As sopas feitas pela avó em potes de barro, o leitão assado e a chanfana apurada do avô ou o bacalhau com natas inconfundível da mãe são sabores que marcam a infância de Ricardo Costa, o miúdo agitado e rebelde que entrou pela primeira vez numa cozinha à boleia de um trabalho de verão. Nasceu em Aveiro, sonhava ser jogador de futebol, mas foi durante o curso de hotelaria em Coimbra que optou pelo caminho da gastronomia. Trabalhou em restaurantes na Madeira, Espanha e Londres, onde foi surpreendido por um atentado terrorista em 2005, e sentiu na pele o estigma e o preconceito de trabalhar em restaurantes de hotel. “À exceção de alguns sítios que são nomeados ou distinguidos mundialmente, um restaurante de hotel nunca é visto como uma referência, é sempre algo secundário e à margem do resto.”
De regresso a Portugal, o chef passou ainda pelos restaurantes dos hotéis Vidago Palace e Sheraton, no Porto, mas foi na Casa da Calçada, em Amarante, que com apenas 29 anos ganhou a sua primeira estrela Michelin, uma avalanche de responsabilidade e visibilidade que, confessa, não estava preparado para sentir. “Lembro-me que me deram a notícia por telefone às 10h e estive o dia inteiro sem contar a ninguém. Tinha aquilo entalado na garganta, tomei imenso café e transpirei muito, troquei umas três ou quatro vezes a farda.”
Em 2010 recusou a proposta de ser chef executivo do The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, mas três meses depois acabou por aceitar o desafio de comandar o leme de toda a componente gastronómica do hotel, onde permanece até hoje. Um ano depois, ganhou a primeira estrela Michelin com este projeto e admite ter ficado obcecado em conquistar a segunda. “Entre 2012 e 2014 estava muito obcecado com isso e não foi bom para mim, para a minha criatividade nem para as pessoas que estavam à minha volta.”
Mudou a forma de trabalhar, aprendeu a divertir-se na cozinha, a ouvir mais os outros e libertou-se da pressão das expectativas até que em 2017 o objetivo pessoal foi conseguido. Sobre a possibilidade de receber uma terceira distinção pelo guia gastronómico já no próximo dia 22 de novembro diz ser uma possibilidade que não o inquieta. “Se acontecer, será uma coisa mais natural.”
Ricardo Costa sente já ter construído uma identidade própria, muito focada nos produtos portugueses, na sustentabilidade e nas raízes mais tradicionais, acredita que o futuro da gastronomia passará pela dieta vegetariana e que a grande revolução será quando a cozinha mais simples se juntar ao fine dining. Gostava de abrir um restaurante próprio em Aveiro, a sua cidade, e de ver marisqueiras, cervejarias, restaurantes de praia ou espaços especializados em leitão com uma estrela Michelin no currículo.
É dono de um processo criativo espontâneo e eficaz, gosta de fazer desporto nos tempos livres e tem a fama de ser duro e exigente a trabalhar. A partir do dia 26 de novembro será um dos novos jurados – juntamente com Noélia Jerónimo e Pedro Pena Bastos – do programa Masterchef, emitido pela RTP, e promete surpreender.
Nasceu em Aveiro, a que sabe a sua infância?
Sabe ao leitão assado da Bairrada, chanfana, folares, aletria, leite-creme, rabanadas, filhoses, pastéis de abóbora, a que chamamos bilharacos. Coisas simples, mas muito boas.
Sempre se comeu bem em sua casa?
Sim, inclusive em casa dos meus avós e das minhas tias. Os meus avós estavam ligados à agricultura e ao comércio de gado, tínhamos todos os ingredientes em casa, havia muita atenção ao produto, aos legumes e à carne. O meu avô paterno fazia uma chanfana incrível e um leitão espetacular, comíamos sempre em aniversários e nas festas de família, a minha avó materna fazia a chanfana de uma maneira diferente, mas igualmente saborosa, e um cozido com arroz carolino português mais empapado que me sabia super bem. A minha outra avó fazia sopas naqueles potes de barro, começava a fazer aquilo às 8h da manhã e quando eu chegava da escola às 12h30 para almoçar deliciava-me. A minha mãe também tinha um paladar apurado e imenso jeito para arrozes, tanto de peixe como de marisco, e para o bacalhau com natas que é um prato banal, mas que não consigo comer um igual ao dela em mais lado nenhum.
