemira e, já agora, de Assam, Tripura, Nagaland – praticamente todo o Nordeste –, Jharkand, Uttarakhand, e todos os problemas que ainda estão para vir são sintomas de um mal‐estar mais profundo. Não pode ser e não será resolvido apontando mísseis nucleares ao Paquistão.

Nem sequer o Paquistão pode ser resolvido apontando mísseis nucleares ao Paquistão. Embora sejamos países separados, partilhamos céus, partilhamos ventos, partilhamos água. É a direção do vento e da chuva que dita onde a poeira radioativa aterrará. Lahore e Amritsar ficam a 50 quilómetros de distância. Se bom‐ bardearmos Lahore, o Punjabe arderá. Se bombardearmos Carachi, então o Guzarate e o Rajastão, talvez mesmo Bombaim, arderão. Qualquer guerra nuclear com o Paquistão será uma guerra contra nós mesmos.

Quanto à Terceira Razão Oficial: Expor a Hipocrisia Ocidental. Será possível expô‐la mais? Que ser humano decente nesta Terra alberga quaisquer ilusões a seu respeito? Falamos de pessoas cujas histórias estão impregnadas do sangue alheio. Colonialismo, apartheid, escravatura, limpeza étnica, guerra bacteriológica, armas químicas – inventaram praticamente tudo. Pilharam nações, liquidaram civilizações, exterminaram populações inteiras. Estão na cena mundial em pelota, mas inteiramente à vontade, porque sabem que têm mais dinheiro, mais comida e bombas maiores do que os outros. Sabem que nos podem varrer do mapa no decurso de um dia normal de trabalho. Eu diria que é mais arrogância do que hipocrisia.

Nós temos menos dinheiro, menos comida e bombas mais pequenas. Temos, ou tivemos, porém, toda a espécie de outras riquezas. Deliciosas, não quantificáveis. O que fizemos com elas é o oposto do que pensamos que fizemos. Empenhámos tudo. Demos para a troca. Em nome de quê? Para entrarmos num contrato com as próprias pessoas que alegamos desprezar. No quadro mais amplo das coisas, concordámos em jogar o jogo delas e jogá‐lo à maneira delas. Aceitámos os seus termos e condições sem discussão. O Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares não é nada comparado com isto.

"A 15 de agosto do ano passado, comemorámos o quinquagésimo aniversário da independência da Índia. Em maio, podemos assinalar o nosso primeiro aniversário de escravidão nuclear."

Tudo considerado, acho que é justo dizer que os hipócritas somos nós. Fomos nós quem abandonou o que se podia considerar uma posição moral, isto é: temos a tecnologia, podemos fabricar as bombas se quisermos, mas não o faremos. Não acreditamos nelas.

Somos agora, afinal, aqueles que lançaram esse clamor servil para sermos admitidos no clube das superpotências. (Se formos, bateremos sem dúvida com a porta atrás de nós e mandaremos para o diabo os princípios do combate a Ordens Mundiais Discrimina‐ tórias.) A Índia exigir o estatuto de superpotência é tão ridículo como exigir jogar na final do Campeonato do Mundo de Futebol só por ter uma bola. Pouco importa que não nos tenhamos qualificado ou que não joguemos muito futebol e nem sequer tenhamos seleção.

Já que decidimos entrar na arena, pode ser boa ideia começar por aprender as regras do jogo. A Regra Número Um é Reconhecer os Mestres. Quem são os melhores jogadores? Os que têm mais dinheiro, mais comida, mais bombas.

A Regra Número Dois é Situarmo‐nos em Relação a Eles, isto é: fazer uma avaliação honesta da nossa posição e capacidades. A avaliação honesta de nós mesmos (em termos quantificáveis) é como segue:

Somos uma nação de cerca de mil milhões de pessoas. Em termos de desenvolvimento, estamos classificados no 138.o lugar entre os 175 países listados no Índice de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Mais de 400 milhões de indianos são iletrados e vivem numa absoluta pobreza, mais de 600 milhões carecem mesmo de saneamento básico e mais de 200 milhões não têm água potável.

De modo que, tomadas individualmente, nenhuma das três Razões Oficiais se sustenta. No entanto, se ligarmos as três, surge uma espécie de lógica retorcida. Tem mais a ver com eles do que connosco.

