Há alguns sinais de que um espião é “perfeito”, ou pelo menos quase perfeito, como Richard Sorge é apresentado no título do livro biográfico escrito sobre ele por Owen Matthews — um escritor, historiador e jornalista britânico que é também um conhecedor profundo da história contemporânea da Rússia.
Ser-se um espião comunista ao serviço da União Soviética mas ter-se num jantar de despedida, antes de se sair da Alemanha rumo ao Japão, nem mais nem menos do que Joseph Goebbels a desejar boa viagem talvez seja um desses sinais de que na duplicidade exigida aos espiões, Sorge era mestre.
Nascido em Baku com ascendência russa e germânica — a duplicidade vinha de trás — mas tendo crescido na Alemanha e servido na I Guerra Mundial, Richard Sorge foi muitas coisas ao longo da vida, como escreve Matthews neste livro: um “comunista idealista”, um “mentiroso cínico”, um “pedante”, um “bêbado”, um “mulherengo” (conta quem o conheceu que o charme era quase insuperável), um indisciplinado que até a Estaline chegou a desobedecer, um fanfarrão que se passava por nazi arrogante para ajudar a URSS mas que só no nazismo precisava de se dissimular.
Na China, onde esteve entre 1930 e finais de 1932, passou por jornalista especialista em agricultura. Mas foi no Japão, onde chegou em 1933 e onde morreu enforcado em 1944, que os seus feitos de espião o tornaram merecedor de biografias.
Durante anos a fio, Richard Sorge foi uma figura única no Japão, adorado pelos diplomatas alemães, conhecedor único dos intrincados meandros da política japonesa e das informações para ali enviadas pelo regime alemão, coordenador de uma rede de informadores comunistas no país.
Os dotes de espionagem permitiram-lhe, por exemplo, dar à União Soviética detalhes do plano de Hitler para atacar a URSS — e sem esses detalhes teria sido bem mais difícil derrotar e prever o modo de ação da Alemanha Nazi na II Guerra Mundial. Possibilitaram-lhe também em setembro de 1941 perceber que, ao contrário do que o regime comunista temia, não estava nos planos japoneses um ataque breve e declarado a Estaline.
Nazi por fora — com cartão de militante e tudo, claro — e comunista por dentro, enganou tudo e todos durante anos a fio nos corredores alemães e nos círculos de poder no Japão. Só não conseguiu evitar ser detido por espionagem em outubro de 1941, tendo sido depois torturado, forçado a confessar os crimes, condenado e enforcado em novembro de 1944.
Apesar da vida dedicada à causa comunista, apesar da informação valiosíssima que cedeu à URSS, o seu perfil indisciplinado e imprevisível levantou sempre reservas na cúpula soviética. Estaline nada fez para o resgatar e só mais tarde, já nos anos 60, Sorge foi agraciado com a mais alta ordem honorífica do país, como reconhecimento (tardio) pelos seus sacrifícios.
Richard Sorge foi um homem mau que se tornou um grande espião — um dos maiores espiões de sempre. A rede de espionagem que ele montou em Tóquio, antes da guerra, colocou-o quase ao nível dos escalões cimeiros do poder na Alemanha, no Japão e na União Soviética. O melhor amigo, patrão e informador inocente de Sorge, Eugen Ott, era o embaixador alemão no Japão e falava regularmente com Hitler. O principal agente japonês de Sorge, Hotsumi Ozaki, era um dos conselheiros do governo e falava regularmente com o primeiro-ministro, o príncipe Konoye. E em Moscovo, os chefes de Sorge eram visitantes regulares do gabinete de Estaline, no Kremlin. Sorge espiou em Tóquio sem ser detetado durante quase nove anos, apesar da mania dos espiões que assolava o Japão e de a polícia andar incessantemente à caça da fonte das suas transmissões de rádio codificadas. E conseguiu roubar os segredos militares e políticos mais bem guardados da Alemanha e do Japão: escondido bem à vista de todos.
Sorge era um comunista idealista e um mentiroso cínico. Via-se como um soldado da revolução, um membro de uma classe elevada de quadros secretos do partido aos quais fora confiada a missão sagrada de penetrar nas cidadelas dos inimigos imperialistas da URSS. Mas, ao mesmo tempo, era um pedante, um bêbedo e um mulherengo. Era viciado no risco e um gabarola, e em muitas ocasiões foi completamente indisciplinado. Durante as suas frequentes fases de alcoolismo, espatifou carros e motocicletas, confessou a nazis o seu amor a Estaline e à União Soviética, e seduziu irresponsavelmente as mulheres dos seus agentes mais valiosos e dos seus colegas mais próximos.
