As eleições em março e a projetada dificuldade em constituir Governo levam Rui Baleiras, coordenador da UTAO, a antecipar um prazo apertado para a aprovação de um Orçamento Retificativo. “Sinceramente acho que é uma perda de tempo, além de que o Orçamento em vigor permite uma enorme flexibilidade mesmo que um governo tenha opções ideológicas diferentes”.
Em entrevista ao Observador, o responsável pela unidade técnica orçamental, que trabalha junto da Assembleia da República, diz que “o sistema político tem vindo a viver cada vez mais numa bolha separada do resto da sociedade”, que “este não será o melhor momento intelectual para, com calma, ponderarmos soluções estruturais de fundo” no sistema da segurança social e que a geringonça “ajudou a saúde democrática” porque trouxe o PCP e o Bloco de Esquerda, partidos que estavam desinstitucionalizados, para “o arco da governação”.
E atira às medidas em vigor para reter jovens em Portugal. “Devolução das propinas é peanuts” e IRS Jovem não vai fixar trabalhadores. Já sobre os médicos, avança com simulações: um médico recém-especialista, no primeiro escalão da categoria de assistente, que tenha um contrato de 40 horas semanais, vai receber, em janeiro, mais 417,66 euros (14,5%), mas o Estado fica com 55%. Os médicos “nem se aperceberam. Quando agora começarem a receber os cheques ou outras transferências bancárias de janeiro, dos 400 euros quase nem 200 euros levam para casa”.
Já começam a ver-se alguns leilões eleitorais. Períodos eleitorais são maus conselheiros para a economia?
Não, eu acho que os períodos eleitorais são ótimos, desde logo, para a democracia, mas também para o planeamento que os agentes económicos precisam fazer para o curto prazo e para o médio prazo, porque é um momento de prestação de contas e é um momento de apresentação da postura que as plataformas concorrentes vêm propor aos portugueses e à economia.
Deviam apresentar impactos orçamentais das propostas que fazem?
Espero um dia chegarmos a esse estádio de maturidade da nossa democracia. Há instituições congéneres à UTAO que fazem uma avaliação do impacto macroeconómico e do impacto orçamental de um programa padronizado das várias plataformas.
Aqui seria possível com os meios que têm?
Estamos a anos de distância. Não só era necessário uma UTAO 2.0, e ter os estatutos que ando a pedir há alguns anos, como seria também necessário uma outra cultura política. Era necessário formatar os programas, termos medidas de política encaixadas em fichas com informação quantitativa que permitisse introduzir isso num modelo apropriado e obtermos resultados comparáveis para as várias plataformas.
Mas vê-se os partidos, de alguma forma, mais preocupados com a economia? Nestas eleições vemos um conjunto de economistas a participarem ou como deputados ou a colaborarem nos programas dos vários partidos. O que é que isso espalha?
Não é uma novidade relativamente a períodos congéneres. Recordo-me, por exemplo, na campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2015, o Partido Socialista inovou no modo como se apresentou com um programa económico e com um programa eleitoral muito mais analítico e breve. Tradicional em Portugal é os programas eleitorais serem bíblias, de discursos relativamente vagos e pouco precisos na especificação das medidas de política que pretendem alcançar. Também em períodos anteriores houve abertura de outros partidos, nomeadamente do PSD e do CDS, a políticos não profissionais, digamos assim. Mas nos últimos oito anos, sobretudo nos últimos quatro, houve um fechamento muito grande do sistema político…
Fechamento em que sentido?
O corpo de deputados e o corpo de ministros e secretários de Estado tem pouca variedade profissional fora da política. Acho sinceramente que é necessário trazer experiência profissional diversificada para a ação política, porque o sistema político mostra sinais de divórcio com a realidade do dia a dia. Há uma desproporção muito grande entre o espaço que a comunicação social dedica à política e o espaço que a política tem na vida dos cidadãos comuns.
Há desinteresse?
Eu acho que há um bocado de desinteresse. E mais. Há uma bolha. O sistema político tem vindo a viver cada vez mais numa bolha separada do resto da sociedade e, portanto, uma abertura dos partidos políticos, de todo o espectro ideológico, a cidadãos com qualidade reconhecida nas várias expressões da sociedade julgo que é muito importante. Se nós tivermos uma perspetiva de longo prazo, tem havido, infelizmente, uma certa degradação na qualidade da ação política no país.
Ajuda trazer a sociedade civil e a academia para dentro da política?
Contrariar esse fechamento do sistema político, sem dúvida, é um excelente antídoto para soluções demagógicas e populistas de que tudo é fácil, tudo é possível. Não é, infelizmente. Todos nós sabemos da nossa vida quotidiana que não podemos ter tudo e temos de fazer as escolhas e devemos fazê-las num plano coerente com metas bem definidas, a médio e longo prazo, porque senão não conseguimos ser felizes.
Devolução das propinas e IRS Jovem não resolvem problema de emigração
Um dos leilões que têm sido feitos tem que ver com as pensões e, no caso da Segurança Social, começa a ver-se o debate sobre a sustentabilidade do sistema neste período de pré-campanha. As pensões futuras estão em risco?
À questão colocada dessa forma nua e crua diria que não, não estão. Nós não temos um problema de sustentabilidade nos próximos dez anos, mas naturalmente temos que ir fazendo ajustamentos, com maior ou menor profundidade, à medida que avançamos no tempo e o contexto económico, nacional e internacional, muda. Nomeadamente o contexto demográfico. A segurança social e as pensões são um assunto muito sério e o próprio financiamento das pensões precisa ser refletido com seriedade.
Há um grupo de trabalho dedicado a esse tema, mas que pediu para só apresentar as conclusões depois das eleições. Considera que foi um pedido correto ou que neste período eleitoral é que deveriam ter sido apresentadas esses conclusões?
Não quero fazer um juízo definitivo dessa matéria porque não estou por dentro de estudo, não sei a profundidade, embora tenha uma grande expectativa.
Mas esta não é a altura certa para conhecermos as conclusões para que os partidos se pudessem posicionar?
Nós temos uma postura muito de curto prazo. Há um enorme frenesim de sete ou oito partidos políticos concorrentes mostrarem ao que vêm e, ao mesmo tempo, estão ainda a negociar internamente quem vai e quem não vai para as listas de deputados, e quais são os interesses que querem privilegiar em termos da sua agenda política. Não sei se este será o melhor momento intelectual para, com calma, ponderarmos soluções estruturais de fundo. Isso já devia ter sido feito e infelizmente durante o período de governação normal nós não damos a devida atenção a problemas estruturais. Mas eu gostaria de ligar a questão do financiamento da segurança social à tributação do trabalho, que é um problema muito sério.
É muito elevada e é isso que está a impedir a subida de salários?
São duas questões interrelacionadas. A tributação do trabalho é, de facto, muito elevada, é demasiado progressiva, tem demasiados escalões, tem demasiados regimes especiais, muitas exceções, muitos benefícios fiscais, é uma manta de retalhos.
Devia haver menos escalões de IRS?