Li que em miúdo era rebelde e o seu pai incentivava-o a trabalhar nas férias de verão. Foi assim que começou a trabalhar na restauração?
Sim, naquela altura era permitido e até considerado uma coisa normal. Tive o meu primeiro trabalho com 12 ou 13 anos numa oficina mesmo em frente a casa dos meus avós, limpava os carros e varria o chão. No ano seguinte, fiz uma coisa semelhante numa oficina de bicicletas e motorizadas, enchia os pneus e saía de lá todo sujo, tinha um fato macaco e tudo. Depois experimentei a construção civil e adorei trabalhar ao ar livre, ficava bronzeado sem querer e já tinha um ordenado que me permitia comprar as minhas coisas e viajar. Aos 17 anos tive o meu último trabalho de férias no restaurante A Cozinha do Rei, descascava sacos e sacos de batatas, fritava peixe e lavava tachos.
Gostou da experiência?
Sim, no fim do verão a dona do restaurante disse-me: “és tão novo, porque não vais estudar hotelaria?”. Não fazia a mínima ideia de que existia um curso de hotelaria, até àquele momento pensava que um cozinheiro entrava para uma cozinha, começava a trabalhar e ficava ali. Fui pesquisar o que havia e vi que existiam duas escolas na área, uma em Santa Maria da Feira e outra em Coimbra, decidi ir para Coimbra.
Porquê?
Naquela época jogava futebol nas camadas jovens, era defesa e extremo direito e esquerdo porque jogava bem com os dois pés, aliás, tinha mesmo o sonho de seguir essa área. Como jogava em Oliveira do Bairro, fui para Coimbra porque conseguia juntar as duas coisas, o curso e os treinos de futebol três vezes por semana. Fisicamente era duro, confesso que não tirava grandes notas.
Quando é que percebeu que queria mesmo seguir cozinha?
Quando fiz o meu primeiro estágio num hotel no Algarve é que senti a verdadeira adrenalina de uma cozinha, durante o curso foi mais uma adaptação a uma realidade diferente. Tínhamos que ir todos os dias de fato e gravata, já não nos vestíamos à civil para impressionar ninguém, a barba tinha de estar feita, era como a tropa, nas primeiras semanas foi um choque, mas depois entendi que tinha de ser mesmo assim. Depois do primeiro estágio comecei a pesquisar e a descobrir receitas que davam para fazer dez coisas diferentes, era um processo que não terminava em mim, a informação entrava e multiplicava-se rapidamente e isso dava-me muita motivação. No terceiro ano larguei definitivamente o futebol e dediquei-me a isto, até porque se quisesse continuar a jogar teria que deixar de estudar e eu sentia-me como uma esponja a absorver tudo, por isso tinha mesmo de aproveitar esses anos.
Como é que perspetivava o seu futuro? O que se imaginaria a fazer?
Desde os meus oito ou nove anos que praticava desporto diariamente e de repente aos 20 paro e foi um choque grande, aí percebi que um dos meus sonhos já tinha ido à vida e por isso agarrei-me à cozinha e foi nela que me foquei. Não fiz muitos planos, sabia que não queria cometer determinados erros que já tinha cometido, que tinha de tentar sempre melhorar e aprender, no fundo, a cozinha é muito parecida com o futebol.
Que referências gastronómicas é que tinha?
Não tinha muitas, lembro-me que muitos dos meus colegas de turma foram para a Quinta das Lágrimas, quando o chef Joachim Koerper começa a fazer a consultoria, depois havia o Vítor Sobral e o chef Jerónimo Ferreira que também eram inspiração.
Termina o curso e vai trabalhar para fora, o que é que essas experiências internacionais lhe dão?
