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O Instituto dos Registos e Notariado (IRN) sabe há pelo menos sete meses que Álvaro Sobrinho estava a usar documentos de identidade falsos, visto que tinha renunciado à nacionalidade portuguesa em outubro de 1984. Mas os serviços não reportaram essa situação à direção da instituição.
Ou seja, a situação que foi tornada pública a 6 de novembro, através de uma reportagem da SIC, já era conhecida dos serviços do IRN desde o início do ano. Ao que o Observador apurou, esta é a principal conclusão do relatório que resultou de um inquérito aos serviços do Instituto dos Registos e Notariado.
O caso está igualmente a ser investigado pelo Ministério Público, no qual pode estar em causa o crime de falsas declarações perante oficial público, por Sobrinho ter continuado a declarar nacionalidade portuguesa para a renovação dos documentos.
Inquérito do IRN a uso de documentos nacionais por Álvaro Sobrinho enviado ao Ministério Público
O Observador conta-lhe os pormenores de um caso que pode levar igualmente à investigação de indícios de corrupção no IRN.
A descoberta da ‘falha’ no registo por uma Loja do Cidadão
Foi a 3 de abril que da Loja do Cidadão do Saldanha foi feito um telefonema para a coordenação da assistência técnica do cartão de cidadão a indicar que Álvaro Sobrinho não tinha a nacionalidade portuguesa. Deste helpdesk seguiu então um email para a unidade de apoio e informações do Departamento de Identificação Civil (DIC), após se verificar que a nacionalidade do banqueiro angolano constava ainda como portuguesa no Sistema Integrado de Registo e Identificação Civil (SIRIC), embora existisse um registo da perda de nacionalidade com data de 12 de novembro de 1984.
Em apenas cinco dias, segundo o Observador apurou, o DIC assinalou a informação no Sistema de Identificação Civil (SIIC) e cancelou o cartão de cidadão e o passaporte de Álvaro Sobrinho. Neste mesmo dia, 8 de abril de 2024, o Sistema de Segurança Interna (SSI) foi informado por email para a apreensão dos documentos.
O antigo presidente do BES Angola foi notificado do cancelamento do cartão de cidadão e da inutilização do passaporte a 7 de maio e viu os seus documentos serem apreendidos no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, no dia 11 de agosto, regressando então a Angola, onde aguarda agora pelo início do julgamento no qual é acusado de desviar centenas de milhões de euros da sucursal angolana do BES.
O Observador contactou o advogado de Álvaro Sobrinho no processo do BES Angola, Miguel Esperança Martins, para obter um comentário a este caso, mas até ao momento não obteve resposta.
As dúvidas sobre o que os registos fizeram aos documentos de Sobrinho
A legislação em vigor em 1984 previa que a Conservatória dos Registos Centrais comunicasse ao Serviço de Estrangeiros (antigo SEF) e aos serviços consulares estrangeiros (neste caso, Angola) as alterações de nacionalidade, o que veio a acontecer a 12 de novembro desse ano e que consta do processo de nacionalidade do ex-presidente do BESA.
A legislação da identificação civil definia também que o bilhete de identidade de um cidadão passasse a ser nulo se os respetivos elementos de identificação ficassem desatualizados e que o documento deveria ser apreendido e enviado para o Centro de Identificação Civil e Criminal (CICC), caso fosse usado junto de uma entidade pública.
Ministra da Justiça diz que já há falhas identificadas no processo dos registos de Álvaro Sobrinho
Contudo, passados 40 anos entre o requerimento de perda de nacionalidade e a retificação da situação, o IRN não conseguiu ainda perceber se houve a retenção do documento ou se foi averbada a nulidade do bilhete de identidade. A instituição liderada por Filomena Rosa — cujo mandato termina em dezembro — assumiu nas suas averiguações que não conseguiu encontrar os ofícios, uma vez que, devido à falta de espaço nas conservatórias, foram destruídos documentos.
O processo de informatização do assento de nascimento, realizado em 2011 pelo IRN, não atualizou o campo da nacionalidade no SIRIC, o que impediu que a base de dados do cartão de cidadão ficasse atualizada com a indicação de nacionalidade estrangeira.
