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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Processo de Moçambique que agora envolve D. José Ornelas foi arquivado em 2011. Encerramento foi confirmado cinco vezes na última década

Queixa de Marcelo fez abrir novo inquérito contra o bispo por "encobrimento de abuso sexual ocorridos em Portugal, por padres portugueses". Processo saiu de caso de Moçambique arquivado há uma década.

O processo em que foram denunciados abusos sexuais num orfanato em Moçambique, e que agora é referido na queixa que levou o Ministério Público a investigar o bispo D. José Ornelas, foi aberto há onze anos e arquivado meses depois. O Ministério Público considerou que em causa estavam crimes alegadamente cometidos em território moçambicano por padres estrangeiros e que nada havia a investigar em Portugal. O arquivamento foi confirmado ao longo da última década cinco vezes por quatro magistrados diferentes e só agora, depois da denúncia feita à Casa Civil do Presidente da República Portuguesa, deu origem a um novo inquérito que corre na secção que investiga os crimes sexuais no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.

O nome de D. José Ornelas foi sendo referido pelo denunciante deste caso ao longo dos anos, como sendo um “padre madeirense” em Roma com responsabilidade sobre a ordem dehoniana em Moçambique. D. José Ornelas era desde 2003 Superior Geral da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos). Mas só agora, na carta enviada a Marcelo Rebelo de Sousa, o bispo que preside a Conferência Episcopal Portuguesa foi acusado de ter omitido das autoridades o abuso de vários menores.

Perante esta informação, a procuradora do processo manteve o caso arquivado, mas decidiu mandar abrir um outro “com vista à investigação da comparticipação do Padre José Ornelas no encobrimento de abuso sexual ocorridos em Portugal, por padres portugueses”, lê-se no despacho assinado pela procuradora Maria José Magalhães.

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Abusos na Igreja. Podem ser mais de 1500 vítimas?

Paralelamente, foi também aberto um processo pelo Ministério Público de Braga para investigar suspeitas de ocultação de um crime  de abuso sexual praticado por um padre daquela região, o padre Abel Maia — que foi alvo de um processo-crime por abuso sexual que acabou arquivado em 2014.

Estes dois processos nasceram de uma carta enviada a Marcelo Rebelo de Sousa por João Oliveira, que foi depois reencaminhada para a Procuradoria Geral da República — o mesmo órgão a quem este professor que chegou a fazer voluntariado em Moçambique já tinha enviado algumas cartas em que questionava o arquivamento do processo em relação às suspeitas de abuso sexual num orfanato em Moçambique.

Como tudo começou em 2010 com uma denúncia

O processo que envolveria dois padres italianos em Moçambique, consultado pelo Observador, começou com uma queixa feita por um professor chamado João Oliveira, feita em finais de 2010 (embora o inquérito só tenha sido aberto já em início de 2011). Através do antigo IPAD (Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, agora Instituto Camões), João Oliveira trabalhou como professor voluntário naquele país durante 10 meses — dando aulas de informática e medicina veterinária numa escola da Ordem dos Dehonianos, no Gurue (da qual D. José Ornelas era, à época, superior geral a partir de Roma).

Na denúncia inicial, feita a 11 de novembro de 2010, João Oliveira começou por contar que quando estava em missão no Gurue  estava a andar de mota quando foi apedrejado e caiu. Foi então internado no hospital local em estado considerado grave e, segundo o próprio, a sua família nunca foi sequer avisada. Aconselhado a regressar a Portugal, João Oliveira ainda hoje acredita que o apedrejamento de que foi alvo foi uma retaliação por parte do padre italiano, Ilario Verri, responsável pela escola onde lecionava, e pelo padre  Luciano Cominotti, que fundara um orfanato. É que, sustentou, nesse momento o voluntário português já sabia de várias histórias de alegados abusos sexuais e físicos ocorridos no interior do orfanato.

