Há anos que se debate se, no futuro, o sistema da Segurança Social vai ou não ser capaz de pagar as pensões dos futuros pensionistas. As previsões do próprio Governo não são animadoras: o fundo criado para pagar as pensões caso o sistema previdencial (aquele que paga as reformas) entre no vermelho, o que poderá acontecer no início da década de 2030, deverá esgotar-se na primeira metade da década de 2050.
Daí que a diversificação das suas fontes de financiamento seja uma das prioridades já estabelecidas pela comissão criada pelo Governo para analisar a sustentabilidade do sistema de pensões. Nove peritos vão, até junho do próximo ano, estudar vias para tornar o sistema mais resistente para garantir pensões no futuro. A própria ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, já lhes atribuiu uma tarefa concreta: procederem a uma “avaliação” daquela que deverá ser a atualização das pensões em 2024, de forma a não comprometer a “sustentabilidade” do sistema.
O grupo, liderado por Mariana Trigo Pereira, ex-economista chefe do gabinete do ex-ministro Vieira da Silva, terá de criar um livro verde sobre a sustentabilidade do sistema. A primeira reunião está marcada para a “segunda semana de setembro”, segundo a tutela, e, até ao primeiro trimestre de 2023, terá já de apresentar um relatório preliminar. Até 30 de junho é a vez do relatório final, onde constarão propostas para o Governo.
O livro verde permitirá uma “discussão informada e alargada”, “habilitando o Governo, de forma técnica e especializada e garantindo uma maior isenção e liberdade de reflexão”, lê-se no despacho do Executivo publicado em Diário da República. Os peritos vão começar por fazer um diagnóstico do sistema, o que implica acesso aos microdados da Segurança Social, que não tem sido facilitado nos últimos anos aos investigadores. “É preciso calcular taxas de substituição [do último salário em pensão] a partir de realidades concretas, com base em dados reais”, disse Mariana Trigo Pereira, ao Expresso, em julho. Só depois partirão para as recomendações.
São muitos os caminhos, não há respostas mágicas, mas os peritos ouvidos pelo Observador concordam que é preciso dar passos para diversificar as fontes de financiamento do sistema sob risco de se virem a atribuir pensões “muito baixas” aos futuros pensionistas. A diversificação será feita através do IVA social, como em França, ou através de contribuições sobre o património? Os especialistas não se comprometem e remetem para a discussão no âmbito do grupo, que terá sessões abertas à sociedade civil.
Manuel Caldeira Cabral, ex-ministro da Economia e atual vogal da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, não tem “ilusões” de que “arranjando-se uma ou duas fórmulas mágicas conseguimos inverter este problema”. “Nenhum país conseguiu isso.” E vaticina um caminho difícil para o grupo, que, pela frente, tem a “quadratura do círculo“, diz, em declarações ao Observador. Susana Peralta, economista, professora da Universidade Nova de Lisboa e especialista em políticas públicas, também tem uma certeza: “Não vamos inventar a roda“.
Sociedade civil vai poder participar
Os alertas para o risco da falência do sistema de pensões têm vindo de vários lado. Um estudo de junho do Banco Central Europeu (BCE) renovou os avisos para os governos agirem, apontando Portugal como um país onde uma ação rápida é mais urgente, sob o risco de, se nada for feito, a dívida pública disparar para níveis incomportáveis.
“As pressões públicas do custo com o envelhecimento deverão aumentar de forma particularmente forte nas próximas duas décadas, quando os baby boomers entrarem na reforma. Na ausência de reformas que reduzam a despesa dos sistemas de Segurança Social, os países vão precisar de cortar noutras partes da despesa pública ou aumentar impostos, soluções que deverão ter efeitos adversos no crescimento”, vaticina o estudo.
Esta necessidade de agir é “particularmente” urgente para países com elevadas dívidas públicas, como Portugal, diz a instituição, assim como Itália, Bélgica, Espanha, França e Chipre — todos eles países que vão assistir a um “aumento agudo dos custos ligados ao envelhecimento até 2040”. Na estimativa do BCE, Portugal será mesmo dos países com o maior índice de dependência de idosos (ou seja, com menos jovens por cada idoso) em 2070, juntamente com Itália e a Lituânia.