As palavras cruciais da carta do nosso primeiro‐ministro ao Presidente dos Estados Unidos foram «sofrido» e «vítima». É essa a substância da questão. É disso que vivemos. Precisamos de nos sentir vítimas. Precisamos de nos sentir sitiados. Precisamos de inimigos. Temos tão pouco sentido de nós mesmos como nação, que procuramos constantemente alvos contra os quais nos definirmos. A sabedoria política prevalecente sugere que, para evitar que o Estado se desmorone, precisamos de uma causa nacional, e fora a nossa moeda (e, claro, a pobreza, a iliteracia e as eleições), não temos nenhuma. É esse o nó da questão. Foi esse caminho que nos conduziu à bomba. Essa busca de individualidade. Se estamos à procura de uma saída, precisamos de respostas sinceras a algumas perguntas incómodas. Uma vez mais, não é que essas perguntas não tenham sido já feitas. É só que preferimos balbuciar as respostas e esperar que ninguém as ouça.

Haverá uma coisa chamada identidade indiana?

Precisamos realmente dela?

Quem é e quem não é um autêntico indiano?

Será a Índia indiana?

Tem alguma importância?

Se existiu ou não alguma vez uma civilização única que possa dizer‐se «Civilização Indiana», se foi ou não a Índia, ou se virá alguma vez a tornar‐se uma entidade cultural coesa, depende de nos recrearmos nas diferenças ou semelhanças nas culturas das pessoas que habitem desde há séculos o subcontinente. A Índia, como Estado‐nação moderno, foi definida com fronteiras geográficas precisas, de maneira geográfica precisa, por uma Lei Parlamentar britânica de 1899. O nosso país, tal como o conhecemos, foi forjado na bigorna do Império Britânico pelas razões inteiramente práticas do comércio e da administração. Mas, assim que nasceu, começou a sua luta contra os seus criadores. De modo que será a Índia indiana? É uma pergunta difícil. Digamos apenas que somos um povo antigo que está a aprender a viver numa nação recente.

A verdade é que a Índia é um Estado artificial – um Estado criado por um governo, não por um povo. Um Estado criado de cima para baixo, não a partir de baixo. A maioria dos cidadãos da Índia não é capaz (ainda hoje) de identificar num mapa as suas fronteiras ou de dizer que língua é falada onde ou que deus é venerado em que região. Na sua maior parte, são pobres demais e ignorantes demais para terem sequer uma ideia elementar da extensão e da complexidade do seu próprio país. A maioria rural e iletrada não tem qualquer interesse no Estado. E, na verdade, porque haveria de ter, como pode tê‐lo, quando nem sequer sabe o que é o Estado? Para essas pessoas, a Índia é, no melhor dos casos, um slogan barulhento que aparece por altura das eleições. Ou uma invenção da gente dos programas de televisão do governo que veste trajes regionais e diz «Mera Bharat Mahaan» (A Minha Índia é Grande).

As pessoas que têm interesse vital (ou, mais pertinentemente, um interesse comercial) em que a Índia tenha uma identidade nacional única, lúcida e coesa são os políticos que constituem os nossos partidos políticos nacionais. Não é preciso procurar a razão muito longe, é simplesmente porque a sua luta, o seu objetivo de carreira, é – e tem, necessariamente, de ser – tornar‐se essa identidade. Serem identificados com essa identidade. Se ela não existir, têm de a fabricar e persuadir o povo a votar por ela. Não é culpa deles. Faz parte do território. É inerente à natureza do nosso sistema de governo centralizado. Um defeito congénito do nosso tipo particular de democracia. Quanto maior o número de pessoas iletradas, quanto mais pobre o país e quanto mais falidos moralmente os políticos, mais grosseiras são as ideias do que essa identidade deveria ser. Numa situação como esta, a iliteracia não é só triste, é francamente perigosa. No entanto, sejamos justos, cozinhar uma «identidade nacional» viável e pré‐digerida para a Índia seria um desafio temível mesmo para sábios e visionários. Qualquer cidadão indiano poderia, se ele ou ela quisesse, reivindicar a pertença a esta ou aquela minoria. As fissuras, se as procurarmos, são verticais e horizontais, são em camadas, circulares, em espiral, de dentro para fora e de fora para dentro. Quando são ateados, os fogos lavram ao longo de qualquer desses cismas e, de caminho, libertam tremendas explosões de energia política. Muito parecidas com o que acontece quando se fissiona um átomo.