A resposta vai nesse sentido, menos escalões e taxas marginais mais baixas. A minha preocupação com o IRS, e já agora com o financiamento da Segurança Social, são os efeitos económicos perversos que isto coloca, efeitos económicos perversos no nível de emprego, porque, no fundo, com a tributação do trabalho — e a TSU é também uma forma de tributação do trabalho — está a promover-se a substituição de trabalho por capital, ou seja, por código informático, por máquinas, porque o custo do trabalho relativamente a esse capital fica mais caro. Nós temos em Portugal, e aí a culpa é nossa, a imensa subsidiação da utilização do capital relativamente ao trabalho. Veja o que fazem o Feder, o Fundo Coesão, é subsidiar o investimento em máquinas, em tecnologias.
Imaginem uma pessoa que ganha 80 mil euros por ano em Portugal. Está colocada no início do nono e último escalão do IRS e enfrenta uma taxa marginal de 48%, à beira de passar para a taxa marginal de solidariedade que ainda não foi revogada e veio do tempo do ajustamento no início da década passada, mais 2,5%. Agora, se a empresa aumentar em mil euros o ordenado bruto vai gastar 1.237,5 com a TSU. Com mais mil euros brutos, a pessoa entrega ao fisco 50,5% e 11% à segurança social, ou seja, dos mil euros leva para casa 385 euros, há uma tributação brutal. Ela fica com 38,5% dos mil euros brutos. Mais. O gasto adicional da empresa equivale a 3,2 vezes o acréscimo de salário líquido da pessoa. Isto dá para ver o tremendo desincentivo fiscal que o IRS e a TSU no seu conjunto dá à utilização do fator trabalho qualificado.
Mas que alternativas é que deviam ser aplicadas?
Deixe-me concluir. Usei o calculador do Fisco do Reino Unido para ver quanto é que uma pessoa com o mesmo salário bruto de 80 mil euros ano pagaria na jurisdição inglesa se tivesse o acréscimo de mil euros, cerca de 800 e tal libras. Essa pessoa, cá, como eu disse, enfrenta uma taxa marginal conjunta de IRS e segurança social de 61,5% — os 48% do nono escalão, mais os 2,5% da primeira taxa marginal de solidariedade, mais os 11% da segurança social. Leva para casa 38,5% de um aumento bruto de 1.000 euros. Em Inglaterra, para o mesmo salário inicial, para o mesmo aumento de 1.000 euros, a pessoa leva para casa 58%. Em vez de 38,5%, são mais 20 pontos percentuais. Isto é parte da explicação. Mudar de emprego é um ascensor social, e quando é tão travado é como se tivéssemos o Estado a agarrar as cordas do elevador social e impedir que a pessoa não chegue ao segundo andar. Agora, isto conjugado com os níveis salariais absolutos que são praticados no país é brutal. Isto explica porque é que a economia está no estado em que está.
O exemplo que deu é um caso de salário, para o nosso padrão, elevado. Este Governo tem privilegiado o aumento dos salários mais baixos, nomeadamente do salário mínimo e quase metade dos trabalhadores não paga IRS por ter salários baixos.
Sim, sim, metade dos agregados não paga IRS, e uma boa parte nem sequer entrega declaração de IRS.
Fez errado o Governo ao tentar subir o salário mínimo?
Acho que é insuficiente. A UTAO no estudo que fez de apreciação à proposta de orçamento para 2024 mostra que, numa análise até de mais longo prazo, o PIB per capita não tem deixado de crescer em termos absolutos, mas cai em termos relativos, quando comparamos com a média da União Europeia. Nós estávamos em final de 2022 no 21.º lugar, quando em 2000 éramos o 15.º em termos de PIB per capita em paridade de poder de compra. A produtividade do trabalho quase não tem crescido no século XXI, a chamada produtividade total dos fatores está estagnada desde 2015. E todos os outros países, aqueles com que gostamos de nos comparar na OCDE, estão a subir, a progredir.
Médicos “nem se aperceberam “ do aumento. Estado ficou-lhes com 55%
Como é que podíamos estimular a produtividade?
Se olharmos desde os anos 80 até à atualidade, no espaço da OCDE nós estamos cada vez pior. Em 2022, em dólares a preços constantes a 2016, nós temos um salário médio anual de 31 mil euros, quando a média da OCDE está nos 55 mil. A Dinamarca está nos 60 e muitos mil; os Estados Unidos, que são os campeões em 2022, estão nos 77. Estamos a seis ou sete lugares do fim numa lista de mais de 30 países. Há um estudo do Banco de Portugal de março do ano passado que mostra que o único salário real que subiu, descontando a inflação, e estruturado por níveis de qualificação escolar, foi o das pessoas com ensino básico, até o 9.º ano. É o efeito do salário mínimo. Nas pessoas que têm quatro anos de formação universitária completa, o equivalente ao mestrado atualmente, no pós-Bolonha, o salário médio, em 2006, era igual ao salário médio em 2020 e entre estas duas pontas esteve sempre abaixo. O próprio prémio do ensino secundário relativamente ao ensino básico é cada vez menor. Isso explica, de facto, por que é que as pessoas com mais talento se vão embora, porque é que as pessoas com mais talento não querem trabalhar no Estado. Esse é outro problema da qualificação da mão de obra no Estado, é que os salários nas administrações públicas não só começam em níveis muito baixos como têm uma inclinação muito lenta.
Salário médio real dos trabalhadores com ensino superior ainda está 134 euros abaixo do pré-troika
A medida da devolução das propinas vai conseguir manter os jovens em Portugal?
Não, não é essa a questão. Isso são peanuts quando se compara com o custo total de suportar um curso superior em Portugal. Mais volumoso do que os 700 e tal euros de propinas por ano são os custos dos alunos deslocados no alojamento, na alimentação, nos transportes e o custo da oportunidade de estar no ensino superior, ou seja, o salário que é perdido por se entrar mais tarde num mercado de trabalho. Assim como não vão ter efeito medidas como o IRS jovem.
Propinas também serão “devolvidas” a quem estudou fora e vem trabalhar para Portugal
Não vão ter porquê?
Não vão ter. Coloquem-se na idade de quem tem 30/31 anos e sabe que, com as suas qualificações, tem mercado lá fora. E em que, se calhar, o salário líquido de imposto é duas ou três vezes maior do que aqui e o custo de vida não é duas ou três vezes mais caro, é mais caro do que em Portugal mas muito menos. Acha que vai deixar passar a oportunidade de se valorizar lá fora porque tem uma promessa de que até aos 30 anos, no caso de um partido, ou até aos 35 anos no caso de outro partido, tem um descontozinho, ainda que seja à volta de 30% na matéria coletável? Quando tenho 30 ou 31 anos faço planos a longo prazo para a minha carreira toda, não é por um desconto. E depois… o Estado não é credível, porque hoje é assim, ninguém garante que esse desconto se mantém no próximo ano.
Por esse ponto de vista, qualquer proposta ao nível do IRS para os jovens não vai resolver.
Não faz sentido. O que é preferível é uma redução significativa para todos os cidadãos.
Do IRS?
Do IRS, sim.
E da TSU também?