Se o problema da sustentabilidade já vinha de trás porque é que o Governo só agora decidiu criar um grupo de especialistas? Porque passou mais de uma década desde a entrada em vigor da lei de bases da Segurança Social, justifica o Executivo no despacho para a criação do grupo: o “Governo sente a necessidade de se poder avançar para o conhecimento em maior profundidade, não só das alterações promovidas desde então, como também na definição de estratégias a adotar com fim à adaptação do sistema e à melhoria do seu desempenho nas suas várias dimensões, nomeadamente a financeira e a social”.
O Observador tentou contactar a coordenadora da comissão, Mariana Trigo Pereira, que remeteu comentários para o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Fonte oficial não elencou as vias de discussão colocadas em cima da mesa — diz, aliás, que essa definição será feita em sede da própria comissão. “As várias vertentes a estudar no âmbito da sustentabilidade do sistema previdencial serão discutidas e definidas no decorrer das reuniões da Comissão”, respondeu. E apenas avançou que o grupo de peritos vai promover uma “participação tão ampla quanto possível” dos parceiros sociais e da sociedade civil.
Vai, aliás, organizar “ações específicas para os diferentes públicos, nomeadamente ações que envolvam os jovens“. Também os moldes dessas ações serão discutidos nas reuniões da comissão. Segundo apurou o Observador, a ideia não será que a sociedade civil possa participar nas reuniões em si, até porque muitas terão um caráter muito técnico (na definição de métricas, por exemplo). Mas organizar sessões públicas onde os cidadãos podem participar na discussão. No despacho da criação, o Executivo define ainda que a comissão terá de contar com a participação dos parceiros sociais e “outras partes interessadas com relevo na matéria” e auscultar “personalidades de reconhecido mérito”.
Os peritos ouvidos pelo Observador concordam com a urgência de diversificar as fontes de financiamento. Esse esforço tem sido concretizado nos últimos anos, com a consignação de novas receitas ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), criado em 1989 como uma reserva (ou uma “almofada”) para cobrir as despesas com pensões em períodos em que a receita contributiva seja inferior à despesa. Até agora, nunca teve de ser utilizado. Mas o envelhecimento populacional e a baixa natalidade colocam Portugal num caminho que se adivinha sinuoso.
Em 2017, com José Vieira da Silva à frente do Ministério da Segurança Social, foi criado o adicional ao IMI (o AIMI, que também ficou conhecido como imposto Mortágua, por ter sido apresentado e defendido pela deputada bloquista). Trata-se de um imposto cobrado aos proprietários de prédios urbanos com valor patrimonial acima de 600 mil euros.
Ficou, então, definido que a sua receita teria como destino o FEFSS e, desde então, já permitiu arrecadar mais de 500 milhões de euros (em 2020, devido à pandemia, as receitas do AIMI e de parte do IRC que também alimentam o fundo foram, a título extraordinário, transferidas para o Orçamento da Segurança Social).
Adicional ao IMI e IRC voltam a alimentar almofada para pagar pensões
O FEFSS é ainda alimentado por uma parcela do valor percentual correspondente às quotizações dos trabalhadores por conta de outrem, pelos saldos anuais do sistema previdencial, pelas receitas resultantes da alienação de património e, mais recentemente, por até 2 pontos percentuais da receita de IRC, bem como pela parcela do adicional do IMI. Em 2020, foi criada uma taxa sobre o setor bancário para ajudar a suportar os custos com a pandemia.
Em declarações ao Observador, Manuel Caldeira Cabral salienta que será essencial incentivar quem está fora do sistema a entrar — encorajando os emigrantes que saíram do país a regressar, estimulando a chegada de imigrantes a Portugal ou incentivando a entrar no sistema quem se encontra hoje desprotegido pela rede da Segurança Social. Uma estratégia que permitiria compensar o recuo demográfico das últimas décadas, diz.
