O Internet Archive sempre quis ser a “biblioteca de Alexandria” do século XXI – um local para concentrar a maior quantidade de informação possível. Graças à internet não só este sonho seria à prova de fogo, como não teria as amarras associadas à localização física. Ou seja, conhecimento ao alcance de qualquer pessoa, em qualquer ponto do mundo, desde que houvesse ligação à internet.
Desde 2006 que a organização sem fins lucrativos digitaliza livros, também com o auxílio de bibliotecas, para garantir que algumas das principais fontes de conhecimento globais não desaparecem e continuam acessíveis a qualquer pessoa. Em 2011, decidiu começar a distribuir os livros digitalizados. Cimentou-se o conceito de biblioteca digital: os utilizadores podem requisitar as versões digitais de várias obras, durante um período limitado de tempo, como acontece numa biblioteca entre quatro paredes. E, tal como no mundo físico, só é possível que um livro esteja emprestado a uma pessoa de cada vez.
Em 2020, quando o mundo fechou devido à pandemia, milhões de livros ficaram inacessíveis com o encerramento das bibliotecas. Nesse ano, a Internet Archive muniu-se de um sentido de emergência para permitir que as cópias digitais circulassem por mais pessoas. A ideia de um livro por pessoa caiu por terra, com o Internet Archive a defender que se tratou de uma situação excecional.
Terá sido a gota de água para os editores que, em junho de 2020, avançaram com um processo na justiça norte-americana contra o Internet Archive. A Hachette, a HarperCollins, a Wiley e a Penguin Random House uniram-se contra a biblioteca digital, num caso focado na ideia das cópias digitais controladas (uma figura jurídica contemplada na lei dos EUA) e na infração aos direitos de autor.
Enquanto o Internet Archive se escuda na lógica da democratização da informação e argumenta que as bibliotecas só estão a digitalizar de forma legítima livros que compraram ou receberam como doação, as editoras acusam a organização de estar a contribuir para o aumento da pirataria. Quase três anos após o início do processo chegou a sentença, contrária aos interesses do Internet Archive que já assumiu que irá recorrer.
Em Portugal, o setor livreiro acompanha com atenção os desenvolvimentos do caso e garante que partilha das preocupações das gigantes livreiras em litígio com o Internet Archive.
Internet Archive defende democratização da informação, editoras falam em pirataria
O Internet Archive é uma organização sem fins lucrativos que, além de livros, também disponibiliza o acesso livre a filmes, música, imagens, sons ou software. O empréstimo de livros, o ponto central do caso Hachette vs Internet Archive, é feito através de um site à parte, chamado Open Library. É apenas necessário um registo para aceder a um universo de 1,3 milhões de livros, segundo números especificados pelo Internet Archive na defesa que consta do processo.
“O principal objetivo da Open Library é fazer com que todas as obras publicadas pela humanidade sejam disponibilizadas a todo o mundo”, diz o texto sobre a visão desta organização. “Embora seja uma ambição grande, este objetivo está ao nosso alcance. Chegar lá vai precisar da participação de bibliotecários, autores, membros de governo e tecnólogos. A organização sem fins lucrativos argumenta que “faz o que as bibliotecas sempre fizeram: compra, coleciona, preserva e partilha cultura comum”.
Para tentar alcançar o seu objetivo, o Internet Archive, criado em maio de 1996 por Brewster Khale, em São Francisco, tem acelerado significativamente as digitalizações de livros, especialmente nos últimos anos. Muitas das obras que estão disponíveis para empréstimos digitais têm na primeira página a inscrição de quando foram digitalizadas, com a indicação de que teve o apoio da Khale Austin Foundation, a fundação gerida pelo criador do Internet Archive e pela mulher, Mary Austin. Para fazer esta partilha online o Internet Archive tem recorrido a uma figura jurídica inscrita na lei de direitos de autor norte-americana: “controlled digital lending” (CDL), empréstimo digital controlado. Ana Bastos, sócia da Antas da Cunha ECIJA, especializada nas áreas de tecnologia, media e comunicação, explica ao Observador que esta figura jurídica não existe em Portugal, que “permite que uma biblioteca empreste os seus livros aos utilizadores”, em “determinadas circunstâncias”.
