“Em relação à alimentação, os dados mostram que há um problema. Mas verificámos – já apresentámos as conclusões ao Departamento do Estado, que ficaram surpreendidos, e ao Departamento do Tesouro – que o problema alimentar é um pouco diferente do que tem sido divulgado”. A frase foi dita em entrevista ao Observador pelo professor em Yale, Jeffrey Sonnenfeld, que ainda acrescentou que o abastecimento mundial pode vir a aumentar 4% este ano, mesmo que a Ucrânia não produzisse nada.
A surpresa chega também aos preços. As cotações de algumas das matérias-primas agrícolas voltaram a níveis pré-guerra, seis meses depois do seu início, a 24 de fevereiro. Ainda assim esta sexta-feira, 26 de agosto, as cotações estavam ligeiramente em alta face ao dia anterior, mas no caso da soja, por exemplo, os preços já caíram mais de 9,7% desde o máximo atingido este ano nos 1.732 dólares. Está agora perto dos 1.560 dólares. No caso do milho as quedas rondam os 19% face ao pico a 29 de abril, cotando agora em cerca de 660 dólares, face aos mais de 800 nesse pico. Mas as quedas, face aos máximos de cotação no início da guerra, são mesmo mais expressivas no trigo e no óleo de girassol (que chegam aos 50%, em ambos os casos) e no óleo de palma está mesmo a metade do preço face ao pico de abril. O óleo de palma está em níveis de setembro de 2021.
Mas mesmo face às cotações antes da guerra, os preços dos cereais já estão mais baixos. No trigo, se no dia antes da invasão a cotação estava nos 878 dólares, agora segue perto dos 760 dólares. O milho segue em queda de 3,5% face ao valor de 23 de fevereiro para cotar nos 660 dólares, face aos 680 dólares de dia 23 de fevereiro.
Também o índice da FAO (Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas) mostra esta descida dos preços em julho, tendo o índice voltado a níveis pré-guerra, ainda que esteja acima de há um ano.
As últimas estimativas da FAO para a produção são ainda de julho, quando os valores projetados para a colheita cerealífera ainda estavam abaixo dos valores da campanha do ano passado, ainda assim a subir face às estimativas anteriores. Só que ao mesmo tempo que a produção vai subindo nas projeções, também o consumo aumenta.
Nos cereais, no entanto, o trigo é assim, realça Henrique Tomé, da XTB, o que está a registar uma das maiores correções em baixa, tendo já desvalorizado cerca de 40% desde o pico deste ano, que aconteceu depois do início da guerra na Ucrânia.
Para este analista, esta situação é o resultado do “retomar de algumas colheitas na Ucrânia e também a da exportação para o resto do mundo”, além “das melhorias das colheitas de outros players importantes”.
E se Jeffrey Sonnenfeld fala de melhores colheitas na Ucrânia do que era inicialmente esperado por causa da guerra, há outros países a garantir que os cereais chegam ao mercado. Nas últimas projeções do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América surgem já estas recuperações. Segundo as projeções de agosto, a produção de trigo, por exemplo, a nível mundial, ficará acima da campanha de 21/22, na qual se totalizou 779,24 milhões de toneladas de trigo produzido. A campanha deste ano, nas projeções de agosto, é apontada para um total de 779,6 milhões de toneladas, o que, segundo o departamento norte-americano, se deve às produções mais elevadas na Rússia, Austrália e China. Os Estados Unidos também estão a conseguir melhor produção este ano.
Só à conta da Rússia a subida é de 6,5 milhões de toneladas, para 88 milhões, batendo o recorde em termos de área e de produtividade da seara. Ainda de acordo com esse documento, que cita a Rosstat, agência estatística russa, tanto as colheitas de inverno como de primavera estão a ter bons desempenhos.
Até a Ucrânia, cuja produção está a cair face ao ano passado, está a ter melhores colheitas do que as antecipadas inicialmente. O governo ucraniano estima que este ano possa produzir 50 milhões de toneladas de cereais este ano, o que compara com o recorde de 86 milhões em 2021, devido à perda de terra para as forças russas e à menor produtividade das searas.
Exportações ucranianas seguem nos navios
A Ucrânia era das principais exportadoras de cereais a nível mundial, mas com o eclodir da guerra e com os portos no mar Negro paralisados, a saída destes produtos para alimentar o mundo caiu a pique. Um acordo intermediado pelas Nações Unidas e pela Turquia permitiu que Rússia e Ucrânia acordassem a saída segura de navios dos portos a sul da Ucrânia. A primeira embarcação saiu a 1 de agosto da Ucrânia. E desde que o corredor seguro foi acordado, a 22 de julho, já saíram dos portos ucranianos 630 mil toneladas de cereais e de outros produtos alimentares, num total de 25 navios.
Desde fevereiro que a Ucrânia tinha mais de 20 milhões de toneladas de cereais para exportação armazenados. E, no final da semana passada, segundo a Reuters, mais 10 navios estavam a ser carregados na Ucrânia para saírem pelo mar Negro.
“Dez navios estão a ser carregados e a ser preparados para sair dos portos de Odessa, Chornomorsk e Pivdennyi. Temos ainda mais 40 pedidos para desembarque dos portos ucranianos”, declarou, no Facebook, Oleksandr Kubrakov, ministro das Infraestruturas da Ucrânia, citado pela Reuters.
Ainda assim, a Ucrânia contabiliza menos 51,6% as exportações de cereais este ano, face à campanha anterior.