Sorge descrevia-se a si próprio como um herói romântico, um cavaleiro-ladrão da poesia romântica alemã. Na realidade, ele foi um dos decisores solitários que existem nas orlas do deserto político, um homem destinado a suportar o fardo da posse de conhecimentos e motivos superiores aos dos seres humanos que o rodeiam. Sorge, o autoproclamado paladino das massas operárias, era um enorme snobe intelectual cujo meio natural foram os casinos, as casas de prostituição e os salões de baile de Xangai e Tóquio.
Mas Sorge foi sobretudo um mentiroso profissional. Tal como muitos outros gigantes da sua profissão, era impelido por uma necessidade profunda de enganar. A dissimulação era a sua perícia e o seu vício fatal. Durante uma grande parte da sua vida, Sorge mentiu a todos quantos o rodeavam — às suas muitas amantes e amigos, aos seus colegas e aos seus chefes. Talvez até tenha mentido a si próprio.
Um dos aspetos mais extraordinários da história de Sorge é o facto de ele se ter movido num mundo de alianças internacionais fluídas e de possibilidades infinitas. As certezas que hoje temos sobre a época eram maleáveis para os Estados-nações, incluindo questões aparentemente imutáveis como que país estaria de que lado na Segunda Guerra Mundial. Durante uma grande parte da carreira de Richard Sorge, a União Soviética e a Alemanha, apesar de serem adversários ideológicos, foram aliados secretos. Na década de 20, o exército alemão enviou milhares de militares para instrução nas planícies da Bielorrússia, no âmbito de um acordo secreto entre Moscovo e Berlim. Em 1939, Estaline negociou com Hitler a divisão da Europa, do Báltico aos Balcãs, através da Polónia. As tropas nazis e soviéticas, depois de derrotado o inimigo polaco comum, realizaram desfiles de vitória conjuntos em Brest e noutras cidades ocupadas. Em fevereiro de 1941, Hitler propôs a Estaline a adesão ao Eixo — enquanto se preparava para invadir a URSS — para que o mundo fosse dividido pelas grandes ditaduras: a Alemanha, a Itália, o Japão e a União Soviética. Estaline, apesar de desconfiado, sentiu-se tentado. Até à noite de 22 de junho de 1941, Hitler e Estaline foram aliados, e Estaline terá acreditado que continuariam a ser. Mais estranho ainda, hoje sabemos — mas Richard Sorge não sabia — que, em setembro de 1940, Estaline gizou planos de contingência para invadir a Alemanha, a Operação Groza. Ao mesmo tempo que fornecia à Alemanha, no âmbito do pacto de não-agressão firmado com Berlim em 1939 —, quantidades enormes de milho, petróleo e aço para alimentar o esforço de guerra nazi, o ditador soviético elaborava um plano para trair Hitler, caso a oportunidade se apresentasse.
O papel do Japão na guerra mundial foi ainda mais fluído. Quando um grupo de oficiais japoneses renegados provocou uma invasão da Manchúria chinesa, em 1931, tornou-se evidente que os militares tinham sonhos expansionistas na Ásia, um desígnio que se impôs aos protestos do governo japonês. Mas a atitude do Japão em relação à Rússia era profundamente ambígua. O exército japonês fez muita pressão em prol de uma invasão da União Soviética, que teria incapacitado totalmente os esforços de Estaline para combater a invasão nazi da Rússia, em 1941. A marinha japonesa declarou perentoriamente que o destino imperialista da nação estava a sul, na aquisição dos arrozais da indochina e dos poços de petróleo das Índias Orientais Holandesas. Por conseguinte, a sobrevivência da URSS dependia dos complexos jogos de poder em curso no Estado-Maior Imperial japonês. Poderia Estaline transferir tropas do Extremo Oriente soviético para a defesa de Moscovo? Era preciso saber se o plano japonês de invasão da URSS em 1941 ia ser implementado, e a resposta só poderia ser dada pelo espião-mor soviético, Sorge.