Primeiro fui para um hotel em Porto Santo sem conhecer ninguém e numa época em que só havia dois canais e as comunicações eram mais difíceis, depois vou para Espanha para o “El Girasol” restaurante com duas estrelas Michelin trabalhar com o chef Joachim Koerper durante um ano e meio. Foi lá que ganhei as bases que não tinha adquirido cá, os pontos de cozedura, os caldos bem feitos e o interesse pela matéria prima fresca, depois a multiculturalidade presente na cozinha e o espírito de competitividade também foram muito importantes para mim. Já sentia que o mercado espanhol era muito diferente do nosso, em Portugal existiam meia dúzia de estrelas Michelin, mas ninguém sabia ou valorizava isso. O chef tinha alguns planos para mim, mas que não se concretizaram, como estava longe de casa, dos amigos e da namorada, um dia arranquei e vim embora, um pouco frustrado até. Quando chego, conheço o chef Jerónimo Ferreira que me convida para fazer a abertura do hotel Sheraton no Porto, estive lá dois anos. Estas duas experiências com dois chefs que ainda hoje consulto quando preciso de tomar decisões profissionais são um pouco o reflexo do que faço hoje aqui no The Yeatman, por um lado a gestão de uma equipa grande capaz de cobrir as várias facetas do hotel e por outro lado um restaurante Michelin.
Quando é que depois vai para Londres?
A certa altura fiz um jantar vínico que correu muito bem e onde estava alguém que ia abrir um restaurante em Londres e me convidou. Naquele momento sentia que ainda precisava de mais mundo e de aperfeiçoar o meu inglês para depois regressar com uma dinâmica diferente. Em 2005 faço a abertura do restaurante The Portal e quando chego lá recebo a notícia de que a minha mulher estava grávida.
Então tinha nove meses para voltar?
Não [risos]. O nosso plano era ela ir ter comigo, sermos pais em Londres e depois eventualmente passar por outros países como França, até que em julho de 2005 acontecem os atentados terroristas e a primeira bomba a explodir foi a cinco minutos de minha casa e eu por acaso estava na rua. A partir daí, o medo instalou-se e só pensámos em vir embora. Quando cheguei, faço o encerramento do Vidago Palace e no ano seguinte vou para a Casa da Calçada, em Amarante, que já tinha uma estrela Michelin ganha pelo chef Cordeiro, mas no ano em que entro, o restaurante perde a estrela.
Como foi essa fase?
Foi uma depressão, levei com tudo, vivi uma coisa que não desejo a ninguém. O projeto caiu a pique, não apenas o restaurante, mas também os eventos e o alojamento, o hotel ficou vazio, 2007 foi o pior ano da minha carreira. Tive que me aperfeiçoar na congelação, comprava as coisas para congelar, emocionalmente foi muito complicado, estava longe da minha família, não vinha todos os fins de semana a casa e ainda por cima tinha uma filha pequena. Em 2008 estive quase para sair, achava que já não aguentava mais aquilo, mas senti um clique quando recebemos um inspetor do guia, servi o menu, o serviço correu bem, senti umas vibrações positivas e em 2009 ganhámos a estrela.
Que efeito é que isso teve em si?
Ia-me matando, sofri muito, tinha 29 anos, fui o chef mais novo a ganhar e não estava mesmo preparado para aquilo tudo. De repente tive que começar a dar entrevistas, a falar para a televisão e a ver fotografias no jornal, foi um pânico e uma verdadeira avalanche. Lembro-me que me deram a notícia por telefone às 10h e tive o dia inteiro sem contar a ninguém. Tinha aquilo entalado na garganta, tomei imenso café e transpirei muito, troquei umas três ou quatro vezes a farda. O meu chef de pastelaria foi o primeiro a saber, depois acho que telefonei para casa e a reação foi ótima.
Nunca se deixou deslumbrar?
Acho que não, senti um bocadinho a pressão a seguir, mas pensei: “ok já tenho uma estrela, agora vou fazer as coisas à minha maneira, mais como eu acho que deve ser”.
Passou por vários restaurantes de hotéis numa altura em que eram vistos como espaços gastronomicamente mais fracos. Sentiu esse estigma?
Sim e ainda hoje sinto. À exceção de alguns sítios que são nomeados ou distinguidos mundialmente, um restaurante de hotel nunca é visto como uma referência, é sempre algo secundário e à margem do resto.
