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Joaquim Pinto estava a regressar de Oeiras, de comboio, quando através da janela da carruagem começou a ver chamas e fumo. “Devia ser meia-noite e pouco. Tinha uma visão muito clara do fogo porque Lisboa, naquela época, não tinha edifícios tão altos como agora e eu estava a ver de baixo para cima. Era indescritível, as chamas eram violentíssimas”, explica ao Observador.
Saiu no Cais do Sodré e apanhou um meio de transporte mais rápido para chegar ao quartel de bombeiros a que pertencia, no Marquês de Pombal. A fachada cujas janelas deixavam escapar labaredas incontroláveis pertencia ao Palácio Nacional da Ajuda e aquela noite de 23 para 24 de setembro de 1974 foi um verdadeiro inferno para toda a cidade.
A Ala Norte do edifício ficou destruída, estando os danos principais concentrados na galeria de pintura fundada por Dom Luís I. Perderam-se cerca de 500 obras, sobretudo pinturas, mas também esculturas, tecidos e loiça. Ainda assim, os estragos não foram maiores porque, além dos bombeiros, rapidamente se juntaram para ajudar militares da GNR (cujas instalações ficavam em frente) e sobretudo populares.
Bombeiro que combateu o fogo no Palácio da Ajuda
“Pediram-me para ir para a frente de combate para proteger os GNR, que estavam a retirar as obras da galeria. O ambiente era amplo e a carga térmica violenta. Ouvíamos o ruído das madeiras a arderem, pareciam urros na escuridão.”
Foi isso que impressionou mais Joaquim Pinto quando chegou ao local. Os habitantes transportavam peças, corriam para o exterior, carregavam mangueiras. A prioridade era retirar tudo o que fosse possível, já que havia o risco de colapso da estrutura — o que acabaria por acontecer. “Pediram-me para ir para a frente de combate para proteger os GNR, que estavam a retirar as obras da galeria. Acho que era por ser dos mais novos.”
Tinha pouco mais de 20 anos e pouca preocupação com a possibilidade de colocar a própria vida em risco. “Punha o capacete e ia. E íamos com vontade, porque só havia um objetivo, que era apagar o fogo.” Sem máscaras nem casacos especiais, os bombeiros saíam do edifício quando precisavam de respirar ou descansar um pouco e voltavam a entrar. Fizeram-no durante toda a noite. Lá dentro, o ambiente era escuro e envolto em fumo, a eletricidade tinha sido cortada por uma questão de segurança. “O ambiente era amplo e a carga térmica violenta. Ouvíamos o ruído das madeiras a arderem, pareciam urros na escuridão”, recorda Joaquim Pinto.
Os bombeiros sabiam que o fogo só estaria extinto quando o teto ruísse. Até lá, a prioridade era criar um corredor de segurança, nas costas dos membros da corporação, por onde as pessoas pudessem passar com as obras. “Estávamos nas portas e empurrávamos as chamas para lá, para as janelas, para não deixarmos o calor passar e podermos criar um corredor frio nas nossas costas, uma zona de circulação.” As instruções superiores eram claras: “Quando ouvirem o ruído do colapso, fujam.”
Segundo Joaquim Pinto, a estrutura cedeu por volta das 4h30 ou 5 da manhã. “Não foi como se não tivesse tido medo, estivemos muitas horas no escuro, mas sabíamos que tínhamos pessoas para salvar.” Havia quadros de grande porte impossíveis de transportar. Esculturas, tapeçarias, peças que a rainha Maria Pia trazia das viagens ficaram para trás na galeria, que era considerada um dos primeiros museus do País antes do incêndio.
Do lado da biblioteca, onde as chamas não chegaram graças à persistência dos bombeiros — ainda assim, foi pelas salas acima desse espaço que as mangueiras tiveram de passar —, a preocupação estava na água.