É por isso que tende a não ser favorável a um aumento das contribuições para a Segurança Social, do lado dos trabalhadores e também do das empresas, que, considera, “já são relativamente elevadas”. Carregar mais teria efeitos “na competitividade das empresas, na própria estabilidade de todo o sistema” e afastaria quem estivesse a pensar juntar-se ao sistema.
A questão aqui não é tanto decidir aumentar mais os impostos, mas ver que tipo de receitas, por exemplo sobre o imobiliário — é um dos exemplos — podem reverter de forma favorável para a Segurança Social. Isto se houver um consenso social de que se deve financiar mais a Segurança Social do que apenas com as contribuições do trabalho”, afirma.
Uma das vias que, admite, pode vir a ser estudada passa por direcionar as receitas com o património imobiliário do Estado que não esteja a ser aproveitado para a Segurança Social. Caldeira Cabral refere-se a “muitos terrenos e edifícios do Estado que estão por utilizar, ou que estão subtilizados ou até devolutos”.
“Pode criar-se, de facto, uma fonte de valor interessante para a Segurança Social. Depois, esse valor criado pode reverter em termos de rendas, e aí fica a Segurança Social com um novo financiamento, que todos os meses entra por essa via. Isso era clássico das caixas de previdência — investirem em imobiliário que, depois, arrendavam e com as rendas pagavam as reformas”, explica, salientando que este é “apenas um exemplo”, “não tem de haver formato único”.
Caldeira Cabral admite ainda outro tipo de “novas receitas” ligadas à transição energética. “Se dissermos que uma parte dessas receitas podem ir para a Segurança Social é uma opção, embora normalmente se tenha defendido que uma parte importante dessas receitas deve ir para apoiar a própria transição climática”, aponta.
Taxar lucros das empresas?
Para os peritos ouvidos pelo Observador, não é viável assentar o sistema previdencial em financiamento apenas por via do fator trabalho, dadas as alterações no mercado laboral, com a progressiva redução da população ativa e a robotização. Essa opção levaria a que a natureza do sistema deixasse de ser como atualmente, em que há uma relação entre contribuições e benefícios.
Ao Dinheiro Vivo, a escolhida para liderar o grupo de peritos já tinha dito, em julho, que alguns dos cenários em estudo passam por taxar os lucros das empresas, aumentar as contribuições para a Segurança Social ou incentivar as poupanças dos contribuintes. Sobre taxar os lucros, Mariana Trigo Pereira referia, na altura, que existem países que já implementaram uma taxa nesses moldes, de 2% ou 5%, e que não se trataria de aumentar o IRC, nem criar a tão falada taxa sobre os lucros “caídos do céu”, como em Espanha, onde é temporária. Mas avançar com uma taxa de longo prazo.
Frisando que o tema ainda será objeto de estudo pela comissão, Manuel Caldeira Cabral indicia que “não veria com bons olhos” um eventual aumento da taxa de IRC com o objetivo de pagar pensões, embora admita que uma maior fatia de IRC possa ser usada para financiar o sistema (desde que isso não signifique cobrar mais IRC às empresas). Já um imposto sobre os lucros “é de, facto, uma possibilidade”. Mas tem uma convicção: aumentar os impostos sobre os fatores produtivos “é algo que se deve evitar“.
“[É preciso] Melhorar o financiamento da Segurança Social a prazo, mas evitando que isso seja feito castigando ou carregando mais os fatores de produção. Porque, de facto, há impostos e fontes de receita possíveis que não carregam os fatores de produção. Há outras que sim, e essas têm um efeito mais negativo e têm os seus limites”, defende o ex-ministro da Economia.
É aqui que identifica uma “quadratura do círculo” nos destinos do grupo de trabalho: “Como é que vamos financiar melhor a Segurança Social, evitando sobrecarregar impostos que possam ser negativos para a competitividade da economia?”, questiona.