E da TSU também deveríamos ter, se formos capazes de diversificar o financiamento da segurança social, porque não pode pôr em causa o financiamento das pensões.
Como é que o podemos fazer?
Não faz sentido termos taxas de IRS para a generalidade das pessoas até aos 53% de taxa marginal. Eu ainda tinha aqui um exemplo engraçado dos médicos. No final do ano foi muito saudada a primeira parte de um acordo entre o Governo e o sindicado independente dos médicos, que deu uma valorização para os escalões remuneratórios mais baixos dos médicos, de cerca de 11,5% acrescido de 3% de aumento geral para a função pública, o que dá os 14,5% de aumento no salário bruto. Passar de dezembro para janeiro com mais 14,5% no salário bruto parece simpático. Dou o exemplo de um médico recém-especialista que está no primeiro escalão remuneratório da categoria de assistente e tem um contrato de 40 horas por semana. Essa pessoa vai ter, com esses 14,5%, um aumento em euros mensal de 417,67 euros. Esta é uma pessoa que tem tipicamente 30, 31, 32 anos. E já está em Portugal a pagar 43,5% de taxa marginal, porque está no sétimo escalão. Os nossos escalões começam com níveis muitíssimo baixos. Pagando 43,5% ao Estado sobre este acréscimo salarial, mais 11% à segurança social leva para casa a 190 euros; o Estado ficou-lhe com 55% do aumento. Estamos a falar de pessoas que têm um rendimento anual na casa dos 41 mil euros. Comparando com quem ganha mil euros, parece que é muito, mas estamos a falar de profissionais que têm 12 anos de especialização pós-secundária. E tratamo-los desta maneira. Não vão ficar. As pessoas nem se aperceberam. Quando agora começarem a receber os cheques ou outras transferências bancárias de janeiro, dos 400 euros de aumento quase nem 200 euros levam para casa.
Estudo sobre contagem de tempo de serviço dos professores já começou
Um outro leilão que está a acontecer na campanha é o dos professores. A UTAO tem a incumbência de avaliar o custo da recuperação do tempo de serviço dos professores. Em que fase é que está esse estudo? Será só restringido aos professores ou a toda a função pública?
O pedido apresentado pelo grupo parlamentar do PSD, que foi aprovado pela Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças, era para que a UTAO fizesse o estudo de Avaliação do Impacto Orçamental incluindo todas as carreiras das administrações públicas. Em tese é isso, se lá vamos chegar não sei. Estamos a falar de muitas dezenas de carreiras, carreiras que tiveram nos últimos anos alterações significativas e assimétricas. Por exemplo a carreira da Polícia Judiciária ainda em dezembro levou uma alteração… O pedido é: primeiro vejam lá quanto é que custa repor a contagem integral do tempo de serviço dos professores, os tais seis anos, seis meses e vinte e três dias. E depois digam-nos o que é que significa fazer a extensão, em termos de equidade, a todas as outras carreiras e quanto é que isso custa. Bom, este é um exercício que nunca, o Ministério das Finanças, o Ministério da Presidência, que tem a tutela da administração pública, o Ministério de Educação fizeram. Pelo menos não tornaram isto público, e temos um conflito com os professores há oito anos. Mas a UTAO aceita este desafio e vamos fazer o melhor possível.
Em que ponto está?
Isto tem três fases: fase de reconhecimento de factos; fase de simulações e cálculos; e a fase de redação. Nós estamos na primeira fase. E a primeira fase é essencial. Pode parecer simples para o cidadão comum, mas assim que metermos as mãos na massa vamos ver que é muito complicado. O que é que significa seis anos, seis meses e vinte e três dias? E por que que é este número e não é outro? E que relação tem isto com as reposições que foram feitas nas outras carreiras? Temos que fazer um levantamento bibliográfico — a internet aí ajuda, mas levanta mais perguntas do que dá respostas. E, portanto, nós vamos ter que elaborar questões e consultar entidades que detêm essa informação e, provavelmente, vamos encontrar respostas contraditórias e vamos ter de fazer a nossa própria síntese. Temos de analisar as respostas e, só depois disso, podemos partir para a segunda fase, que é a fase quantitativa.
Nessa primeira fase, está a conseguir ter acesso à informação quando a pede ou ainda não chegaram à fase de pedir?
Ainda não chegámos a essa fase, porque tivemos outras tarefas, só mesmo no fim do ano, é que tivemos a confirmação por parte da Comissão de Orçamento e Finanças (COF) de que o interesse no estudo se mantém, porque eu devo lembrar que o estudo foi aprovado pela Comissão ainda em outubro, muito antes de se saber que íamos ter a crise política em que estamos.
Tem a garantia da parte dos ministérios de que vão ter a informação de que vão precisar?
Não, não. Neste momento, julgo saber que terá sido enviada uma carta a três ministérios, onde nós sabemos que há serviços que poderão ter informação relevante de natureza qualitativa e quantitativa para este estudo, apelando à sensibilidade e para que abram a porta à UTAO quando lá foi bater à porta com perguntas concretas e pedidos.
Quem é que enviou essa carta?
Eu fiz esse pedido por escrito ao presidente da COF e julgo saber que a carta terá sido enviada à ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares pelo presidente da COF, que é quem faz a ponte entre o Parlamento e o Governo.
Em relação aos meios da UTAO para fazer isso, também se queixou de que não tinha meios. Tem a garantia de que vai ter esses meios?
Tenho uma garantia de boa vontade para ter esses meios.
A boa vontade chega?
Os meios também não são assim muitos, se calhar precisamos de duas a três pessoas que a UTAO não tem. Desde logo preciso de competências jurídicas especiais, porque é preciso alguém que nos ajude nesta fase de elaborar as perguntas certas para termos as respostas que pretendemos sobre o que são os vários regimes de trabalho. Na administração pública coexistem uma espécie de dois códigos do trabalho. O código de trabalho propriamente dito, que se aplica também ao setor privado, mas há também a lei do trabalho em funções públicas, e depois ainda há uma série de regimes especiais. O Estado é muito complicado, é excelente a criar as especificidades. É um exército de leis, decretos-leis e decretos regulamentares que nós precisamos de ajuda para navegar.
Não sabem, então, se vão ter esse reforço, não têm essa garantia?
Estamos a desenvolver esforços no sentido de, dentro da Assembleia da República, identificar uma pessoa com essas qualidades e é provável que, em função da natureza da informação quantitativa a que tivermos acesso, isto é, se são dados agregados, se são dados individuais anonimizados ou não, podemos ter (ou não) a necessidade de fazer análise de microdados. E se formos para esta segunda hipótese, que daria resultados mais aproximados da realidade, precisamos de ter apoio microeconométrico.
E quando é que estará pronto, quando é que se finaliza a terceira fase?
Não quero comprometer-me, porque depende de muitos obstáculos.
Mas não será antes das eleições?
Não, seguramente.