A bibliotecária com dois meses de experiência
Horas antes de Joaquim Pinto chegar a Lisboa, tocou o telefone de Conceição Geada. A bibliotecária do Palácio Nacional da Ajuda estava em casa, na Estrela, a jantar quando outra funcionária lhe ligou. Deixou os pratos na mesa e correu para o posto de trabalho que ocupava há apenas dois meses. Após anos de carreira como professora, fez o curso de bibliotecária, arquivista e documentalista, na Torre do Tombo, e acabou colocada no Palácio — onde ainda hoje é voluntária.
“Quando cheguei estavam a retirar carruagens que eu nem sabia que guardavam cá. Havia um rebuliço enorme lá fora, mas eu tinha de estar aqui dentro [na biblioteca] porque começamos a ter o problema da infiltração da água. Numa das salas sem janelas havia tábuas, um banco de jardim, jornais, o arquivo administrativo. A água começou a cair do teto às primeiras horas da manhã.”
Antiga bibliotecária do Palácio
“O meu pavor era se o fogo chegasse à Sala dos Manuscritos, que são fontes insubstituíveis. Os livros impressos têm imenso valor, não existem noutras bibliotecas do mundo.”
“O meu pavor era se o fogo chegasse à Sala dos Manuscritos, que são fontes insubstituíveis. Os livros impressos têm imenso valor, não existem noutras bibliotecas do mundo”, recorda ao Observador. Por isso, não arredou pé até às sete da manhã, quando teve transportes para voltar para casa. Foi, tomou banho, arranjou-se e regressou.
A biblioteca tinha seis ou sete funcionárias. A partir daí, a prioridade era recuperar o possível. Durante uma semana trabalharam sem luz (“não se ligava a eletricidade porque os cabos podiam estar molhados”). Os livros sem encadernação ficaram completamente ensopados. Na recuperação, improvisaram-se capas de papel e usou-se papel absorvente para secar milhares de páginas. Os livros que incharam foram prensados. “Tinha 30 e poucos anos, não tinha ninguém acima de mim [a diretora tinha-se reformado uns dias antes de entrar] e, mesmo sem experiência, tive de resolver. Um mês depois do incêndio foi feita uma inspeção aos tetos e pedi desumidificadores. Já havia cogumelos espalhados, cheirava a mofo, estava tudo fora do sítio.”
Durante 15 dias destacaram um conservador da Torre do Tombo para ajudar Conceição Geada. Aproveitou para começar a fazer um inventário do arquivo administrativo. Além disso, fez dois relatórios, alertando para os tetos que estavam ensopados. A perplexidade relativa ao incidente é a mesma há 50 anos e agora. “Foi uma surpresa para toda a gente. Aconteceu numa segunda-feira, dia em que o Palácio estava fechado. Em princípio, o quadro elétrico ficava desligado. Como é que à noite começou um fogo?”
O seu palpite continua a ser o mesmo. “A minha opinião e de outras pessoas da altura é que foi fogo posto. Na altura correu o boato, se calhar com fundamento, que queriam atingir o secretariado militar que tinha estado aqui no Palácio. Poucos dias depois [a 30 de setembro] derrubaram o [António de] Spínola [Presidente da República desde maio]. Estávamos num período terrível, um caos absoluto.”
Depois do incêndio, Conceição Geada deu o seu testemunho numa reportagem da RTP e acabou entrevistada pela Crónica Feminina — uma revista de sociedade “dirigida às domésticas, de classe média”. “A publicação não tinha preocupações intelectuais, a que propósito estavam a contactar-me para dar uma entrevista? Eles viram na televisão uma casa [a biblioteca] desta envergadura entregue a uma rapariga, era fora do comum.”
Do que falou na entrevista já não se recorda, mas o título guardou-o na memória até hoje. “Foi a parte mais engraçada porque foi bombástico e exagerado, mas verdadeiro. Foi: ‘Depois de Alexandre Herculano e de Ramalho Ortigão [antigos diretores do Palácio], os tesouros da biblioteca da Ajuda confiados a uma jovem bibliotecária’. Estavam a pôr-me ao nível daqueles gigantes, o que era surreal mas, ao mesmo tempo, era o que estava a acontecer.”