A colisão do Japão com a América também não era garantida. O primeiro-ministro Konoye vinha tentando desesperadamente há anos fechar um acordo com Washington para evitar uma guerra no Pacífico. O seu enviado, o almirante Nomura, o embaixador do Japão nos Estados Unidos, esteve muito perto de negociar um pacto de não-agressão com o presidente Franklin Roosevelt, no verão de 1941.
O mundo de Sorge assistiu à conclusão e à quebra de alianças entre inimigos naturais como Hitler e Estaline, e Estaline e os militaristas japoneses. Ao contrário do que sucedeu com a maior parte dos espiões do século xx, a espionagem de Sorge não se resumiu a agentes traídos e operações secretas destruídas: teve um impacto direto no destino de nações e no rumo da guerra.
Um dos aspetos mais estranhos da história de Sorge é que, ao contrário de outras histórias do mundo nebuloso da espionagem, está extraordinariamente bem documentada. Depois de serem presos pelas autoridades japonesas, em outubro de 1941, os membros da rede de espionagem de Sorge — com a honrosa exceção de Kawai, um dos agentes menos importantes — cantaram como canários. Confessaram porque queriam sobreviver, mas tiveram motivos diferentes para a sua cooperação. Sorge era incompreendido e inapreciado pelos seus chefes de Moscovo há anos, e escreveu uma longa confissão na prisão, gabando-se dos seus feitos de espião, do seu profissionalismo e da sua integridade. Nós sabemos — ao contrário dele — que os seus controladores de Moscovo puseram a hipótese de ele ser um agente duplo. Sorge esperou até ao fim que a União Soviética o salvasse, razão pela qual não referiu as suas dúvidas em relação ao comunismo, os seus planos de fuga, a sua conta bancária secreta em Xangai — sabemos disto por outras fontes.
Os membros da rede que o denunciaram e os ficheiros que não se conhecem
O operador de rádio da rede de espionagem, Max Clausen, transmitiu aos japoneses uma mensagem contrária. Admitiu ter perdido a fé no comunismo e até se gabou de sabotar sistematicamente a espionagem de Sorge, amputando ou adulterando as mensagens que ele lhe dava para enviar. Clausen estava obviamente esperançado na clemência dos seus captores, e conseguiu-a. O melhor agente de Sorge, Hotsumi Ozaki, um jovem jornalista idealista que chegou a conselheiro do governo japonês, tentou provar que a sua suposta traição era uma espécie de patriotismo. Ozaki disse aos interrogadores que tinha agido em prol da paz internacional, e sempre no interesse do seu país, ao procurar evitar uma guerra entre o Japão e a Rússia.
Independentemente dos seus diversos motivos, os presos forneceram aos interrogadores um manancial de informações pormenorizadas sobre as suas vidas e a sua espionagem desde os anos 20. Além disso, a polícia secreta japonesa tinha intercetado as mensagens de rádio, quase desde o primeiro momento em que Clausen tinha começado a transmitir os relatórios secretos de Tóquio para Moscovo. Apesar dos seus muitos esforços, os japoneses não tinham conseguido localizar o transmissor nem decifrar as mensagens, mas depois de Clausen lhes entregar o livro de códigos que tinha usado para encriptar os telegramas, o serviço de informações militar japonês passou a ler quase todas as palavras da correspondência secreta entre Sorge e Moscovo. As confissões e as transcrições, que constituem dois volumes de depoimentos, foram publicadas na íntegra depois da guerra, e citadas pelos anticomunistas americanos da era McCarthy para mostrarem como a espionagem soviética era capaz de penetrar nos níveis cimeiros de um governo.
Há duas coisas que faltam no manancial de confissões e desencriptações reunidas pela polícia japonesa, bem como nos cerca de cem livros escritos sobre Sorge, a maior parte por historiadores japoneses, desde a sua execução na prisão de Sugamo, em Tóquio, em novembro de 1944. A omissão mais importante é o lado soviético da história. Nenhum historiador ocidental acedeu aos ficheiros de Sorge existentes nos arquivos da Internacional Comunista, em Moscovo, e do serviço de informações militar, em Podolsk, nem citou o importante trabalho dos historiadores russos baseado em partes do arquivo militar que foram encerradas aos investigadores estrangeiros no ano 2000. A história da carreira turbulenta de Sorge como agente da Internacional Comunista, a sua aparente queda em desgraça quando a organização foi implacavelmente purgada por Estaline de quase todos os não russos — com exceção dos mais servis —, o recrutamento de Sorge pelo serviço de informações militar e os subsequentes ciclos de desconfiança e paranoia que fizeram com que as valiosíssimas informações fornecidas por Sorge fossem consideradas desinformação inimiga, são narrados pela primeira vez neste livro. Tal como a história das tentativas desesperadas de Sorge para avisar Estaline da invasão alemã da União Soviética em junho de 1941 — avisos que foram sistematicamente abafados pelas chefias do Exército Vermelho, por medo de contradizerem a ideia fixa de Estaline de que Hitler nunca o atacaria.