Então os partidos que estão à espera das contas da UTAO…
Os partidos já sabem, porque eu já tinha dito publicamente e afirmei-o perante o presidente e os vice-presidentes da Comissão e do próprio líder parlamentar do partido proponente, que isto é um estudo para vários meses, não vai estar pronto a tempo das eleições. Repare no pouco realismo com que os pedidos foram feitos. Quando foi apresentado, em outubro, havia, no seio da Comissão, quem achasse que nós éramos capazes de fazer estas contas em dez dias, para ainda se poder aprovar ou votar a proposta do PSD na especialidade na discussão do orçamento…
Mas podemos ter alguma confiança naquele número que foi avançado pelo governo dos 1.300 milhões de euros?
Não tenho nenhuma base neste momento para qualificar se é muito, se é pouco, porque já vi vários números.
1.300 milhões de euros era para toda a administração pública…
Não sei, parece-me estranho. Ainda hoje de manhã [terça-feira] ouvi dizer que fazer a equiparação na GNR e na PSP ao subsídio da PJ são 115 milhões de euros. E estamos a falar de um micro ou micro subconjunto de funcionários das administrações públicas. Neste momento, qualquer número que eu aqui avance é absolutamente especulativo e não o vou fazer.
Mas temos conclusões este ano?
Sim, espero que sim, nem que seja para dizer: não é possível. Tenho a esperança de que pelo menos em relação aos professores do ensino não superior, porque esse é o núcleo duro do pedido que nos foi feito, consigamos ter alguns números, nem que seja em cenários.
Vai apresentar os números por etapas também: para os professores, depois para o resto da carreira?
É um cenário possível, depende das dificuldades que encontrarmos pelo caminho, e neste momento é prematuro. Nós temos um mapa mental do que pretendemos fazer, necessitamos de apoios externos, como digo, informativo, técnico, mas estamos dependentes até do próprio calendário político. E nós temos uma carteira de atividades regulares, não vou fechar a UTAO para pôr os quatro analistas que tenho, mais a minha pessoa, só para fazer este estudo.
Mas não é perigoso os partidos estarem a fazer promessas sem terem esta contabilização?
Sim, mas é o que fazem todos os anos. Esse é o grande problema de Portugal. Teria muito gosto em falar do processo legislativo orçamental. É que, realmente, muitas vezes são assumidos compromissos sem haver uma visão estratégica por trás, a de saber qual é o problema que temos à partida, o diagnóstico, e quais são as metas que queremos alcançar, metas não financeiras, em termos de resultados. E só depois ver quanto é que isto custa e somar o custo de todas as medidas para ver se é exequível. Mas não é assim que em Portugal o processo político é feito, infelizmente.
Tem falado do Orçamento do Estado….
Desde logo o Orçamento do Estado. O governo, quanto muito, faz isso quando elabora a proposta de orçamento, mas depois de a entregar na Assembleia da República perde o controlo. Na última vez, em novembro, foram duas mil propostas de alteração mais umas largas dezenas de alterações às propostas de alteração, algumas distribuídas na própria reunião em que se está a votar a proposta da alteração original. É um caos absoluto. E muitas delas, largas centenas, com implicações orçamentais, e no mesmo dia são aprovados os mapas contabilísticos que vieram do governo no princípio do processo a 10 de outubro. Portanto ninguém garante coerência, compatibilidade entre os mapas contabilísticos, o orçamento propriamente dito que é aprovado, e as medidas de política que lá foram acrescentadas. Esse é um drama da maneira como nós fazemos política económica em Portugal, é tudo feito para amanhã e começa-se a fazer ontem. Não há uma perspetiva de médio prazo. Porque é que que a lei do Orçamento do Estado não é apenas a lei do Orçamento do Estado? Aquilo é um catálogo infindável de medidas de política, uma verdadeira lei do Orçamento do Estado bastava ter 8, 9 ou 10 artigos.
Já o disse várias vezes, mas cada vez há mais propostas de alteração.
[O Orçamento] Só devia ter os tetos de despesa por ministérios.
Aí o escrutínio era mais difícil de fazer ou não?
O escrutínio faz-se ao longo do ano. As medidas de política deviam ser aprovadas, aquelas que exigem aprovação parlamentar, ao longo do ano. O país que aqui nos dá um exemplo é Moçambique, cuja lei de orçamento anual tem meia dúzia de páginas A4. A nossa chega à Assembleia da República com 190 ou 200 artigos e sai de lá com 250 ou 260. O ano passado, para a lei do OE para 2023, só artigos que alteram impostos eram mais de 50. Este é um drama da nossa política económica, é uma instabilidade absoluta. É ótimo para ser advogado, quem é consultor fiscal está no paraíso, mas para os agentes económicos é uma desgraça.
Ainda assim houve pacotes legislativos à parte. O Mais Habitação, a Agenda de Trabalho Digno…. A UTAO avaliou-os?
Não, não. Com uma UTAO 2.0 e um processo legislativo mais racional poderia haver uma capacidade de pôr sobre a mesa números. É importante saber o custo das medidas, por causa da sustentabilidade orçamental, mas tão ou mais importante é saber o que é que se quer alcançar e avaliar os resultados em termos de eficácia. Há uma gritaria enorme, durante o período do orçamento do Estado, na época de outubro/novembro, sobre promessas e só se diz vamos gastar X, vamos gastar Y milhões, mas para quê? Onde é que estão as metas em termos de resultados? Não estão, fecham-se os livros, apresenta-se a conta geral do Estado. Qual é o balanço que é feito, que resultados foram alcançados? Bola. Ninguém sabe.
O mérito de trazer PCP e Bloco de Esquerda para o arco da Governação
Não havendo esses resultados, poderemos analisar se o país ficou melhor ou pior com este ciclo desde 2016?
Com certeza que sim, eu não sou um velho do Restelo, e não tenho problemas em reconhecer que o ciclo político 2016-2023 trouxe coisas positivas e coisas menos positivas, tanto no domínio político como no domínio económico. No domínio político há uma coisa importante de destacar. O Partido Socialista e o Governo tiveram o mérito de combater um tabu na democracia portuguesa, que foi trazer o PCP e o Bloco de Esquerda para o arco da governação.
A geringonça ajudou ou prejudicou…
Em termos de saúde democrática eu acho que beneficiou. Eu via, com muito medo, a desinstuticionalização da oposição aos pacotes da austeridade na Grécia e noutros países, há 12, 10 anos, 9 anos. Trazer o Bloco de Esquerda e o PCP, partidos tradicionais de protesto, para parte da solução governativa foi uma forma inteligente de institucionalizar a resolução dos conflitos. A sociedade estava muito zangada entre si e portanto isso foi positivo e a contestação social durante, pelo menos, os primeiros quatro anos foi muito reduzida. É claro que as medidas que foram tomadas de reposição de rendimentos foram simpáticas para os interesses maioritariamente defendidos por estes partidos. Mas isso foi um aspeto positivo no domínio político deste ciclo de oito anos. Um aspeto menos positivo foi o fechamento, foi o facto do governo fechar o conjunto de pessoas elegíveis para partilhar responsabilidades governativas no núcleo de pessoas com pouca experiência profissional, pouco diversificada fora da política, pessoas que não dependam do sistema político para viver. As oposições, também é um aspeto positivo, fizeram uma fiscalização apertada da ação do governo, por exemplo, as comissões de inquérito trouxeram a lume informação que, de outra forma, os cidadãos anónimos não teriam. Ainda no domínio político, acho que há um aspeto menos positivo que é transversal a todos os partidos políticos e não é destes últimos oito anos — talvez se tenha acentuado — que é uma crença exagerada na capacidade da legislação para resolver os nossos problemas coletivos. Há um problema, legisla-se. Está legislado, está o problema resolvido, até que alguém começa a contestar uns meses ou anos depois.