Segundo a denúncia, João Oliveira ouviu na altura vários relatos de crianças que diziam que no interior do orfanato ocorriam abusos sexuais e físicos por parte do responsável da instituição, o padre italiano Luciano, e de alguns doadores. Havia mesmo quem falasse em “prisões” dentro do orfanato onde colocavam as crianças para serem cometidos os crimes.

O procuradora-geral da República, Lucília Gago, intervém na cerimónia de abertura do Ano Judicial, no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa, 20 de abril de 2022. MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

A Procuradora-Geral da República foi informada do caso de Moçambique depois de ter tomado posse e pediu informações

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

O primeiro arquivamento: caso não é em Portugal nem envolve portugueses

O processo viria, porém, a ser arquivado cerca de três meses depois da denúncia inicial apresentada por João Oliveira, com a procuradora-adjunta Olga Brito Lima a considerar que, como o caso tinha ocorrido em Moçambique e como nem os ofendidos nem os suspeitos dos abusos eram cidadãos portugueses, não tinha competência territorial para investigar. A queixa tinha de ser feita em Moçambique.

Assim que foi notificado desta decisão, João Oliveira apresentou um requerimento ao titular do processo. Justificou que apresentou queixa em Portugal porque teve de vir fazer tratamento médico e que foi aconselhado, por segurança, a não regressar. “Parece-me uma atitude humanamente incorreta e até diplomaticamente irresponsável porque existem milhares de portugueses a trabalhar na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), vários com certeza acompanhados pelas suas famílias”, alegava no e-mail que enviou à PGR e que o Observador consultou. E sugeria que fossem ativados os meios internacionais.

“A ordem religiosa dos padres visados está presente em Portugal e é dirigida mundialmente por um português”, escreveu, referindo-se a D. José Ornelas, atual bispo de Leiria-Fátima, um “madeirense a residir em Roma”. O bispo é, aliás, sempre referido nas denúncias que o professor foi somando ao processo nos anos seguintes, por ser líder dos dehonianos.

O Ministério Público decidiu então enviar a informação prestada por João Oliveira ao seu homólogo moçambicano e manter a decisão de arquivamento. Do processo consta mesmo um contacto feito com a embaixada local em que a magistrada procurava saber quais as formas para contactar o Ministério Público de Gurue. A embaixada respondeu. E o Ministério Público português, perante os factos que João Oliveira tinha relatado, nada mais podia fazer, pelo que não foi feita qualquer outra diligência no caso.

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João Oliveira queixou-se à hierarquia e uma segunda procuradora olhou para o caso

Pouco depois da decisão de arquivamento, João Oliveira levou-o à hierarquia. A consequência lê-se no processo: uma assessora da então Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, pedia informações sobre o caso. Desta vez, seria uma segunda procuradora, Emília Serrão, a olhar para o processo e a responder que o caso estava arquivado. A decisão é de 9 de dezembro de 2013, mas dava novas ordens para que a queixa voltasse a ser remetida às autoridades moçambicanas, uma vez que anteriormente o processo tinha sido devolvido a Portugal por não ter chegado em condições ao destino.

Três meses depois deste episódio, o jornal Público noticiava que as autoridades moçambicanas e italianas estavam a investigar alegados abusos ocorridos no orfanato criado pelo padre Luciano. Ao Público, João Oliveira explicava que até já tinha ido pelos seus próprios meios a Itália fazer queixa, que já tinha mandado cartas a várias entidades, incluindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas ninguém parecia fazer nada.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, fala aos jornalistas, na Embaixada de Portugal, em Londres, onde chegou hoje para participar no funeral da Rainha Isabel II que se realizará amanhã, dia 19 de setembro, Londres, Inglaterra, Grã-Bretanha, 18 de setembro de 2022. A Rainha Isabel II morreu a 08 de setembro aos 96 anos no Castelo de Balmoral, na Escócia, após mais de 70 anos do mais longo reinado da história do Reino Unido. NUNO VEIGA/LUSA

Marcelo Rebelo de Sousa informou bispo da queixa que enviou para a Procuradoria Geral da República e que o denunciava

NUNO VEIGA/LUSA

Processo manteve-se arquivado e parado cinco anos. E um terceiro procurador olhou para ele

No único volume que constitui o processo aberto em 2011 — que voltou a ser noticiado na última semana e que se encontra arquivado na 5.ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa —, só voltam a aparecer novas informações ao fim de cinco anos, em setembro de 2018, precisamente depois de Lucília Gago tomar posse como Procuradora-Geral da República.