Porque é que acha que isso acontece?
Não há investimento suficiente em determinados sítios para se conseguir ter uma boa cozinha e dignificar o serviço que existe em Portugal. De uma maneira geral, os hotéis olham para o restaurante apenas como um número, é verdade que são números, estamos a falar de um um negócio que tem de ser rentável, mas depois há que saber gerir a outra parte e ver que isto acontece entristece-me um bocado, confesso.
Vir para o The Yeatman como chef executivo em 2010 foi uma decisão óbvia?
Nada, foi uma decisão até bastante difícil. Estava numa posição muito confortável, com uma estrela, e quando me fizeram a proposta recusei, achava que não era altura certa, mas passados três ou quatro meses voltaram a falar comigo. Aborreci-me um pouco com a direção da Casa da Calçada e tinha uma filha com quatro anos que praticamente não conhecia o pai, então pensei: “fiquem lá com as estrelas que eu vou embora daqui.”.
Sente que já tinha uma identidade gastronómica nessa altura?
Estava a ganhar forma, não estava era tão definida como é hoje. Sempre trabalhei com produtos portugueses e sempre tive uma raiz muito tradicional, ainda que com algumas nuances dos sítios por onde já tinha passado e dos chefs com quem já tinha trabalhado. Deu-me muito trabalho construir este ADN, há pessoas que nascem com um dom e se calhar não têm de trabalhar tanto, a mim calhou-me trabalhar. Estou no The Yeatman há 12 anos, gosto de estar aqui, as pessoas gostam de mim, há um respeito mútuo e também há regras a cumprir. Tenho exclusividade com o hotel e não posso fazer dez consultorias ou estar em dez sítios ao mesmo tempo, mas estar aqui a 100% permite-me estar sempre a afinar qualquer coisa, seja a melhorar a carta do bar, o room service ou o staff, até chegar ao restaurante gastronómico.
Ganhou duas estrelas com este projeto, uma em 2011 e outra em 2017. Sentiu o mesmo choque e a mesma avalanche que sentiu em Amarante?
Os primeiros anos aqui não foram incríveis, não apostámos nos destinos corretos, não apostamos em Portugal e em Espanha, mas sim em Inglaterra e nos Estados Unidos, se fosse outra companhia qualquer teria vendido isto logo no primeiro ano. Quando ganhámos a primeira estrela a notícia ganha logo muita expressão cá e em Espanha, começámos a atrair esse público e a partir daí o The Yeatman cresceu e tornou-se neste monstro.
O objetivo quando se ganha uma estrela é sempre ganhar a próxima?
No meu caso foi. Ganhar a segunda estrela era um objetivo pessoal e de carreira, pensava muitas vezes: “se ganhar a segunda estrela posso arrumar as botas e ir fazer outra coisa qualquer”.
Ganhar a terceira é agora uma ambição?
Se acontecer, será uma coisa mais natural. Ao longo destes anos descobrimos que com muita pressão e tensão acabamos por fazer mal às pessoas e à própria instituição. Quis muito ganhar a segunda estrela, entre 2012 e 2014 estava muito obcecado com isso e não foi bom para mim, para a minha criatividade nem para as pessoas que estavam à minha volta. Naquele período só pensava em técnicas, só queria produtos novos, mas depois caiu-me a ficha, mudei as coisas e comecei a divertir-me a cozinhar. Não chegámos à segunda estrela por cozinharmos melhor, mas porque fomos mais inteligentes tecnicamente, fechámos o restaurante aos almoços, tirámos os pratos à carta, fizemos dois menus de degustação e apostámos num lado mais técnico para simplificar o nosso trabalho e o nosso resultado final. Trabalhei com esse objetivo, mas se não estivesse tão obcecado com ele poderia ter ganhado um ano antes.
O que acha que vai acontecer este ano?
Acho que Portugal pode ganhar quatro ou cinco primeiras estrelas, aqui no Porto talvez apostasse numa para Vasco Coelho Santos, do Euskalduna, e para o chef do hotel Le Monumental [Julien Montbabut], gostei muito do jantar que tive lá em fevereiro.
Como é que se consegue um equilíbrio harmonioso entre a técnica, o sabor e a criatividade, mas também a visão de negócio e de gestão de um projeto como este?