No processo, as editoras acusam o Internet Archive de “violação em massa de direitos de autor” através da digitalização e empréstimo de 1,3 milhões de livros. “Apesar do estatuto de Open Library, o Internet Archive tem ações que ultrapassam largamente os serviços legítimos de uma biblioteca e que infringem a lei dos direitos de autor”. Em suma: “pirataria digital numa escala industrial”. Argumentam ainda que o Internet Archive “não está em busca de ‘conhecimento livre’, mas sim na destruição de um ecossistema cuidadosamente calibrado que torna os livros possíveis”.
As editoras são gigantes da indústria, acumulando centenas de anos de publicação. Também são responsáveis pela chegada ao mercado de milhares de livros por ano – só a Penguin Random House publica 15 mil novos títulos anualmente e, entre livros, ebooks e audiobooks, tem vendas anuais na ordem de 800 mil cópias. No processo são mencionados vários autores, muitos deles contemporâneos – Gillian Flynn, a autora de “Gone Girl”, Elizabeth Gilbert, conhecida pelo sucesso de vendas “Comer, Orar, Amar” ou ainda George R.R. Martin, o autor de “A Guerra dos Tronos”. Também há livros mais práticos, como a coleção “Para totós”. Segundo os queixosos, através da “cópia e partilha de livros de forma gratuita”, o Internet Archive “está a privar os vendedores de livros das vendas que precisam de fazer para se manterem à tona e os autores que recebem direitos de autor” pelo seu trabalho. Já o Internet Archive argumenta que teoricamente a disponibilização destes cópias até pode ajudar as editoras a vender mais, mas o juiz considerou não haver evidência de que isso pudesse ser uma consequência, mesmo considerando as compras do próprio Internet Archive. É que estão diariamente “emprestados” cerca de 70 mil ebooks, segundo dados que constam na ação.
Além do que dizem ser a distribuição massiva de livros, as editoras também tecem mais duas acusações ao Internet Archive: está a incentivar os utilizadores a “patrocinarem” a digitalização de obras, alimentando o ciclo. E, nos casos em que não há uma cópia disponível para empréstimo, o site apresenta uma área de “compre este livro”. A questão, defendem as editoras, são as indicações deixadas nesta página. “A primeira – e mais proeminente – ligação ‘compre este livro’ é a Better World Books, uma empresa de venda de livros usados detida por uma empresa de fachada controlada pelo fundador do Internet Archive.” É ainda referido que o Internet Archive “não apresenta ligações para os sites da editora dos livros ou do autor”.
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Em resposta às acusações, o Internet Archive admite que a “Better World Libraries é a organização sem fins lucrativos que detém a vendedora de livros Better World Books”. Na resposta não é assumido que a Better World Libraries pertença ao Internet Archive, mas é conhecido que são parceiras. Em novembro de 2019, o site de venda de livros descreveu a organização como “uma parceira de longa data do Internet Archive”. A ideia de um ciclo que favorece a organização através destas vendas é negado.
Também é contestada a ideia de que a organização e “as centenas de bibliotecas e arquivos” que apoiam o processo de digitalização e empréstimos controlados “são piratas ou ladrões”. “Os direitos de autor não impedem o direito de as bibliotecas emprestarem livros de que são donas.” Afinal, só estão a ser digitalizadas obras “que foram legalmente adquiridas através de compra ou doação”.
A ideia do empréstimo digital controlado é uma âncora da defesa: “O Internet Archive tem desenvolvido esforços cuidadosos para garantir que os seus usos são legítimos. O programa CDL é protegido pela doutrina de uso justo”, acrescentando-se que “os donos dos direitos não vão ganhar nada se o público ficar sem este recurso”. Os utilizadores só podem requisitar determinados livros e podem ter acesso apenas durante 14 dias, à semelhança do que acontece numa biblioteca física.
Especialistas inclinados a concordar com teoria de violação de direitos de autor
A argumentação feita pelo Internet Archive sobre os empréstimos digitais controlados, os CDL, parece não reunir o apreço de quem se especializou em questões de propriedade intelectual. John G. Koeltl, juiz do tribunal de Nova Iorque, já produziu a sua sentença. O Internet Archive não tem o direito de digitalizar livros e emprestá-los como se se tratasse de uma biblioteca. Esta atividade, considerou o juiz esta sexta-feira, requeria a autorização por parte dos editores, o que não aconteceu.
O juiz Koetl considerou que, embora o Internet Archive operasse sob o princípio do uso justo, qualquer “alegado benefício” não pode ser dissociado do dano para os editores, além de que considerou que “não há nada transformacional na cópia e empréstimo não autorizado pelo Internet Archive”. A consideração de uso justo protegeu, em 2014, o Google Books, considerado, por outro lado, como transformacional por ter criado uma base de dados de pesquisa em vez de ser só um repositório de livros na internet.