30 mulheres a quem aterrorizava em passeios loucos de mota
O outro elemento que falta na versão japonesa dos acontecimentos é uma janela para a vida íntima de Sorge: as suas dúvidas e receios. Tal como John le Carré observou, os espiões são narradores muito pouco fiáveis porque se inventam e reinventam muitas vezes. Sorge viveu a maior parte da vida de adulto num mundo em que o risco da captura e da traição o seguiu como uma sombra. No Japão, só pôde partilhar os seus segredos com os seus subordinados. Nem os seus agentes mais próximos, Ozaki e Miyagi, se tornaram seus amigos.
À semelhança de muitos outros espiões, Sorge foi um mulherengo incansável. Os talentos de espião e sedutor em série estão profundamente interligados. Segundo os serviços de informações americanos, teve casos amorosos com pelo menos trinta mulheres durante a sua estada em Tóquio. Contudo, as suas amantes foram, em maior ou menor grau, peões que ele utilizou na espionagem. Sorge excitava-as e aterrorizava-as com os seus loucos passeios de mota pela noite dentro. Revelou a algumas delas um lado megalomaníaco: dançava pela casa de espada de samurai na mão e dizia, completamente embriagado, que ia matar Hitler e tornar-se um deus. Mesmo nos seus momentos mais íntimos, ele fingiu que era alguém maior do que era. Queixava-se às amantes da sua solidão mas não deixou nenhuma delas partilhar o fardo dos seus segredos. Mas apesar de tudo isto, os testemunhos das mulheres de Sorge oferecem-nos uma perspetiva importante sobre o homem que ele queria ser. Além disso, os arquivos soviéticos oferecem muitas outras visões do seu mundo privado: as cartas que ele escreveu à sua mulher, e as memórias e correspondência dos seus amigos e colegas de Moscovo.
Sorge constitui um desafio invulgar para um biógrafo. Viveu a maior parte da vida num mundo nebuloso onde a sua sobrevivência dependia do secretismo. Todavia, também era um extrovertido e, em muitos aspetos, um exibicionista. Quando se viu na solidão de uma prisão japonesa, Sorge atarefou-se a construir uma versão idealizada de si próprio para os seus interrogadores, e talvez para a posteridade. Na sua extensa correspondência com Moscovo, nas cartas à mulher, Katya, no seu jornalismo e nos seus ensaios, e na sua confissão, deixou um vasto registo escrito. Porém, tal como muitas outras pessoas aparentemente gregárias, nunca revelou o seu íntimo. Foi um homem com três faces. Foi um leão social, com uma vida escandalosamente indiscreta no partido, adorado pelas mulheres e pelos amigos. A segunda face — a secreta — estava virada para os seus amos, em Moscovo. A terceira foi a de um homem reservado com princípios elevados e apetites básicos que vivia num mundo de mentiras — esta, quase nunca a mostrou.
Sorge tinha um talento para as situações que o serviu muito bem durante toda a sua vida errática e fluída. A facilidade com que ele trocava de meio, de lugar, de mulher ou de amigo era absolutamente espantosa. Os homens e as mulheres achavam irresistível o seu carisma autodestrutivo. Podia ser extremamente elementar, temperamental e caprichoso, e era frequentemente egoísta como uma criança. A sua história evoca um homem a apresentar constantemente ao mundo uma série de caricaturas selvagens de si próprio, adotando versões ligeiramente novas da sua pessoa social. E tal como muitas pessoas solitárias, tinha o desejo ardente de ser fabuloso e de ser amado, mas à distância. Foi este o seu paradoxo: quanto mais fabuloso e bem-sucedido se tornou, mais impossível foi ser amado pela pessoa que era.