Se pomos os impostos muito mais altos sobre o capital, teremos mais dificuldades em atrair o capital e o investimento. E Portugal tem uma escassez de capital. É a mesma coisa sobre o trabalho. Se carregarmos mais o fator de trabalho teremos mais dificuldades em atrair pessoas para cá e podemos ter até, em última instância, mais portugueses a saírem do país por haver um peso das receitas sobre o trabalho muito elevado”, acrescenta.
Daí que não seja, à primeira vista, favorável a um aumento das contribuições sociais, atualmente de 11% no caso dos trabalhadores e de 23,75% nas empresas. “Penso que o que este trabalho deve fazer é minorar essa necessidade”. Antes, deve alargar-se e abrir o sistema, de forma a evitar que o “esforço para manter as pensões em níveis razoáveis seja feito mais sobre o fator trabalho”.
Ao Dinheiro Vivo, Mariana Trigo Pereira não colocou completamente de lado mexidas nas contribuições para a Segurança Social, que não têm existido nos últimos anos. A responsável pelo grupo de trabalho adiciona ainda à agenda o estudo de mecanismos de incentivos à poupança, nomeadamente os Planos de Poupança Reforma (PPR). E, tal como Caldeira Cabral defendeu ao Observador, estudar o alargamento das contribuições aos trabalhadores desprotegidos, precários, que estejam fora do sistema. Também admite outra medida que tem sido discutida lá fora: taxar robôs.
Susana Peralta também frisa que nenhum dos peritos tem a chave mágica para o problema da sustentabilidade das pensões e remete propostas para o grupo, mas admite algumas opções. “[Diversificar as fontes de financiamento] é absolutamente essencial. Não sei se através de um imposto sobre os lucros, se qualquer outra contribuição sobre o fator capital”, diz, acrescentando que essa diversificação é essencial mais do que nunca, nomeadamente pelas mudanças no mercado de trabalho e as situações de precariedade que influenciam negativamente o valor da pensão futura.
Esta relação “fragmentada” com o mercado de trabalho “leva a que provavelmente teremos de mudar esta lógica”. “Nós estamos aqui a financiar o bem social e essa coletivização, não há nenhuma razão para os rendimentos do capital estarem isentos — porque esses rendimentos de capital são detidos por pessoas que são, em princípio, em média, mais ricas do que as outras. A lógica da coletivização do risco chama a que tenhamos uma base mais abrangente de rendimentos que devemos taxar”, afirma. Se a via é taxar os lucros das empresas ou através de um imposto sobre a riqueza será o grupo a definir.
Mas a economista admite outras opções: “Em França, por exemplo, há o IVA social que é consignado à Segurança Social. Esta busca pela diversificação das bases de financiamento é algo que tem sido implementado em vários países. Não há nenhuma razão para não fazer parte da nossa agenda do trabalho”, defende.
Aumentar mais a idade da reforma?
Foi uma das sugestões feita pela equipa coordenada por Amílcar Moreira, investigador na área da Segurança Social e professor no ISEG, quando, em junho de 2019, apresentou as conclusões de um estudo sobre a sustentabilidade do sistema para a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
“(…) De entre os cenários de reforma considerados, o aumento da idade de reforma é aquele que parece oferecer um maior potencial para melhorar a sustentabilidade financeira do sistema de pensões”, lê-se no estudo. O Observador contactou Amílcar Moreira, que faz parte da comissão das pensões, mas o investigador escusou-se a comentar os trabalhos da comissão, remetendo para a coordenadora, Mariana Trigo Pereira.
O estudo de 2019 para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, à semelhança de outras previsões internacionais, estimava um aumento considerável do número de pensionistas à luz do cenário demográfico e macroeconómico: de 2,7 milhões em 2020 para 3,3 milhões em 2045. Só a partir daí se observaria um recuo. Mais pensionistas significa maior despesa com pensões; e menor população ativa significa menos pessoas que as financiem. Na altura, os investigadores concluíam que os salários não seriam capazes de compensar o aumento da despesa do sistema, uma vez que o aumento das contribuições seria “insuficiente”.