“O Internet Archive e outros grupos têm estado a tentar desde 2018 argumentarem com a sua interpretação de uso justo, que permitiria fazer cópias digitais de livros físicos que foram vendidos às bibliotecas, que depois podem emprestar essas cópias digitais às pessoas”, explica em conversa com o Observador Kristian Stout, diretor de políticas de inovação do International Center for Law and Economics (ICLE). Na legislação norte-americana, lembra a “first sale doctrine”, que “diz que se tenho um livro protegido por direitos de autor e vendo uma cópia desse livro, já não posso controlar como o usam”.
“Quem defende o empréstimo digital controlado tenta dizer que uma das coisas que se deve poder fazer é digitalizar o livro e distribuir cópias digitais da obra — mas isso não está de acordo com a forma como a lei dos direitos de autor funciona nos EUA, na minha opinião.” Stout lembra que, “se se compra um livro e se faz a digitalização está tecnicamente a fazer-se uma cópia”, o que, num “sentido muito técnico”, representa uma infração dos direitos de autor.
O Internet Archive defende que só permite que sejam descarregados sem restrições os livros publicados antes de 1924 – ou seja, com os direitos de autor já expirados. “Todos os livros na coleção já foram publicados e a maioria deles já não é impressa”, argumentam também. Mas essa foi uma ideia contestada pelas editoras, já que estão em destaque no site livros de Stephen King, por exemplo. “Não há um argumento plausível de que não é possível licenciar livros do Stephen King”, acrescenta Kristian Stout.
Ana Bastos, sócia da Antas da Cunha ECIJA, lembra a “escala e o volume de cópias disponibilizadas”, um cenário de “cópia e empréstimo massivo que diminui obviamente a compra de livros e afeta as editoras”. “É diferente de ir a uma biblioteca e pedir um livro emprestado ou a biblioteca divulgar livros por fotocópias”, exemplifica. Quem pede livros emprestados ao Internet Archive pode ter acesso a um download, se não quiser ler diretamente no site. “O acesso é um download, evidentemente que tem impactos diretos nos direitos de autor sobre a obra física”, considera Ana Bastos.
“O Internet Archive está a tentar colocar a questão de uma forma romântica, que apela a coisas como ‘a informação tem de ser livre, só queremos educar as crianças’”, refere Kristian Stout. “Mas o que estão a fazer é criar espaço para um movimento legal que fosse usado para minar os direitos de autor de uma forma generalizada, além dos livros e das bibliotecas.” E, se o Internet Archive também disponibiliza música, filmes ou software, o responsável do ICLE acredita que a questão está centrada nos livros pelo facto de a organização “estar a ser tão flagrante a menosprezar os direitos de autor. É como uma chapada na cara”.
“Estão a enquadrar a questão como acesso à informação, ‘as crianças precisam de livros, as pessoas precisam de aprender’. Mas a questão subjacente é que esta regra da venda se aplicaria no tema do empréstimo digital”, realça. E, se vencerem este caso, “vão poder dizer que quem tenha um ficheiro MP3 pode fazer uma cópia e vendê-lo, o mesmo com um filme”.
“Creio que o Internet Archive vai ter a vida dificultada relativamente a este caso concreto”, diz Ana Bastos, pelo que lhe foi possível perceber dos argumentos iniciais. “A verdade é que neste caso há uma lesão dos direitos de autor. Se estivéssemos a falar só no empréstimo dos livros, muito bem, estávamos dentro da finalidade. A questão aqui foi a digitalização em massa destes livros.” E, nesta altura, considera que o desfecho do caso poderá “resultar numa ilegalidade para o Internet Archive.”
Mas ainda há que passar pelos recursos que o Internet Archive já fez saber que irá avançar. “A luta continua”, assumiu a entidade no seu blog após conhecer a sentença. “É um golpe para todas as bibliotecas e comunidades que servimos”, acrescenta.
Ativistas pedem acesso livre a obras literárias
A 20 de março, no dia em que o juiz se sentou para ouvir os primeiros argumentos, cerca de 11 mil ativistas juntaram-se para apoiar o Internet Archive, numa ação organizada pela associação Fight for the Future. Não foi uma manifestação à porta do tribunal, mas antes um abaixo assinado para que a atividade de digitalização de livros se mantenha. “Os acionistas das grandes editoras não devem nunca decidir que livros podemos ler ou como vamos lê-los”, dizem no manifesto. “O seu ataque motivado pelos lucros é um ataque aos direitos de todas as bibliotecas de terem e preservarem livros digitais.”