O intelectual e o soldado, que fez a continência na forca
Tinha muitos amigos, mas não podia fazer confidências a quase nenhum. Passava a maior parte das noites em festas, em bares e restaurantes, mas mentiu e usou quase todos os seus muitos conhecidos. De facto, a sua maior competência foi a sua facilidade mágica para pôr as pessoas à vontade. E o seu encanto também o manteve vivo. Quando Joseph Meisinger, um brutal coronel da Gestapo alcunhado de “Carniceiro de Varsóvia”, foi enviado a Tóquio para o investigar, Sorge levou o seu inimigo mortífero para a borga em Ginza e tornou-o um companheiro de copos.
Também era corajoso. Roubou fotografias de documentos secretos quando o deixaram alguns minutos sozinho no gabinete do embaixador alemão; depois de ter tido um acidente de motocicleta por estar embriagado, ficou deitado na estrada, gravemente ferido, mas lutou para não perder os sentidos até chegar um amigo e passar-lhe os documentos incriminatórios que tinha no bolso do casaco — em todas estas situações, Sorge manteve-se quase sobrenaturalmente frio. Considerou-se sempre um soldado, desde a sua adolescência ao serviço do Kaiser nas trincheiras, durante a Primeira Guerra Mundial, até aos seus últimos momentos na forca, quando se pôs em sentido e fez continência ao Exército Vermelho e ao Partido Comunista da URSS. Apesar das muitas indiscrições provocadas pela embriaguez, viveu uma vida de atividade furiosa, levantando-se cedo e passando muitas horas a ler, a escrever e a espiar. Era um oficial e um profissional, mesmo quando estava bêbedo, mesmo quando estava desesperado. E de certa forma, também foi um cavalheiro. Na prisão, negou-se a falar das mulheres da sua vida e nunca mencionou a sua amante japonesa. O procurador que o interrogou descreveu-o como “o maior homem que alguma vez conheci”.
Sorge também era uma espécie de intelectual; pelo menos, possuía uma inteligência robusta e competente. Na prisão, ele escreveu nas memórias que, em tempo de paz, teria sido um académico. Viveu como o protagonista exclusivo de um espetáculo cujo público real era desconhecido dos espetadores — os seus chefes quase sempre remotos da Quarta Direção do Estado-Maior General do Exército Vermelho. A tragédia de Sorge foi que na parte mais crucial da sua carreira, eles duvidaram da sua lealdade e julgaram que ele era um traidor — mas felizmente, ele nunca soube que muitas das informações extraordinárias que lhes fornecia eram desdenhadas e ignoradas.
A última palavra, antes de nos lançarmos na história da vida extraordinária de Sorge, cabe a John le Carré, autor de uma recensão brilhante ao primeiro livro sobre o espião publicado na Grã- -Bretanha, em 1966. Le Carré, que conviveu com os habitantes do mundo das sombras, compreendeu Sorge particularmente bem. “Ele foi um ator no sentido de Graham Greene, e um artista no sentido de Thomas Mann”, escreveu le Carré:
“Qual Spinell de Thomas Mann em Tristão, ele está sempre a trabalhar num livro inacabado. Tinha-o na mesa de cabeceira, juntamente com um livro aberto de poesia japonesa do século XI, quando foi preso. Fazia-se de boémio, tinha uma coruja de estimação numa gaiola, no quarto, era um borracho e um putanheiro na demanda do triunfo. Era um mestre de cerimónias; as pessoas (inclusivamente as suas vítimas) adoravam-no; os militares gostavam imediatamente dele. Era um homem dos homens, as mulheres só lhe serviam no quarto. Desconfio que ele era um exibicionista, e o público era sempre do sexo masculino. Tinha coragem, muita coragem, e um sentido de missão romântico: quando os seus colegas foram presos, ele ficou na cama a beber sake, à espera do fim. Um jornalista francês disse que ele tinha “uma combinação estranha de encanto e brutalidade”. Não restam dúvidas de que exibia sintomas de alcoolismo. Sorge levou todas estas características para a espionagem. E o que lhe deu a espionagem? Julgo que lhe deu um palco, um navio para navegar nos seus mares românticos, um cordel para atar uma quantidade de talentos medianos, um disfarce para vencer a sociedade e um chicote marxista para se flagelar. Este sacerdote sensual encontrou o seu verdadeiro ofício, nasceu maravilhosamente para o seu século. Só os seus deuses eram antiquados.”