Pensões. Idade da reforma tem de subir para 69 anos para evitar quebra do sistema
Já aí, apontavam para a necessidade de se encontrar outro tipo de fontes de financiamento para financiar os défices do sistema. E apontavam três reformas possíveis: aumentar as contribuições, tanto dos empregadores como dos trabalhadores — o que ao subir os custos do trabalho, poderia levar a despedimentos —; reduzir o valor das futuras pensões, o que traria riscos sociais, nomeadamente de pobreza, ou levaria as pessoas a adiarem a entrada na reforma —; ou aumentar a idade da pensão. Todos cenários para introduzir em 2025.
O cenário com “maior potencial” seria o aumento da idade da reforma, concluíam. Porque, nos cálculos da equipa da investigadores, permitiria “adiar o aparecimento de défices crónicos no Regime Previdencial da Segurança Social para além de 2070”. A idade da reforma deverá recuar em 2023, dos 66 anos e sete meses para os 66 anos e quatro meses, devido à quebra da esperança média de vida registado nos primeiros anos da pandemia.
Manuel Caldeira Cabral não se compromete quanto a este tópico. “São questões que têm de ser vistas no contexto do modelo, é preciso ver que medidas dessa natureza são necessárias, como podem ser implementadas e que ganhos concretos em termos de melhor valor da pensão face aos salários é que se consegue com cada uma dessas medidas”, frisa.
Governo escuda-se na sustentabilidade para evitar subir mais pensões
A comissão de pensões terá outra responsabilidade: fazer uma “avaliação” àquela que deve ser a atualização das pensões em 2024 e adiante. Essa tarefa foi transmitida por Ana Mendes Godinho, quando na conferência de imprensa de apresentação das medidas contra a inflação, remeteu para a comissão uma “avaliação” dos aumentos dos pensionistas de 2024.
Uma das grandes novidades do pacote anti-inflação anunciado pelo Governo foi o bónus de meia pensão que os pensionistas vão receber em outubro. Só que, em contrapartida, têm em janeiro de 2023 uma atualização das pensões menos ambiciosa do que a que teriam se o Executivo não mexesse nas regras.
Isto porque a lei determina hoje uma atualização automática das pensões em janeiro com base numa fórmula influenciada pelo crescimento económico e a inflação, que está em máximos de 30 anos — o que ditaria um “aumento histórico”, como vaticinado por Costa em junho.
Se essa fórmula fosse mantida, o Governo estima que os pensionistas tivessem, consoante o seu escalão de rendimentos, aumentos em janeiro entre 7,1% e 8%, o que retiraria 13 anos de vida ao FEFSS dado que essa subida seria permanente. O que o Executivo agora faz, como o Observador explicou, é garantir que, somando o bónus de outubro deste ano, com uma atualização mais humilde em janeiro — que vai variar entre 3,53% e 4,43% — os pensionistas têm, até ao final de 2023, um aumento igual ao que teriam se a fórmula da lei fosse respeitada.
E se é verdade que esta alteração de planos não tira dinheiro aos pensionistas entre outubro deste ano e dezembro de 2023, também é verdade que, a partir de 2024, estes ficam a perder quase metade do aumento que receberiam se a fórmula se mantivesse. Essa decisão tem, portanto, efeitos a partir de 2024 no bolso dos pensionistas, e para sempre.
Nas primeiras vezes em que o Governo foi confrontado com esse facto, chutou para canto, insistindo que em 2023 não há perdas (o que, em rigor, é verdade só se tivermos em conta o período entre outubro de 2022 e dezembro de 2023). Na conferência de imprensa com quatro ministros onde as medidas foram explicadas com mais detalhe, a responsável da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, não respondeu diretamente às questões sobre as perdas em 2024. Mas nas respostas que foi dando por várias vezes referiu a sustentabilidade do sistema.