Porque é que que acha que isso acontece? As escolas ou os juristas têm muito peso?
Têm. Essa é uma parte da explicação, mas eu não quero acentuar esse aspeto corporativo, mas basta ver as profissões, ou digamos, as formações de base universitárias representadas na Assembleia da República e no Parlamento.
Há outro diagnóstico para esse legalismo em excesso?
O Parlamento é por natureza o órgão legislativo. Claro que também tem ação fiscalizadora, mas sobretudo em momentos de governo fragmentado há um maior recurso da intervenção legislativa do Parlamento, e são centenas, para não dizer milhares, as iniciativas legislativas que são iniciadas na Assembleia República todos os anos. Não há capacidade humana para fazer um trabalho sério, a letra de lei é o fim do processo e não o princípio. Temos de ter um diagnóstico técnico, ouvir especialistas, ouvir beneficiários e perdedores das medidas de política e há muitos problemas que não precisam de intervenção legislativa para se resolver.
E este também é um problema para a economia?
Claro que sim. Eu tiro o chapéu à Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa pelo trabalho magnífico que nas últimas décadas fez de consolidação da legislação. Vejam o que era a nossa dificuldade: íamos à internet, ver uma lei sem saber qual é a versão que está em vigor. Qualquer diploma leva várias alterações ao longo do mesmo ano. Felizmente a Imprensa Nacional também já faz essa consolidação.
Orçamento retificativo? “Não vem grande vantagem mesmo que seja um governo de direita”
Era mesmo importante termos um Orçamento do Estado a entrar em vigor logo em janeiro? Com este adiamento da dissolução da Assembleia da República.
Sim, acho que foi útil. Não vamos ter governo a tomar decisões importantes no primeiro semestre, com capacidade para respirar e pensar a sério no orçamento para 2025. Dá uma âncora de estabilidade às pessoas e permite ao governo a seguir que se preocupe primeiro com o plano económico e orçamental da legislatura para o médio prazo e a seguir com o orçamento do ano seguinte, em vez de termos a solução que aconteceu há dois anos em que um governo entrou e logo a seguir teve que entregar o Programa de Estabilidade que havia sido feito por um governo que já não estava em funções e logo a seguir vai fazer um orçamento retificativo. Nem dá para pensar o que é que querem efetivamente pôr em prática porque uma coisa é o que anunciam em campanha eleitoral, com formações partidárias que não são necessariamente aquelas que vão estar representadas no Governo.
Isso é o que pode vir a acontecer agora, porque temos um Orçamento aprovado, mas se o Governo for para outra força política diferente da atual, já referiram que iriam fazer um orçamento retificativo e têm que entregar o Programa de Estabilidade…
O Programa de Estabilidade não espera, a 30 de abril vão ter de entregá-lo em Bruxelas. Cada um saberá de si, mas acho que não vem grande vantagem mesmo que seja um governo de direita, que terá opções ideológicas mais distintas daquelas que estão subentendidas no OE de 2024 que temos aprovado. Penso que provavelmente não o irá fazer quando perceber o custo de o fazer e o benefício que vai ter.
Não irá fazer o Orçamento retificativo?
Sim, porque desta vez vamos ter governo mais tarde do que em 2022. Em 2022 tivémos eleições a 30 de janeiro e o governo tomou posse em abril.
Porque se atrasou…
E agora acha que vai ser mais rápido? Agora vamos ter eleições mês e meio, 45 dias mais tarde. Todas as sondagens e o bom senso indicam que é uma enorme incerteza quanto ao resultado, quanto a coligações. Penso que o período de negociação de um apoio tão estável quanto possível ao futuro governo vai levar várias semanas, muito mais do que demorou há dois anos porque tínhamos um governo com maioria absoluta. O processo legislativo orçamental são dois meses. Mesmo que tenhamos governo no princípio de maio, até ele apresentar a proposta de orçamento estamos no princípio de junho. Não há tradição de a Assembleia estar aberta em agosto, mas mesmo que esteja em agosto, aprova no final de agosto vai para promulgação, entra em vigor a 1 de outubro. Quer dizer… três meses apenas num ano? A 10 de outubro já tem o governo de apresentar a proposta de Orçamento para o ano que vem. Sinceramente acho que é uma perda de tempo, além de que o Orçamento em vigor permite uma enorme flexibilidade. Mesmo que um governo tenha opções ideológicas diferentes, tem imensa margem orçamental para, com alterações da sua competência, passar dinheiro de umas rubricas para outras. Consegue executar medidas de política diferentes, deixando de executar outras com a quais não concorda sem ter que ir pedir à Assembleia de República autorização para aumentar tetos de despesa ou dívida. Acho que não vale a pena, mas não me compete a mim fazer análises de custo-benefício de cada partido, mas acho pouco plausível que façam isso.
Quanto às contas públicas, a UTAO já disse que o excedente deverá ficar acima de 1%…
A UTAO diz que é muito provável que fique acima dos 0,8 % que é a última meta prevista. Nós temos um excedente histórico, nunca em contas trimestrais tivemos um excedente de 3,3 % do PIB no terceiro trimestre. Há uma sobrestimação, uma sobreorçamentação do custo de certas medidas de inflação, nomeadamente nos impostos, no ISP, que não se vão materializar, porque entretanto os preços da energia, e do petróleo em particular, baixaram nos mercados internacionais. O custo do pacote da inflação não vai ser aquilo que o governo dizia em outubro na proposta de Orçamento. As receitas das contribuições sociais estão a crescer mais até do que no ano passado, em termos de contributo para a variação do saldo, o acréscimo de receita fiscal cobre, basicamente, o aumento da despesa primária fora dos pacotes inflação, Covid, e PRR.
Essas poupanças e essas “almofadas” deveriam ser mais distribuídas pelos cidadãos?
Está-me a perguntar se devemos, daqui para a frente, continuar a ter excedentes orçamentais.
Não é tanto ter os excedentes, pelo menos ter um excedente mais baixo. Ou seja, se o excedente deve ser um fim em si mesmo.
Eu não tenho uma visão de talibã das contas públicas. As contas públicas são um instrumento, não um fim em si mesmo. Nesse sentido, o resultado orçamental é um instrumento para melhorar a vida das pessoas, da sociedade, através da provisão de bens coletivos, da redistribuição do rendimento e da estabilização da economia e através dos bens coletivos, da regulação, promover crescimento económico e prosperidade. Isso é que interessa no fim do dia. Agora, atenção: para nós termos esses fins, temos que respeitar a restrição orçamental e é nesse sentido que o nível do saldo e sobretudo a dívida pública são importantes. Não são um fim em si, mas são um meio. São uma restrição.