Foi esta energia que Gandhi procurou canalizar quando esfregou a lâmpada mágica e convidou Rama e Rahim a participar na política humana e na guerra de independência da Índia contra os britânicos. Foi uma luta sofisticada, magnífica e imaginativa, mas o seu objetivo era simples e lúcido, o alvo altamente visível, fácil de identificar e suculento de pecado político. Naquelas circunstâncias, a energia encontrou um foco fácil. O problema é que as circunstâncias mudaram completamente agora, o génio saiu da lâmpada e não volta a entrar lá para dentro. (Podia ser enviado de volta, mas ninguém quer que se vá embora, revelou‐se útil demais.) Sim, conquistou‐nos a liberdade. Mas também a carnificina da Partição. E, agora, nas mãos de estadistas menores, também nos deu a Bomba Atómica Hindu.

Para sermos justos com Gandhi e outros líderes do Movimento Nacional, temos de reconhecer que não tinham o benefício da visão retrospetiva e não podiam saber quais seriam as últimas consequências, a longo prazo, da sua estratégia. Não podiam ter previsto a rapidez com que a situação ia descarrilar. Não podiam ter previsto o que aconteceria quando as suas tochas acesas passassem para as mãos dos seus sucessores e como essas mãos seriam venais.

Foi Indira Gandhi quem iniciou o verdadeiro deslizamento. Foi ela quem fez do génio um permanente Hóspede do Estado. Injetou o veneno nas nossas veias políticas. Inventou o nosso tipo local, e particularmente vil, de oportunismo político. Mostrou‐nos como conjurar inimigos do nada, disparar contra fantasmas que moldou cuidadosamente para esse mesmo efeito. Foi ela quem descobriu as vantagens de nunca enterrar os mortos, mas sim preservar as suas carcaças pútridas e ir buscá‐las para remexer em velhas feridas, quando lhe convinha. Ela e os filhos conseguiram pôr o país de joelhos. O nosso novo governo limitou‐se a dar‐nos a volta a pontapé e pôr‐nos as cabeças no cepo.

"Foi Indira Gandhi quem iniciou o verdadeiro deslizamento. Foi ela quem fez do génio um permanente Hóspede do Estado. Injetou o veneno nas nossas veias políticas. Inventou o nosso tipo local, e particularmente vil, de oportunismo político. Mostrou‐nos como conjurar inimigos do nada, disparar contra fantasmas que moldou cuidadosamente para esse mesmo efeito."

O Bharatiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano) é, em certo sentido, um espetro que Gandhi e o Congresso criaram. Ou, se quisermos ser menos severos, um espetro que se alimentou e se criou nos espaços políticos e na suspeita comunitária que o Congresso nutriu e cultivou. Deu uma nova face às políticas de governo. Enquanto fazia jogos ocultos com políticos e seus partidos, a Sr.a Gandhi reservava uma estridente retórica de colégio de freiras, repleta de platitudes estafadas, para se dirigir ao grande público. O BJP, por seu lado, preferiu atear os seus fogos diretamente nas ruas e nas casas e nos corações das pessoas. Está disposto a fazer à luz do dia o que o Congresso só faz de noite. A legitimar o que era considerado inaceitável (mas feito na mesma). Há aqui, talvez, um frágil argumento em favor da hipocrisia. Poderia a hipocrisia do Partido do Congresso, o facto de conduzir os seus malfadados assuntos sub‐repticiamente em vez de abertamente, significar que há uma minúscula fagulha de sentimento de culpa algures? Algum fragmentozinho de decência lembrada?

Na verdade, não.

Não.

Que estou eu a fazer? Porque estou à procura de resíduos de esperança?

A maneira como tem funcionado – no caso da demolição da Babri Masjid, bem como no do fabrico da bomba nuclear – é que o Congresso planta as sementes e cuida da cultura e depois o BJP avança e faz a apanha da horrenda colheita. Valsam juntos, presos nos braços um do outro. São inseparáveis, a despeito das diferenças que professam. Trouxeram‐nos ambos aqui, a este terrível, terrível lugar.

Os jovens trocistas e vociferantes que deitaram abaixo a Babri Masjid são os mesmos cujos retratos apareceram nos jornais nos dias que se seguiram aos ensaios nucleares. Estavam nas ruas, celebrando a bomba atómica indiana e, simultaneamente, «condenando a cultura ocidental» despejando grades de Coca‐Cola e Pepsi nas sarjetas. Fico um tanto desconcertada com a lógica deles: a Coca‐Cola é Cultura Ocidental, mas a bomba atómica é uma velha tradição indiana?

Sim, já ouvi – a bomba está nos Vedas. Pode ser, mas, se pro‐ curarmos com suficiente afinco, também encontraremos Coca‐Cola nos Vedas. É o melhor de todos os textos religiosos. Pode encontrar‐se lá qualquer coisa que se queira – desde que saibamos de que andamos à procura.