João Oliveira terá aproveitado as mudanças na estrutura da Procuradoria para voltar a tocar no assunto e questionar o arquivamento do caso sobre os abusos num orfanato de Moçambique. E enviou novamente a queixa que já tinha feito, desta vez escrita em inglês, para Lucília Gago, informando que tinha também mandado uma cópia da mesma ao Presidente da República e ao primeiro-ministro.

A PGR, agora liderada por Lucília Gago, pediu informações sobre o processo para perceber o que se passava e porque estaria um caso destes parado. E desta vez a resposta foi dada pelo procurador João Cravo, que voltou a olhar para o caso — enviou o despacho de arquivamento e informou que tinha sido dado conhecimento às autoridades moçambicanas. Nada havia a fazer em Portugal porque os suspeitos eram italianos e os alegados crimes teriam acontecido em território moçambicano.

Com o tema dos abusos sexuais na Igreja a ganhar destaque e com a cimeira em Roma, em 2019 — em que o Papa Francisco apelou a uma mudança na cultura do clero, para que passasse a encarar estes casos com ações práticas —, João Oliveira voltou a contactar a Procuradoria nesse ano. Desta vez, além das suspeitas de abusos num orfanato em Moçambique, o professor enviava mais informações sobre padres suspeitos (entre algumas notícias que acompanhavam a denúncia, enviou mesmo uma do Observador que integrava a grande investigação sobre o tema, publicada nesse ano). Nesse momento, a denúncia do professor voluntário atingia outras proporções. Além de uma alegada conivência entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Igreja, trazia elementos que nunca tinha referido inicialmente e que eram baseados em notícias que iam saindo. Além de referir D. José Ornelas, por ser à data responsável pelos dehonianos, e o caso de Moçambique, João Oliveira alegava que havia mesmo uma rede de padres protegidos pela Igreja que eram colocados no estrangeiro com a conivência do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Entre a documentação enviada, consta um cronograma da sua autoria com a lista de padres cujo afastamento foi tornado público, como o padre Frederico e o padre Anastácio Alves, ambos “com ligação à Madeira” — como D. José Ornelas, referia o denunciante, criando uma ligação entre o agora bispo de Leiria-Fátima e estes padres. Falava também numa carta rogatória que teria sido enviada para Portugal, com o objetivo de que o próprio João Oliveira fosse ouvido, e de que nunca tinha sido notificado.

Denúncia de encobrimento de abusos sexuais contra bispo de Leiria. Caso foi investigado em Itália e Moçambique e arquivado

Processo é revisto pela quarta vez e nada de suspeito foi encontrado que justificasse a reabertura

A PGR pede novamente ao titular do processo para analisar os novos dados e ponderar uma reabertura do caso. Desta vez, a resposta sobre o estado do processo, aberto depois da queixa do professor em finais de 2010, veio pela assinatura da procuradora Maria José Magalhães. Primeiro, esclarecia-se a PGR de que a tal carta rogatória de que João Oliveira falava, aparentemente enviada pelas autoridades italianas que o queriam ouvir, nunca tinha sido executada porque João Oliveira nunca estava em Portugal para ser notificado. Já quanto a uma possível reabertura do processo, a magistrada decidiu que não havia razões para isso.