Mas o que é que aconteceu agora? Os serviços públicos degradaram-se, portanto, o fim em si próprio foram as contas públicas.
Mas degradaram-se não é por estarmos a diminuir a dívida pública, quem me dera.
Então porque é que se degradaram?
Temos de ver caso a caso. Por exemplo, a saúde, o SNS, é manifestamente uma área em que as pessoas se queixam do agravamento de resultados. E, contudo, é o setor da governação que mais reforços de financiamento levou nestes últimos oito anos — di-lo, e com propriedade, o primeiro-ministro. Tenho a ideia que até entre 2019 e 2021 foram quase 30% de aumento do financiamento do SNS e não é por isso que a coisa se resolveu. Não estou a dizer que o dinheiro está a mais, estou a dizer que temos aqui sérios problemas de eficiência e de um contexto externo muito desafiante, com a demografia, o envelhecimento da população, que aumentam os custos de provisão de cuidados de saúde, com a inovação tecnológica que é cada vez mais cara, seja em medicamentos ou em máquinas para diagnóstico. Depois temos um problema muito sério de gestão dentro do SNS.
Qual é?
O SNS é uma estrutura demasiado grande para continuar a ser gerida da forma extremamente centralizada como foi durante décadas, com a necessidade de assinatura de três membros do governo para, por exemplo, se substituir uma enfermeira que entra em licença de parto. Isso foi assim durante décadas. Vamos ver se agora com a direção executiva do SNS alivia um bocadinho, embora eu pague para ver, para ver se não é mais um canal de centralização. Depois temos o problema das urgências que foram concebidas, desde o início — e não sou eu que o afirmo, eu confirmo —, para funcionar na base de horas extraordinárias. Isto é um mau princípio. Resultou relativamente bem nos anos 80 e 90, num contexto em que tínhamos menos episódios de urgência, em que o pessoal médico, de enfermagem, técnico e auxiliar valorizava menos o tempo livre do que valorizam as gerações atuais, e faziam muitos turnos grandes. Era uma época em que o consultório privado rendia dinheiro, mas não havia os hospitais privados e não havia o estrangeiro como opção. E, nos anos 80 e 90, os salários da administração pública eram relativamente confortáveis para profissões qualificadas. Mas isso acabou. A partir de 2000, passámos a gerir as tabelas remuneratórias — isto é para todas as carreiras — como um instrumento de redistribuição do rendimento, em vez de um instrumento de remuneração do fator trabalho.
E isso…
E isso faz com que as pessoas, sobretudo as mais qualificadas, se sintam penalizadas. Foi-se aumentando os salários mais baixos e não se subiam os mais altos. Temos uma compressão brutal da tabela salarial nas administrações públicas. Isto na saúde é dramático porque aumenta o custo de oportunidade para os profissionais que optam por ficar no SNS. Hoje fazem muito mais horas nas urgências porque os episódios são maiores, porque não se fez uma reforma dos cuidados primários que permita filtrar à entrada a afluência às urgências gerais e de certas especialidades. E há menos profissionais, muita gente que se reformou. Chega-se a junho e já estão esgotados os tais tectos. É uma brutalidade propor um regime remuneratório que tem que ir até 260 horas extraordinárias por ano. Façam as contas de quanto é que isto significa de horas a mais por dia útil do ano — estamos a falar de mais hora e meia, todos os dias, todo o ano não é sustentável. A malta nova tem, e bem, outros interesses na vida e não quer só trabalhar. Isto não tem solução se nós não atacarmos em várias frentes. Começou a fazer-se mas um bocadinho tarde, mas quem quer que seja governo vai ter que ir por aí, atacar o problema em várias frentes. Isto só para dizer que não é apenas uma questão da dimensão do Orçamento, é uma questão de escolhas.
Fundo Medina tem o risco de desorçamentação
Considera que o fundo que ficou conhecido como fundo Medina deveria avançar?
Tenho dúvidas. A ideia é generosa, no sentido de criar aqui uma almofada para nos permitir no futuro, sem comprometer os resultados orçamentais do ano em curso, financiar despesa de capital quando deixarmos de ter os 22 mil milhões de euros do PRR. Agora, isto tem um problema prático e um problema conceptual. O problema prático é que o excedente do conjunto das administrações públicas só é excedente porque há um excedente no sistema providencial da segurança social. Daqui a pouco vamos saber qual é esse excedente, mas deve ser vários pontos percentuais do PIB, 3% ou 4%. Nós temos uma lei de bases da Segurança Social que já manda agarrar no resultado financeiro desse excedente e colocá-lo no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social [FEFSS]. Então quanto é que sobra do excedente consolidado das administrações públicas? Se calhar não sobra nada. Isso é um problema prático. Depois, temos um problema conceptual, que ainda ia mandando abaixo o governo da Alemanha há pouco tempo.
Qual é?
O problema aqui é o risco da desorçamentação, ou seja, passar a haver um saco de dinheiro que não aparece nas contas do Orçamento do Estado. Começa com uma boa intenção que é financiar a despesa pública de investimento. Mas ninguém nos garante no futuro que, se ele for necessário para outro fim, não seja desviado para outra finalidade. No ano passado, tomou posse na Alemanha a coligação semáforo. Foi muito difícil formar esse governo, na Alemanha três, quatro meses para formar governo é habitual — preparemo-nos, pode em Portugal acontecer isso na primavera. Mas só foi possível com uma série de compromissos de despesa para grupos particulares que cada um dos três partidos queria favorecer. E onde é que há o dinheiro? Não havia. Alguém se lembrou: temos aqui um saco de dinheiro, umas sobras da pandemia. O acordo foi assinado até que o Tribunal Constitucional um ano depois disse: ‘Alto lá, estão a ir buscar uns milhões muito largos a um saco de dinheiro que não está no orçamento do Estado e que foi retirado à economia para um fim e agora o governo seguinte vem gastar no outro fim. Não podem fazer isso’.
E poderia acontecer cá o mesmo com o Fundo Medina.
Já aconteceu e as pessoas não têm memória. Ainda me lembro do que era a prática de desorçamentação porem as empresas públicas fora do perímetro de consolidação, as empresas públicas financiavam o Estado e vice-versa. Isso é uma história de má memória.
Mas agora já está tudo no perímetro.
Quase tudo. Por exemplo, a Águas de Portugal não está.
Está na Parpública.
A Parpública é acionista, mas ela não consolida, mas também se consolidasse até ajudava a melhorar o saldo embora não a dívida.
Já é altura de se retirarem os apoios anti-inflação e os apoios por causa da subida dos juros?
Provavelmente, aqueles que não dependem das taxas de juro sim, deve avançar-se nesse sentido porque é importante não perder da memória que o “pacote inflação” é um pacote de ajuda temporária e que não pode comprometer o objetivo mais importante que é recuperarmos a estabilidade dos preços. Deve ser um movimento gradual e, aliás, o governo em funções já iniciou o desligamento de alguns desses apoios. Se não tivermos nenhum choque inflacionista novo com significado, esse movimento deve prosseguir e, em princípio, acabar até o final do ano. Neste momento prevê-se que a inflação na área do euro e em Portugal, em 2024, no final do ano, em termos médios, se situe à volta dos 4 e poucos por cento e depois, em 2025, já no patamar, entre os 2,5 % e os 3%. Acho que aí a economia já tem que viver sem estar ligada à máquina.