Ou seja, verificou-se uma falha humana, visto que tal informação impediria as renovações do documento de identificação realizadas por Álvaro Sobrinho entre 1989 e 2020, nas quais declarou ter a nacionalidade portuguesa à qual tinha renunciado em 1984.
Uma combinação de falha humana e erro informático
Os modelos de registo de perda de nacionalidade mudaram ao longo das últimas quatro décadas, tendo existido quatro tipos de averbamento. Porém, a opção de extinção de nacionalidade nem sempre esteve presente em todos os modelos, embora fosse de preenchimento obrigatório; já o campo de indicação de nacionalidade esteve sempre disponível, apesar de ser de registo opcional.
O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) conduziu já uma série de testes que permitiram perceber a existência de diversos registos de perda de nacionalidade sem o preenchimento de qualquer um daqueles campos do formulário durante a informatização do sistema efetuada entre 2009 e 2014.
A análise do IGFEJ concluiu também que o processo de perda de nacionalidade de Álvaro Sobrinho estava incompleto em termos de modelo de averbamento. A uma falha humana acima explicada, juntou-se, assim, um sistema informático incompleto, em que a base de dados não disponibilizava os registos de perda de nacionalidade dos diferentes modelos existentes ao longo do tempo.
O novo inquérito do MP e os restantes processos
A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou esta quarta-feira a abertura de um inquérito no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa sobre a alegada utilização indevida de documentos nacionais por Álvaro Sobrinho, na sequência do envio do processo anunciado em comunicado pelo IRN na última sexta-feira.
“O Ministério Público fez um requerimento ao processo para emissão de certidão de peças do processo para subsequente remessa ao DIAP, com vista a ser registado inquérito. Esse requerimento já foi deferido pelo juiz”, respondeu fonte oficial da PGR ao Observador.
O Observador sabe que o IRN elaborou no passado dia 11 de novembro uma queixa-crime a apresentar no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Estará em causa, pelo menos, o crime de falsas declarações perante oficial público, pois o ex-presidente do BESA terá declarado ter nacionalidade portuguesa para a revalidação dos documentos ao longo das últimas décadas. O Observador sabe que o DCIAP poderá ainda investigar indícios de corrupção.
Além da queixa-crime, foram também enviados o cartão de cidadão e o passaporte entretanto cancelados.
Logo a seguir à divulgação deste caso, a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, sinalizou que esperava que houvesse uma investigação judicial: “O senhor Álvaro Sobrinho também sabia que tinha renunciado à cidadania e não deixou de ter um comportamento que também espero que seja investigado”.
Por que razão Ricardo Salgado e Álvaro Sobrinho vão ser julgados no caso BES Angola?
Este caso surge na iminência do arranque do julgamento do processo BESA, no qual Álvaro Sobrinho foi pronunciado em julho deste ano para julgamento por 18 crimes de abuso de confiança agravado e cinco de branqueamento, numa acusação que foi conhecida em julho de 2022.
Serão igualmente julgados neste caso o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, por cinco crimes de abuso de confiança e um de burla qualificada, e os ex-administradores Morais Pires (um crime de abuso de confiança e um de burla), Hélder Bataglia (um crime de abuso de confiança) e Rui Silveira (um crime de burla).
Álvaro Sobrinho foi ainda acusado em setembro de branqueamento agravado na SAD do Sporting, num processo em que o Ministério Público considera que o banqueiro angolano usou verbas do BESA através da sociedade Holdimo para investir cerca de 20 milhões de euros, tendo chegado a deter cerca de 29,8% do capital da sociedade leonina.
Dezenas de documentos já cancelados pelo IRN
Perante este caso de Álvaro Sobrinho, o DIC encetou um processo de verificação de documentos de cidadãos que perderam a nacionalidade nos últimos anos e encontrou pelo menos 37 cartões de cidadão e 23 passaportes indevidamente ativos e que foram já cancelados.
Além desta verificação, o IRN pediu ao IGFEJ para serem realizadas correções ao sistema informático e na comunicação entre entidades.