Um dia depois, e perante as manchetes que davam conta de perdas aos pensionistas a partir de 2024, António Costa deu mais gás a essa cartada, e admitiu que a escolha do Executivo se explica com a sustentabilidade. Por um lado, garantiu que ninguém fica a receber menos do que hoje; por outro lado, admitiu que a medida é um travão ao aumento permanente determinado por uma inflação “anómala”, que pesa nas contas do sistema da Segurança Social.
Alguém me sabe dizer se a guerra termina ou continua depois de [20]24? E o que vai acontecer à inflação de certeza durante [20]24? As previsões todas indicam redução, mas vamos ter ou, tal como aconteceu este ano, a realidade foi superando as previsões?”, disse o primeiro-ministro.
A solução deste ano pode não ser isolada, com Costa a não fechar a porta a um novo travão em 2024. Aliás, a ministra Ana Mendes Godinho remeteu, na conferência de imprensa, para o grupo de trabalho sobre a sustentabilidade das pensões uma “avaliação” da atualização de 2024.
Costa abre porta a novo travão a aumento automático das pensões no futuro
“O que estamos a fazer é garantir que não pomos em causa o futuro das gerações atuais (…), garantindo ao mesmo tempo a reposição do poder de compra aos pensionistas agora, quando precisam”, afirmou Mendes Godinho. Este é, portanto, mais um ponto para a agenda da comissão das pensões.
A fórmula da atualização automática, com base na inflação e no crescimento económico, foi criada por José Vieira da Silva em 2008, para estabelecer um racional dos aumentos das pensões, e não deixar essa decisão à arbitrariedade dos governos. No programa Explicador, da Rádio Observador, o ex-ministro do Trabalho e da Segurança Social admitiu que a fórmula tenha de vir a ser alterada se a situação da economia se agravar.
“Estamos na fase de crescimento económico, muito explicado pela recuperação da crise da pandemia. Será que vai continuar assim? Se continuar assim, não haverá risco para a Segurança Social da aplicação da fórmula”, começa por dizer. Porém, “se as decisões do BCE, a continuação guerra, os problemas energéticos se agravarem, não tenho tanta certeza. Por isso, compreendo a prudência do Governo”, ao limitar os aumentos de janeiro.
Vieira da Silva considera que o problema das pensões “não é um problema essencial da Segurança Social”, mas das contas públicas do país.
Sistema no vermelho em 2030
Segundo o Relatório do Orçamento do Estado sobre a sustentabilidade da Segurança Social, o saldo do sistema previdencial deverá passar a deficitário no início da década de 2030 e prevê-se que assim se mantenha, em valores próximos de -1% do PIB, durante a década 2040.
Quando isso acontecer, será necessário ativar o FEFSS, que, porém, deverá esgotar-se na primeira metade da década de 2050, “partindo-se do pressuposto que este será alimentado pelos saldos do sistema previdencial enquanto existam, e pelas transferências resultantes do Adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis, da parcela do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário”, lê-se no documento.
A “almofada” das pensões deverá ter, no final de 2022, acumulados 24,6 mil milhões de euros (11% do PIB), o que corresponde a quase 160% dos gastos anuais com pensões do sistema previdencial. Em 2030, segundo as previsões do Governo, estará nos 36 mil milhões, mas, em 2040, já com o sistema previdencial no vermelho, perspetiva-se que a almofada já tenha encolhido para 27,9 mil milhões e, em 2050, para 6,8 mil milhões.
Almofada financeira das pensões esgota-se ligeiramente mais tarde face ao previsto em outubro
Contactada pelo Observador, Maria Teresa Medeiros Garcia, economista especialista em sistemas de pensões, que fará parte da comissão, salienta que a tónica do grupo não vai versar apenas na sustentabilidade financeira, mas também sobre a “cobertura social e material” e a sua “adequação para garantir que os idosos estejam acima do limiar de pobreza”.
“O sistema de pensões revela-se como uma construção social (assente numa ótica de seguro social) que levou décadas a ser aperfeiçoada (com início no final do século XIX e início do século XX, num contexto de industrialização e urbanização crescentes na Europa, que não devemos esquecer) que todos devemos defender, sobretudo imune ao risco político, que garante a paz social e a estabilidade”, respondeu, por email, ao Observador, remetendo mais esclarecimentos para a coordenadora da comissão.