Foi também a Maria José Magalhães que coube, já em 2022, pela quinta vez, a tarefa de olhar de novo para o caso depois de João Oliveira ter enviado nova carta, desta vez à Presidência da República:

“O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, e o criador da auto-intitulada comissão “independente” de investigação dos abusos na Igreja Católica, omitiu das autoridades o abuso de vários menores enquanto presidente da ordem dos dehonianos. Atendendo à gravidade e vastidão destes crimes, e considerando o poder da Igreja Católica em Portugal, que publicamente segue, entendi apelar formalmente à sua intervenção. José Ornelas comprovadamente protegeu abusadores de menores em duas ocasiões distintas:
a) Padre Abel Maia (caso Estefânia) em Portugal
b) Missão dehoniana do Gurué em Moçambique”

Era este o teor da denúncia que João Oliveira fez chegar a Marcelo Rebelo de Sousa, numa carta enviada a 8 de agosto de 2022, dando como exemplo o caso do padre Abel Maia e voltando a referir a missão dehoniana do Gurue.

O bispo de Setúbal, José Ornelas, em entrevista à agência Lusa no Seminário de São Paulo de Almada, em Almada, 11 de junho de 2021. O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa e bispo de Setúbal defende que é necessário que o Rendimento Social de Inserção seja cada vez mais associado à requalificação das pessoas. (ACOMPANHA TEXTO DA LUSA DO DIA 17 DE JUNHO DE 2021). JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

O Bispo José Ornelas está atualmente à frente da diocese de Leiria-Fátima

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

O padre Abel Maia chegou a ser suspenso de funções depois de, em 2014, ter sido denunciado por um colega ao bispo do Porto por suspeitas de abuso sexual. Foi investigado e o caso acabou arquivado, porque a alegada vítima que tinha contado o que se passara negou tudo às autoridades. O padre Abel Maia ainda processou por difamação o padre que o denunciou. Esta não era, no entanto, a primeira vez que este seu alegado relacionamento levantava suspeitas. “A primeira denúncia do caso do Padre Abel Maia teve lugar em 2003 e foi alvo de uma averiguação interna por parte da Congregação dos Padres Dehonianos, tendo a alegada vítima negado qualquer abuso. A mesma reconfirmou a sua posição, em 2014, em tribunal”, lê-se num comunicado do Secretariado Geral da CEP enviado ao Observador. Nessa altura, em 2003, Abel Maia foi mesmo transferido para Roma, por “precaução”, como relatou o jornal i em 2015.

Perante esta nova denúncia, a Procuradoria-Geral da República decidiu enviar a informação ao Ministério Público de Braga, por causa do padre Abel, e ao titular do processo em que tinha sido feita a queixa contra a missão dehoniana em Moçambique. Desta vez, doze anos depois da primeira queixa de João Oliveira, a procuradora decidiu mandar extrair uma certidão para abrir outro processo. Este, sim, visando D. José Ornelas.

“Com vista à investigação da comparticipação do Padre José Ornelas no encobrimento de abuso sexual ocorridos em Portugal, por padres portugueses, determino a extração de certidão e a sua remessa à 2.ª secção”, lê-se na decisão de 26 de setembro deste ano, sem referir suspeitas concretas.

Isso significa que, neste momento, D. José Ornelas é, de facto, alvo de dois inquéritos, um em Lisboa e outro em Braga, em que se investiga se ocultou ou não crimes de abuso sexual. O de Braga diz respeito ao caso do padre Abel. O de Lisboa, segundo a certidão extraída do processo de Moçambique, diz respeito a “padres portugueses” e a crimes “ocorridos em Portugal”. O Observador sabe que o titular deste novo processo já pediu entretanto para olhar para o caso aberto há onze anos e perceber do que se trata.

D. José Ornelas já tinha sublinhado, em entrevista à RTP, que o caso de Moçambique não era novo. Aliás, ele próprio trocou cartas com João Oliveira, avaliou se havia suspeitas (embora o orfanato não fosse dehoniano) e viu, segundo o próprio bispo, as autoridades italianas e moçambicanas arquivarem os respetivos processos. Quanto a estes novos dois processos, diz que soube deles apenas por Marcelo Rebelo de Sousa (que lhe telefonou) e pela comunicação social e que ainda não foi chamado para prestar declarações em nenhum deles.

Marcelo mantém que D. José Ornelas já sabia “há semanas” da investigação a caso de abusos sexuais

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