E os apoios ligados à habitação?
Aí talvez seja ainda um bocadinho prematuro porque vamos continuar com taxas de juro no mercado retalhista elevadas durante, pelo menos, até ao verão. As autoridades monetárias já o sinalizaram, a descida será lenta, mais lenta do que foi a subida.
Alta velocidade. “Qual é o preço que as pessoas têm de pagar para que a operação não dê prejuízo?”
O TGV deve avançar por acordo PSD e do PS?
O TGV faz-me lembrar uma piscina cujo interior nós não sabemos o que está lá dentro. O que me desagrada nos desenvolvimentos do TGV no último mês é a mesma sensação que teria se estivesse na prancha de uma piscina e ter que saltar lá para dentro sem saber a quantidade de água.
Isso quer dizer o quê? O que é que não se sabe do TGV?
Praticamente tudo. É que eu já vivi este processo do TGV na primeira primeira década do século XXI. Lembro-me que, nessa altura, foi tudo muito escrutinado, os quilómetros, as linhas, as quatro linhas que havia de ligação a Espanha passou-se a uma, o custo das linhas.
Agora está a haver a consulta pública, não é o momento?
Depois de já nos temos comprometido a gastar 2,5 mil milhões por causa de um subsídio parcial da União Europeia. Eu percebo porque é que desta vez se optou por dar pouca informação ao público antes do primeiro compromisso financeiro ser assumido. Porque houve o receio de isto se tornar um novo folhetim como o do aeroporto, com muita divisão na sociedade e o problema a arrastar-se. Agora, sinceramente, gostava de ter respostas a perguntas que só agora depois do tal primeiro concurso ter sido lançado é que começam a aparecer. Expliquem-me porque é que a linha que já estamos a construir entre Sines e Badajoz é uma linha de mercadorias apenas, não pode levar comboios de velocidade elevada; expliquem-me por que é que a nova linha Lisboa-Porto que vão construir e depois até Vigo não pode levar mercadorias. Nós não vamos ter comboios a 220 km/h ou 300 km/h a passar hora a hora, então não pode ir um comboio um bocadinho mais lento com contentores. Outra pergunta.
Porque é que não vamos construir com bitola europeia? Eu já ouvi uma explicação de um responsável da IP e sinceramente não percebi muito bem porque o propósito do TGV não é só ligar Portugal ao primeiro ramal do outro lado da fronteira, é podermos chegar pelo menos a França. E há soluções técnicas. Já há 30 anos havia carruagens que os eixos podiam esticar e encolher e circulavam tanto na bitola europeia como ibérica. Essa conversa desapareceu do espaço público. Depois, oiço falar de custo estimado de 8 mil milhões. Se bem me recordo, 8 mil milhões era o custo de que me falava o Ministério das Obras Públicas, quando eu era secretário de Estado do desenvolvimento regional [entre 2005 e 2009] e andava a construir o QREN. Portanto, há 15 anos. Não houve inflação de então para cá? O país encolheu? São menos menos quilómetros? Portanto, gostava de saber um escrutino independente a essa contabilidade.
Devíamos fazer um relatório para o TGV como foi feito para o aeroporto?
Provavelmente.
Mas a urgência dos fundos públicos…
Esse é que é o nosso problema, de subsidiodependência. Porque estão lá 380 milhões de euros e se a gente não agarra aquilo vai para os outros. E agora é que acordaram? Há quantos anos não se sabia que havia esta pequena banana algures em 2024 para levantar? Depois há outra questão. Para que uma velocidade comercial, mesmo uma velocidade comercial das mais baixas, os 220 km /h, seja praticável, é preciso que a distância entre duas estações seja superior a 100 km/h. Agora querem fazer o TGV a parar em Lisboa, depois vai parar no novo aeroporto, depois vai parar em Coimbra, depois não sei se o lobby de Santarém não quer também lá uma estação, depois vai ao Porto, não sei se Aveiro também não vai lá querer uma estação, depois vai a Braga, depois vai a Valença, depois vai a Vigo, são dezenas de quilómetros. Como é que se atinge sequer os 220 quilómetros a hora que o Alfa já faz durante 40 ou 50 km? Não entendo. Se é para fazer só 220 km/h, não seria mais barato e possível, em vez de fazer uma linha de raiz toda nova, fazer novos variantes à linha do Norte como foi feito aqui na Lezíria do Tejo?
Há muitas questões que deveriam ser respondidas antes de se avançar?
Exatamente. Para eu saber qual a profundidade da piscina para a qual me estou a atirar. E ainda não chegámos a falar do custo dos comboios propriamente ditos.
Fazer esse relatório implicava adiar mais uma vez, não é?
Exatamente. Se nós estivessemos no centro da Europa, em que num raio de 800 quilómetros nós tivéssemos umas 15 áreas metropolitanas de 500 mil habitantes, 600 mil habitantes, faz muito sentido o TGV aí. Agora nós estamos aqui no rabinho da Europa, em que esse raio nem sequer apanha o peixe todo. E, finalmente, a pergunta que também ainda não vi e muito menos a resposta. Qual terá que ser o preço do bilhete para o break even do projeto, ou seja, mesmo só com a componente operacional, esquecendo o custo de investimento, qual é o preço que as pessoas têm de pagar para que a operação não dê prejuízo.
TGV. Bilhete Porto-Lisboa num comboio de alta velocidade deverá custar 25 euros
Falou-se agora dos 25 euros…
Acredita? Ainda no outro dia, por curiosidade, fui ver se o aeroporto de Munique era servido por TGV. O aeroporto de Munique tem uma dimensão, em termos de tráfego aéreo, superior ao Humberto Delgado. E é muito bem servido de comboios, mas não é TGV. Para apanhar o TGV, eu tenho que ir à estação central, ou uma das estações da cidade de Munique, que são 30 minutos a 45 minutos de comboio urbano e tenho de mudar para apanhar o TGV. Se vamos fazer um novo aeroporto, a 30 km de Lisboa, quanto é que se vai gastar para fazer um ramal na linha do TGV para servir o aeroporto e servir também a capital? Isto só vai atrasar a velocidade comercial. São demasiadas perguntas para se ter avançado para este compromisso primeiro dos 2.500 milhões de euros. Mas se calhar, com o facto consumado, o projeto torna-se irreversível e vai ser o grande projeto de obras públicas para os próximos 15 anos.
Não o aeroporto de Lisboa?
Vai custar vários aeroportos de Lisboa e depois não venham com a desculpa que isto vai ser pago pelo setor privado, não vai.
O risco da UTAO desaparecer, mas Rui Baleiras não chegou ao seu limite
Tem falado muito da necessidade de a UTAO ter estatutos próprios. Que progressos é que foram feitos?