Um outro elemento do grupo é Armindo Silva, economista e consultor da Confederação do Comércio e Serviços (CCP) que, em 2017, publicou o estudo “O setor dos serviços e os desafios da Segurança Social“, onde defendia uma reavaliação do modo de financiamento da Segurança Social e a redução da carga contributiva das empresas do setor. Ao Observador, apenas referiu que a iniciativa de criar uma comissão para estudar a sustentabilidade do sistema é “positiva” e “demonstra preocupação por parte do Governo”. Mas recusou mais comentários por considerar que podem “condicionar o entendimento e o trabalho do grupo”.
No tal estudo de 2017, Armindo Silva concluía que as reformas implementadas nos últimos anos contribuíram para mitigar o desequilíbrio financeiro do sistema: são elas a contagem de toda a carreira contributiva para o cálculo da pensão estatuária, o aumento da idade normal de reforma, a introdução do fator de sustentabilidade, o condicionamento da atualização anual das pensões ao crescimento do PIB e a convergência do regime da Caixa Geral de Aposentações (CGA) com o regime geral da Segurança Social.
Mas, ainda assim, não foram suficiente para impedir um défice do sistema durante a última crise — tendo sido necessárias medidas temporárias, como o congelamento do Indexante de Apoios Sociais (IAS) e da atualização das pensões, assim como a suspensão das reformas antecipadas. Armindo Silva antecipava uma redução das taxas de substituição mais acentuada do que na grande maioria dos países da UE.
Um estudo da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), lançado no final de agosto deste ano, e coordenado pelo presidente da associação, Álvaro Beleza, e pelo presidente do conselho consultivo da mesma instituição, Abel Mateus, apontava em sentido semelhante, ao concluir que se o sistema não for profundamente reformado, em 2070, a pensão média valerá apenas 38% do salário médio.
Olhar para modelos alternativos de financiamento do sistema previdencial foi uma das prioridades colocadas em cima da mesa por Armindo Silva, da CCP, que defendia, por exemplo, o alargamento da base de incidência da TSU (taxa social única) ao Valor Acrescentado Líquido das empresas — o que permitiria “reduzir de modo substancial a taxa que incide sobre as remunerações”, embora tivesse riscos como o desincentivo ao investimento privado.
Também propunha a redução da TSU para salários baixos porque “permitiria manter” o salário mínimo “em níveis relativamente elevados sem comprometer a criação de emprego ou a competitividade das empresas”. Em compensação, poupar-se-ia em medidas de contratação dos desempregados, por exemplo.
Além disso “seria de considerar uma modulação da TSU em função da classificação de cada empresa” numa escala construída “a partir da respetiva média de cessações de contratos com termo não seguidas por contratos sem termo”, o que “permitiria aproximar os custos privados de cada empresa dos custos sociais decorrentes do desemprego que provocam, os quais recaem sobre a Segurança Social”.
Armindo Silva também admitia a introdução de um novo tipo de plano de pensões de natureza voluntária ou quase automática, que estimulasse a constituição de planos por empresas e trabalhadores até agora excluídos do sistema.
No mesmo estudo, o especialista notou uma diferença de abordagem entre, por um lado, o Banco Mundial e o FMI, e, por outro lado, a OCDE: enquanto as duas primeiras instituições enfatizam a limitação da despesa pública com o sistema de pensões, a OCDE tem dado importância aos problemas da sustentabilidade. Já a Organização Internacional do Trabalho tem olhado mais para os problemas de cobertura universal.
FMI contra aumentos salariais para responder à inflação e outras 7 recomendações ao Governo
O Observador tentou contactar os restantes membros da comissão (Ana Fernandes, especialista em demografia; Noémia Goulart, que coordenou a área de finanças públicas do Conselho das Finanças Públicas; e Vítor Junqueira de Almeida, diretor do Centro Nacional de Pensões), mas sem sucesso.