Mas, para voltar ao assunto dos anos 1990 não‐védicos: assaltamos o coração da brancura, abraçamos a mais diabólica criação da ciência ocidental e chamamos‐lhe nossa. Mas protestamos contra a sua música, a sua comida, a sua roupa, o seu cinema e a sua literatura. Não é hipocrisia. É humor.

Suficientemente engraçado para fazer uma caveira sorrir.

Estamos de regresso ao velho navio. O SS Autenticidade e Indianidade.

Se vai haver uma campanha pró‐autenticidade/antinacional, talvez o governo devesse apresentar uma história coerente e os factos corretos. Se o vão fazer, mais vale que o façam como deve ser.

Antes de mais nada, os habitantes originais destas terras não foram hindus. Houve seres humanos na Terra antes de haver hinduísmo, por muito antigo que este seja. Os adivasis da Índia têm mais direito do que ninguém a proclamar‐se indígenas desta terra e como são tratados pelo Estado e pelos seus esbirros? Oprimidos, enganados, espoliados das suas terras, escorraçados de um lado para o outro, como mercadorias excedentárias. Talvez se devesse começar por lhes restaurar a dignidade que em tempos foi deles. Talvez o governo pudesse assumir o compromisso público de que não serão construídas mais barragens como a de Sardar Sarovar no rio Narmada, de que não serão deslocadas mais pessoas.

Mas, é claro, isso seria inconcebível, não seria? Porquê? Porque não é prático. Porque os adivasis não importam realmente. As suas histórias, os seus costumes, as suas divindades são dispensáveis. Têm de aprender a sacrificar essas coisas a bem da nação (que lhes arrebatou tudo o que tinham).

Muito bem, isso nem pensar.

Quanto ao resto, eu podia compilar uma lista prática de coisas a banir e de edifícios a destruir. Exigirá alguma investigação, mas, assim de repente, eis algumas sugestões.

Podiam começar por proibir alguns ingredientes da nossa culinária: a pimenta (México), os tomates (Peru), as batatas (Bolívia), o café (Marrocos), o chá, o açúcar branco e a canela (China)… e depois passar às receitas. O chá com leite e açúcar, por exemplo (Grã‐Bretanha).

Fumar está fora de questão. O tabaco veio da América do Norte.

O críquete, inglês, e a democracia devem ser proibidos. Tanto o kabbaddi como o kho‐kho podiam substituir o críquete. Não quero causar um tumulto, por isso hesito em sugerir um substituto para a língua inglesa (italiano…? Chegou‐nos por um caminho mais amável: o casamento, não o imperialismo). Já analisámos (atrás, neste ensaio) a nascente alternativa, aparentemente aceitável, à democracia.

Todos os hospitais em que se pratica ou é prescrita a medicina ocidental devem ser encerrados. Todos os jornais nacionais, interrompidos. Os caminhos de ferro, desmantelados. Os aeroportos, fechados. E o nosso brinquedo mais recente, o telefone móvel? Podemos viver sem ele ou devo sugerir que abram aqui uma exceção? Podiam pê‐lo na coluna marcada «universal». (Só bens essenciais serão incluídos nela. Nada de música, arte ou literatura.)

Escusado será dizer que mandar os filhos para a universidade nos Estados Unidos e corrermos para lá para fazer uma operação à próstata seriam delitos previstos e punidos.

A campanha de demolição de edificações podia começar com o Rashtrapati Bhavan e alastrar gradualmente das cidades para o campo, culminando na destruição de todos os monumentos (mesquitas, igrejas, templos) construídos na terra que era dos adivasis ou era floresta.

Será uma longa, longa lista. Levaria anos de trabalho. Eu não poderia usar um computador, porque isso não seria muito autêntico da minha parte, ou seria?

Não quero armar‐me em engraçadinha, tão‐só apontar que isto é seguramente um atalho para o inferno. Uma Índia Autêntica ou um Verdadeiro Indiano é coisa que não existe. Não há nenhum Comité Divino que tenha o direito de sancionar uma única versão autorizada do que a Índia é ou deveria ser. Não há nenhuma religião, língua, casta, região, pessoa, história ou livro que possa reivindicar ser o seu único representante. Há, e só pode haver, visões da Índia, várias maneiras de a ver – honestas, desonestas, maravilhosas, absurdas, modernas, tradicionais, masculinas, femininas. Podem ser discutidas, criticadas, elogiadas, troçadas, mas não banidas nem destruídas. Não perseguidas.