Entre os signatários estão mais de mil autores, poetas e académicos, incluindo o músico Peter Gabriel. A iniciativa recebeu o nome de “Battle for Libraries”, batalha pelas bibliotecas.
“Ficámos desapontados ao ver o juiz Koeltl focar-se tanto no impacto económico para as editoras durante os argumentos orais”, explicou em comunicado Lia Holland, diretora de campanhas e comunicação da Fight for the Future. “Ninguém está a questionar se as bibliotecas devem poder ser donas e preservar livros impressos e os livros digitais não devem ser tratados de forma diferente.”
Numa conferência de imprensa no mesmo dia em que o caso começou a ser ouvido em tribunal, Brewster Kahle, criador do Internet Archive, falou num momento “horrendo” para a plataforma e também para as bibliotecas. “As editoras querem que milhões de livros digitalizados sejam destruídos”, declarou, dizendo que “este pode ser o momento de incêndio de Alexandria” do Internet Archive, referindo-se ao momento que terá destruído uma boa parte do conhecimento humano, em 48 a.C.
Editores e livreiros portugueses de olho no tema
Não se sabe quanto tempo poderá demorar este litígio entre quatro editoras centenárias e o Internet Archive, mas o assunto está também a ser acompanhado com atenção deste lado do Atlântico. Até porque há livros editados em Portugal que podem ser requisitados nesta biblioteca virtual.
Pedro Sobral, administrador de edições gerais da LeYa e também presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), realça em resposta ao Observador que “partilhamos das mesmas preocupações que levaram a Hachette Book Group, a John Wiley & Sons Inc., a Penguin Random House e a HarperCollins a processar o Internet Archive por violação dos direitos e co-direitos de autor”, explica, falando na qualidade de representante da LeYa e APEL.
[Ouça aqui o segundo episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. Uma história de guerra, de amor e de uma operação secreta].
“As plataformas de empréstimo de livros digitais e de audiolivros podem ser virtuosas e podem ser um complemento à disponibilidade dos livros em papel que as bibliotecas têm”, reconhece Sobral, realçando a importância do conceito “de complementaridade, e não de substituição, dos livros em papel que são, em si, o elemento mais importante e que define, de uma forma central, o papel da biblioteca”.
“O Internet Archive refugia-se na definição de ser uma entidade não comercial e sem fins lucrativos para aceder e distribuir, gratuitamente, conteúdos que foram arduamente escritos e trabalhados por escritores e por editores, não só violando a lei dos direitos de autor mas, acima de tudo, criando a noção de que o trabalho intelectual é e deve ser gratuito”, considera este responsável. “Ora, se isto se torna uma realidade, esse dito labor desaparece e deixamos de ter escritores, editores e uma fonte de conhecimento que, como sabemos, é o que muda o mundo.”
A APEL realça “o trabalho importante na intermediação da leitura que é feito pelas bibliotecas e pelos bibliotecários” e acredita que, se houver “complementaridade das plataformas de empréstimo de formatos digitais”, garantindo “o correto e justo ressarcimento dos direitos de autor aos escritores e editores” e “mecanismos para que não exista pirataria, digitalização ilegal de livros em papel e outras manobras semelhantes”, então é algo “positivo.”
“Qualquer postura como esta do Internet Archive, que, escudando-se nos regimes excecionais que foram criados durante os confinamentos decorrentes da pandemia da Covid-19, quer promover a disponibilidade dos livros de forma gratuita, é, para nós, LeYa, incomportável, e deve ser combatido em todos os fóruns possíveis”, destaca.
Também o grupo Porto Editora, que tem marcas como a Livros do Brasil ou a Albatroz, diz, em resposta enviada ao Observador, que “acompanha com atenção o desenvolvimento do setor dos livros nos EUA em todas as suas vertentes, incluindo o referido processo judicial através do que é do conhecimento público, divulgado pelas editoras e pela comunicação social.”
E, embora destaque que não lhe compete “tecer qualquer comentário ao caso em concreto”, a empresa diz ser uma defensora “do rigoroso respeito pelos direitos de autor, independentemente do formato (livro em papel ou digital), já que se trata de uma proteção legal indispensável à promoção da cultura, da criatividade e da divulgação do conhecimento, eixos essenciais para uma sociedade livre, desenvolvida e democrática.”