A partir daí, muitos passaram a tratá-la como a “jovem bibliotecária” e foi na biblioteca da Ajuda que escolheu ficar toda a sua carreira.
Uma tragédia à espera de acontecer
Numa reportagem emitida pela RTP algumas semanas depois do incêndio, foram recuperadas filmagens daquela noite. Por várias vezes era possível ouvir o desespero na voz de Aires de Carvalho, diretor do Palácio Nacional da Ajuda naquela época. “Labaredas por todo o lado”, repetia vezes sem conta. Olhando para trás, é fácil perceber a sua reação, tendo em conta os vários alertas que já tinha feito sobre a possibilidade de acontecer algo do género.
Foi esse pormenor que mais impressionou Luís Soares (conservador-restaurador do Palácio Nacional da Pena, investigador do Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), quando começou a preparar o seu doutoramento versado sobre a história do Palácio Nacional da Ajuda entre 1910 e 1980. “Ele [Aires de Carvalho] tinha a ideia de fazer na galeria D. Luís um museu de pintura comparada e queria convencer a tutela a fazer obras na Ala Norte para abrir ao público, mas as verbas eram encaminhadas para outro lado”, revela ao Observador.
Estavam a decorrer obras para completar a Ala Norte, a Ala Poente também não estava terminada e essas reparações acompanharam quase todo o século XX. Só terminaram com a abertura do Museu do Tesouro Real [em 2022]. “Aires de Carvalho sabia que o ritmo não era suficiente e que não se estava a dar atenção ao que ficava cada vez mais deteriorado. Começou a alertar para a entrada de água e depois para o risco de incêndio por causa das madeiras muito ressequidas e envelhecidas.”
Em 1971, o Palácio esteve fechado para efetuar obras antes de receber uma cimeira da NATO e houve um foco de incêndio com material. “Foi durante o horário de trabalho, portanto foi logo combatido, mas foi sorte.” Na noite de 23 de setembro de 1974, a história foi outra. Nas semanas que se seguiram ao incidente desenvolveram-se muitas teorias sobre a possível origem do incêndio. Três destacaram-se: fogo posto por motivos políticos; incêndio espontâneo; ou incêndio casual ligado à caça aos pombos, comum na zona da Ajuda.
Investigador, especialista em conservação e restauro
“Sabem que possivelmente o incêndio começou junto a uma janela, na Ala Norte, e que se propagou de cima para baixo e de norte para sul. Porém, as causas ficam sempre indeterminadas.”
“Até 1910, o Palácio da Ajuda fazia a gestão de propriedades aqui à volta e de casas de funcionários e de outras pessoas. Isso passou para a República. Muitas pessoas tinham um rendimento muito baixo e, pelos vistos, era recorrente deixarem aqui armadilhas para apanhar pombos”, conta Luís Soares. Qual é a relação dessa prática com o incêndio? Aires de Carvalho tinha uma teoria. “Ele dizia que poderia ter sido alguém a entrar pela Ala Norte, que estava um pouco desprotegida, para ir à zona do telhado, onde havia ninhos. No meio disso, poderia ter levado algum sistema de iluminação responsável por espoletar o incêndio de forma casual.”
No relatório dos bombeiros e de uma comissão constituída por funcionários da direção geral de edifícios e monumentos há muitos detalhes. “Sabem que possivelmente o incêndio começou junto a uma janela, na Ala Norte, e que se propagou de cima para baixo e de norte para sul. Porém, as causas ficam sempre indeterminadas.” O mesmo aconteceu com o relatório da Polícia Judiciária que, só sendo divulgado em abril de 1976, foi tardio. Apesar de listar todas as teorias, concluiu “causas indeterminadas”.
“É preciso não esquecer que o ano do incêndio foi 74, o período não ajudou. Por isso é que a ideia de fogo posto vem sempre à tona, por questões políticas, reacionárias ou revolucionárias. Possivelmente nem sequer foi fogo posto, mas naquele período toda a gente achou isso.”