Infelizmente, nenhuns. A UTAO, em março de 2022, apresentou um estudo muito aprofundado sobre dois temas diferentes, mas interrelacionados. O processo legislativo orçamental e o desenho institucional da própria UTAO. Fez comparações internacionais e propôs uma reestruturação da UTAO com base no conjunto de 12 princípios a estatuírem lei. São os estatutos. A UTAO tem sido uma unidade orgânica dentro da Assembleia da República, diferente das outras no sentido em que é a única que tem uma ligação de reporte a um braço político, a Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças (COF). Mas o status quo é extremamente ameaçador quanto à sustentabilidade da UTAO. Estou preocupado com o futuro da UTAO porque sem estatutos a unidade está paulatinamente a delapidar a capacidade de retenção de talento.
Têm saído quadros?
Têm saído quadros e a sua capacidade de recrutamento é difícil. O relatório que escrevemos identifica bem as causas desta conclusão do diagnóstico. Em primeiro lugar, faltam-nos garantias formais de independência face aos poderes político e administrativo da Assembleia da República. Nós temos de ter um contexto institucional que induza isenção nas análises e nas responsabilidades dos seus analistas perante o Parlamento e o país no serviço público que nós prestamos de serviço técnico das finanças públicas. Enquanto estou na UTAO — e estou lá desde julho de 2018 — nunca senti qualquer pressão para mudar uma vírgula que seja no texto, e conheci dois presidentes de Comissão Parlamentar neste período. Agora, um sistema que dependa das características pessoais das personagens não é um bom sistema, porque de um momento para o outro pode mudar.
Rui Baleiras, coordenador da UTAO: “É pior” descer o IVA do que distribuir cheques às famílias
Na última entrevista que nos deu, dizia que podia ser demitido de hoje para amanhã.
Sim, sim. Nós precisamos de regras que assegurem a boa governança da UTAO, independentemente de quem forem os personagens circunstanciais que estão no poder político, na Secretaria-geral da Assembleia ou na coordenação da UTAO. Por exemplo, os critérios de escolha do líder. Não está escrito em lado nenhum quem é que o escolhe. Como é que o líder da UTAO é escolhido? Quais são as condições de elegibilidade? Uma pessoa para ser coordenador da UTAO ou diretor que características profissionais deve ter?
Tem um mandato?
Pois, aí está. Não tenho mandato. No fundo o mandato são 30 dias. É que não há sequer um regime do responsável. Estou lá a cumprir um acordo de cedência de interesse público por parte da Universidade do Minho, exatamente igual ao que eu teria se fosse apenas analista da UTAO. A cedência de interesse público pode acabar em 30 dias. Qualquer uma das partes pode dizer “olha, acabou e não há justificação porque é que vamos despedir ou porque é que me vou embora e não há indemnização”. Mas também não há um limite superior. O mínimo é 30 dias, o superior é aberto e isto não é bom. Não está escrito em que condições, por exemplo, é que o coordenador da UTAO pode ser demitido. Na situação atual não precisam de justificar. Depois, precisamos de estatutos que nos permitam ter alguma capacidade de autonomia financeira. Há imensos estudos de impacto orçamental que precisam de modelização, de modelos econométricos, estatísticos, e que nós não conseguimos construir com as pessoas que lá temos. Seria muito útil podermos contratar diretamente com centros de investigação universitária. Também precisávamos de poder ter capacidade jurídica para protocolizar acordos com a Administração Tributária ou com a Segurança Social para acedermos diretamente às bases de dados que têm. Nada disto é possível.
Mas já anda a falar disto há uns tempos.
Eu ando a pedir à Comissão do Orçamento e Finanças atenção para isto, mas por desencontros de calendário…
Não é prioritário para a Comissão?
Não é prioritário. Pedi até o final do ano que me concedessem o apoio de um administrativista para passar à letra de proposta de lei os estatutos que estão em português corrido — mas dizem que não, que não é oportuno, porque o Parlamento vai ser dissolvido, não podemos tomar uma decisão desse tipo. Era só para preparar o texto, para quando viesse o novo Parlamento não se perdesse outra vez um ano, porque já sei que nos primeiros meses não vai haver tempo nem da minha parte, nem da parte dos deputados para tratar disso. É mais um ano que se perde.
Esses pontos que indicou dão-lhe motivação para continuar à frente da UTAO?
Eu sou um peixe de águas profundas. Mas a minha paciência tem limites.
Chegou ao limite?
Não, não chegou o limite, mas avisei que receio que comecem a sair mais pessoas. Elas estão lá há pouco tempo, as perspetivas de progressão são muito pequenas. Depois o regime pessoal está amarrado ao estatuto dos funcionários parlamentares e isso não é adequado para uma unidade que é a UTAO. A UTAO precisa de competências — humanas, profissionais — completamente diferentes dos outros serviços. Pode-se dizer que a Assembleia da República tem uma direção administrativa e financeira e faz o que nós fazemos. Não faz. Faz a gestão do Orçamento da casa, não tem macroeconomistas, especialistas em economia dos impostos, não tem econometristas. Esse tipo de competências não há na Assembleia, temos de ir buscar fora e por isso é importante o tal regime de cedência de interesse público. Eu gostaria que a UTAO pudesse, um dia, ter perspetivas de carreira para oferecer, mas pelo menos que me permitam remunerar as pessoas sem ser em função do passado. Essa figura de cedência de interesse público significa que o salário que é oferecido às pessoas não é negociado, é igual ao que têm no lugar da origem. Isto gera problemas de balneário muito grandes. É como se eu tivesse um balneário numa equipa de futebol e em que tenho jogadores que fizeram formação na casa e têm determinado salário. E depois vem um que porque ganhou muito no ano passado noutro clube vem ganhar o ordenado que tinha no outro clube…
Neste momento, com a mudança do Parlamento, não tem a garantia de que vai continuar a ser coordenador da UTAO?
Estas cedências de interesse público, do ponto de vista objetivo, cessam. Quando a legislatura terminar, que é na véspera de tomada de posse da próxima geração de deputados, o meu vínculo, e o dos dois colegas que tenho nas mesmas condições, acaba. Se as pessoas não tiverem uma elevada estatura moral e algum desprezo por valores materiais…
Gostava de continuar?
Eu gosto daquilo que faço. Sinceramente, não gosto muito do contexto institucional em que o trabalho é desenvolvido, mas gosto muito daquilo que faço e há uma elevada dimensão de serviço público. Toda a minha vida fala por isso. Eu podia ter feito vida no setor privado, no setor financeiro, tive convites para isso e não quis, estive em universidades públicas, estive no governo, ajudei a fundar uma instituição de escrutínio independente — o CFP —, estou agora na UTAO, estou confortável fazendo a ponte entre a produção de conhecimento científico e a subutilização para melhores políticas públicas. Fiz isso em economia pública e finanças públicas, fiz no passado na área do desenvolvimento económico. Gosto. Não gosto é deste contexto institucional e, por isso, enquanto tiver um pouco mais de paciência, os senhores deputados que vierem a seguir, desculpem, mas eu vou insistir com este pedido. Porque sinceramente acho que a UTAO pode deixar de existir dentro de poucos anos se nós não mexermos nisto.