"Não quero armar‐me em engraçadinha, tão‐só apontar que isto é seguramente um atalho para o inferno. Uma Índia Autêntica ou um Verdadeiro Indiano é coisa que não existe."

Vituperar o passado não nos curará. A História já aconteceu. É assunto arrumado. A única coisa que podemos fazer é mudar o seu curso encorajando aquilo que amamos em vez de destruir o que não amamos. Ainda há beleza neste nosso mundo brutal e deteriorado. Escondida, feroz, imensa. A beleza que é só nossa e a beleza que recebemos gratamente de outros, valorizada, reinventada e tornada nossa. Temos de a procurar, de a nutrir, de a amar. Fazer bombas só nos destruirá. Não importa se as usamos ou não. Destruir‐nos‐ão de uma maneira ou doutra.

A bomba nuclear indiana é o derradeiro ato de traição de uma classe dominante que falhou ao seu povo.

Por muitas grinaldas que amontoemos sobre os nossos cientistas, por muitas medalhas que lhes prendamos ao peito, a verdade é que é muito mais fácil fazer uma bomba do que educar 400 milhões de pessoas.

A crer nas sondagens de opinião, existe um consenso nacional sobre a questão. Agora é oficial. Toda a gente adora a bomba. (Por conseguinte, a bomba é boa.)

Será possível que um homem que não sabe sequer escrever o seu nome compreenda a natureza das armas nucleares, mesmo os mais elementares e básicos? Alguém lhe disse que a guerra nuclear não tem nada a ver com as ideias recebidas sobre a guerra? Nada a ver com a honra, nada a ver com o orgulho? Alguém se deu ao trabalho de lhe explicar as explosões termais, a poeira radioativa e o inverno nuclear? Há sequer palavras na sua língua para descrever os conceitos de urânio enriquecido, de material físsil e de massa crítica? Ou a sua língua tornou‐se, ela própria, obsoleta? Está preso numa cápsula de tempo, a ver o mundo passar por ele, incapaz de o perceber ou comunicar com ele porque a sua língua nunca tomou em conta os horrores que a raça humana sonharia? Este homem não interessa nada? Havemos de o tratar como uma qualquer espécie de cretino? Se fizer alguma pergunta, é enchê‐lo de comprimi‐ dos de iodo e de parábolas sobre como Crixna levantou uma montanha ou como a destruição de Lanka por Hanuman era inevitável, a fim de preservar a virtude de Sita e a reputação de Rama? Usar as suas belas histórias como armas contra ele? Deveremos libertá‐lo da sua cápsula só enquanto duram as eleições e, uma vez que votou, apertar‐lhe a mão, lisonjeá‐lo com umas tretas sobre a Sabedoria do Homem Comum e mandá‐lo logo de volta para lá?

Não estou a falar de um só homem, é claro, estou a falar de milhões e milhões de pessoas que vivem neste país. Esta terra também é delas, sabem? Elas têm o direito de tomar decisões informa‐ das acerca do seu destino e, tanto quanto posso dizer, ninguém as informou de coisa nenhuma. A tragédia é que ninguém o poderia fazer, mesmo que quisesse. Não há verdadeiramente, literalmente, nenhuma língua em que o fazer. Esse é o real horror da Índia. As órbitas dos poderosos e dos que não têm poder giram cada vez mais longe uma da outra, nunca se intercetando, nada partilhando. Nem uma língua. Nem sequer um país.

Quem diabo conduziu aquelas sondagens de opinião? Quem diabo é o primeiro‐ministro para decidir que dedo vai estar no botão nuclear que pode transformar instantaneamente em cinzas tudo aquilo que amamos – a nossa terra, os nossos céus, as nossas montanhas, os nossos rios, as nossas cidades e aldeias? Quem diabo é ele para nos garantir que não haverá acidentes? Como é que sabe? Porque havemos de confiar nele? Que fez ele alguma vez para nos merecer essa confiança? Que fez alguma vez algum deles para que confiemos neles?

A bomba nuclear é a coisa mais antidemocrática, antinacional, anti‐humana, absolutamente perversa que o homem já fez.

Se o leitor é religioso, lembre‐se de que esta bomba é um desafio do Homem a Deus.

Diz‐se em poucas palavras: temos o poder de destruir tudo aquilo que Deus criou.

Se não é religioso, então olhe a questão desta maneira: este nosso mundo tem 4600 milhões de anos.

Pode acabar numa tarde.

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