Durante muito tempo manteve-se o risco de colapso de mais estruturas e, por isso, houve obras de arte mudadas de sítio. Depois, deu-se uso ao espaço destruído. A conservadora Mafalda Magalhães Barros, com apenas 30 anos e apoiada por duas ou três pessoas, foi a escolhida para ficar responsável pela galeria. “Causou um bocado de estranheza às conservadoras do Palácio, mas nada que nos ralasse. O professor António Ressano Garcia Lamas, que me convidou, teve uma ideia visionária: Apresentar exposições resultantes de investigação académica, o que não se fazia nos museus”, garante ao Observador.
A ideia era clara: adaptação de uma ruína a um espaço expositivo. O escuro das paredes ardidas foi mantido e criou-se uma espécie de pele onde se instalavam os painéis das diversas mostras. “Foi feito com imenso respeito pela pré-existência. O arquiteto foi o João Bento de Almeida.” A partir de 1988, a galeria acolheu a exposição Soleil et Ombre, que veio de Paris; mostras sobre Josefa de Óbidos, Grão Vasco, joalharia contemporânea, lenços e colchas de chita de Alcobaça, gravuras de Goya, entre outras.
Quais as medidas preventivas atuais?
Para o atual diretor do Palácio Nacional da Ajuda, José Alberto Ribeiro, é essencial assinalar os 50 anos do incêndio que destruiu parte da Ala Norte “Foi uma perda patrimonial muito grande e a data serve para nos lembrar, a nós, responsáveis dos museus e bibliotecas, que a salvaguarda tem de ser permanente e os cuidados com o património não podem ser descurados”, garante ao Observador.
A galeria D. Luís I reabriu ao público em 1988 como sala de exposições temporárias com condições modernas. “Claro que modernas significa que têm de estar em constante atualização.”Nas últimas cinco décadas muitas coisas mudaram. Extintores, bocas de incêndio, detetores e alarmes foram algumas das alterações implementadas. “Criou-se uma comissão nacional para avaliar os perigos de incêndio em monumentos nacionais”, explica. No caso do Palácio Nacional da Ajuda, apesar de todos os cuidados, o diretor alerta: “Tudo isto pode sempre acontecer num edifício que já era antigo há 50 anos e que está agora ainda mais antigo”.
Hoje há “para cima de 150 mil títulos” nas estantes da biblioteca do Palácio, explica a atual bibliotecária, Cristina Pinto Basto. “Uns anos depois do incêndio construiu-se uma casa forte e abriu-se uma porta do outro lado da biblioteca, que vai dar ao património cultural.” É na casa forte que está o Cancioneiro da Ajuda, a mais antiga compilação da produção lírica galego-portuguesa conhecida e uma das primeiras relíquias entregues a um GNR para ficar a salvo naquela noite do incêndio.
Se algo semelhante se repetir, as indicações são claras. “Todos sabemos que temos de nos dirigir para a Sala dos Manuscritos e salvar o que conseguirmos, atirando pela janela, seja o que for.” Todos os dias, quando termina o horário de trabalho, são desligados os quadros da eletricidade e da água. A segurança e a preservação são preocupações constantes.
Para a historiadora de Arte, Mafalda Magalhães Barros, é preciso mais ainda. “Não agimos muitas vezes com a cautela necessária. O património lida com a memória, que é o que nos une enquanto povo. É verdade que existe agora um cofre forte, mas o tesouro é o que aqui está [indica as estantes de uma das salas da biblioteca]. Documentos joaninos, documentos sobre a presença dos portugueses no Oriente, partituras musicais dos músicos que vinham trabalhar para a corte. O que aqui temos é de um valor incalculável.”
O Palácio Nacional da Ajuda está aberto de quinta a terça-feira, das 10h às 18h. A biblioteca tem as portas abertas de segunda a sexta-feira entre as 10h30 e as 17h30.