As Nações Unidas são dos maiores compradores de cereais ucranianos, que são enviados para países em risco de fome. Um dos navios, o Brave Commander, por exemplo levou 23 mil toneladas para a Etiópia. As Nações Unidas já revelaram ter comprado 60 mil toneladas de trigo ucraniano para os países que necessitam.
Preços ao consumidor ainda não estão a sentir baixa
Apesar desta descida nas cotações das matérias-primas, os preços aos consumidores ainda não estão a baixar. E estes podem nem chegar a saborear esta redução. Em julho, em Portugal, a inflação cifrou-se nos 9,1% em termos homólogos, com os preços dos produtos alimentares e bebidas não alcoólicas a subirem quase 14% face ao mesmo mês do ano passado. E este ano a tendência nestes artigos tem sido sempre ascendente.
Mas não são apenas as cotações das matérias-primas agrícolas que contribuem para a formação de preços destes produtos. E, por isso, não há quem se atravesse com a evolução dos preços.
Ao Observador, fonte oficial da Nestlé Portugal explica que “está atenta à evolução dos preços das matérias-primas, que constituem um dos elementos do custo dos nossos produtos”, mas “o atual cenário geopolítico e económico não nos permite fazer conjeturas sobre a evolução possível dos diferentes componentes desse mesmo custo, além de que, por regras de Concorrência, a Nestlé não tece comentários sobre este tipo de questões”. E esclarece que “a principal preocupação da Nestlé é manter os seus produtos disponíveis e acessíveis aos consumidores”.
Os preços têm vindo a subir, com as cotações dos cereais a atingirem, no início da guerra, máximos. Não é de surpreender, já que Rússia e Ucrânia são potências agrícolas. Eram, até então, o maior e o quinto maior exportador de trigo e os dois maiores de óleo de girassol. Não foi, pois, surpreendente que a guerra tenha levado à subida destes produtos, com temores de escassez. Mas as colheitas melhores do que o esperado em alguns mercados e o reinício das exportações ucranianas impediram, para já, o pior cenário.
Henrique Tomé acredita que “as correções na maior parte das matérias-primas sejam para continuar”, mas “o desfecho do conflito no leste da Europa seja fundamental para ditar a amplitude dessas correções”. E, por outro lado, há outros custos que continuam a penalizar os preços finais ao consumidor. É o caso da energia, ainda que os preços do petróleo também tenham vindo a recuar face ao início da guerra.
Petróleo recua, mas energia continua elevada
A cotação do petróleo também se conteve abaixo dos 100 dólares, depois de chegar aos 120 dólares. Houve quem estimasse que o crude atingisse valores estratosféricos com a possibilidade de o petróleo russo não ter clientes. Se bem que as compras à Rússia pelos aliados estão a ser contidas, há outros mercados que continuam a ser bons clientes, como é o caso da Índia. O que contribuiu para a estabilização das vendas da Rússia ao exterior, segundo a Agência Internacional de Energia.
Com esta tendência começaram a surgir notícias de que a OPEP+ (Organização dos Países Exportadores de Petróleo mais os seus aliados, como a Rússia) podia decidir por um corte na produção.
Segundo avança o Wall Street Journal, a média das projeções de 22 analistas de Wall Street inquiridos pela FactSet aponta para que o brent, negociado em Londres, possa estar no final de setembro a negociar nos 115 dólares. O Brent, em agosto, está em queda de mais de 4%, recuperando face a um mínimo de negociação este mês nos 92 dólares. Esta semana tem rondado os 100 dólares, depois de um pico atingido em março de mais de 120 dólares. A Goldman Sachs reviu recentemente as suas projeções para o quarto trimestre, cortando as estimativas para o brent de 130 para 125 dólares.
“O petróleo tem estado exposto ao sentimento no mercado, às constantes medidas de confinamento na China e ao risco de abrandamento económico à escala mundial”, o que tem contido a evolução dos preços já que “os mercados começam a antecipar uma redução da procura se o cenário de recessão se concretizar”, destaca ao Observador o analista da XTB, Henrique Tomé, lembrando precisamente as declarações da Arábia Saudita a admitir um corte na produção do cartel de exportadores. Bastou uma mensagem para os preços, nas últimas sessões, subirem. A decisão da OPEP+ aguarda evoluções referentes ao Irão. Se o petróleo iraniano voltar ao mercado internacional o cartel pode optar por conter o seu débito.
E esta evolução do petróleo é contagiante aos restantes setores, tal como os preços da energia. E o gás natural continua a não dar tréguas, com a Europa a tentar cortar os seus consumos para não estar tão dependente da Rússia.
Acordo no gás para um inverno sem dramas. Com tantas exceções quem vai cortar 15%? E chega?
Com estes níveis de preços de energia não há inflação que consiga descer. Holger Schmieding, do Berenberg, comenta ao Observador que atualmente o banco tem uma projeção para a inflação no quarto trimestre deste ano de 12% em termos homólogos no Reino Unido e de 9,6% na zona euro, o que seria o pico estimado, ainda que os riscos pressionem em alta estas projeções feitas com base nos preços da energia no início de agosto. Desde então, os preços grossistas para o gás subiram 80 euros por MWh para perto dos 280 euros. “Os preços altamente voláteis do gás podem, bem, recuar em breve. Mas e se continuarem àquele nível?”, questiona Holger Schmieding, que faz uma conta por alto: se os preços do gás subirem 100 euros de forma sustentada tal significaria um aumento da inflação na zona euro de cerca de 5%. “Os lares são afetados direta e indiretamente pelos preços do gás e da eletricidade”, conclui.