Gosto muito do trabalho de gestão, seja a ligação com os fornecedores, pensar nos preços ou nas fichas técnicas, mas também a parte dos recursos humanos, que é o momento em que faço as minhas consultas de psicologia diárias e gratuitas [risos].
Quando cria uma nova carta, onde é que vai buscar inspiração?
Está tudo no meu subconsciente, tento não forçar, se o fizer não consigo fazer nada. O meu processo criativo é muito natural, tenho é de estar feliz, contente, tranquilo e sem pressão para poder criar, aí começo a escrever e as coisas acabam por sair. Foco-me sobretudo nos produtos portugueses não por estratégia, mas porque tem mesmo a ver comigo. Os nossos clientes são maioritariamente estrangeiros e quando vamos ao Japão, França ou Itália queremos comer a gastronomia local e não um nigiri de foie gras. Aqui tentamos explicar o produto, a região do país de onde ele vem e, claro, os vinhos. Tenho uma relação muito próxima com os produtores e uma preocupação especial com a questão da sustentabilidade, tento que o produto viaje o menos possível e cada vez importamos menos ingredientes, à exceção das trufas ou do caviar. Trabalhamos com carnes de Bragança, bivalves de Aveiro, legumes de muitos sítios, só tenho de escolher o tamanho e a cor que quero para determinado prato. No geral, gosto mais de trabalhar o peixe, talvez porque goste mais de comer peixe e marisco.
Tirar a proteína animal de um menu é um desafio?
Neste momento já é uma coisa natural. Hoje, por exemplo, almocei uma refeição vegetariana no meu gabinete: salada, batata doce, espinafres e mozarela e um kiwi de sobremesa. Com o estilo de vida que tenho sinto que já não preciso tanto comer hidratos e proteína animal, não gasto tanta energia.
Acha que o futuro passará por esse tipo de dietas?
Sem dúvida, até porque as pessoas têm hoje muito mais informação e conhecimento. Sinceramente não sou apologista do veganismo, mas do vegetarianismo sim, nem que seja em determinadas alturas do ano ou da nossa vida. A comida crua é espetacular, só tem benefícios para a saúde e para nós chefs é praticamente igual desenhar um menu vegetariano ou um menu não vegetariano, a lógica é a mesma, temos um conceito e adaptamos esse conceito a pratos diferentes. Claro que atualmente o vegetarianismo é uma moda, toda a gente quer experimentar, mas acho que veio para ficar, acredito que daqui a uns anos as gerações mais novas vão ter hábitos alimentares completamente diferentes dos nossos. Vi os meus avós a fazerem chanfanas e sopas com feijão, os meus filhos já não vão ter essas referências. Eu comia não sei quantos ovos moles, mas como estará a doçaria tradicional daqui a 10 anos com a quantidade de açúcar que tem? É uma quantidade bombástica e quase mortal. Hoje as pessoas têm estilos de vida em que gastam muito menos energia e calorias do que antigamente e tem de existir uma adaptação da alimentação em consequência dessa mudança.
Tem fama de ser um chef duro e exigente, isso corresponde à realidade?
Tenho a fama, mas acho que já não tenho o proveito [risos]. O bicho ainda está cá dentro, mas mudei, fui obrigado a isso e depois fi-lo de uma forma consciente. Já não sou aquele militar, o primeiro a chegar e o último a sair, hoje vejo as coisas de uma forma diferente, sinto que gozo mais a vida e preciso disso. Quando ganhámos a segunda estrela aqui no hotel percebi que o tínhamos conseguido de uma forma orgânica, com alegria, com diversão e com o feedback dos clientes, sem aquela obsessão e aquela pressão toda. Depois fui-me adaptando a uma forma de ser e estar no dia a dia, a saber ouvir, tudo isso é fruto de um crescimento e maturidade.
O ambiente nas cozinhas é ainda violento e hostil?
Quem o fizer hoje vai ter que mudar, não podemos estar constantemente aos gritos numa cozinha como antigamente, a humilhar as pessoas através do cansaço. Fui um bocadinho vítima disso, mas tinha um espírito rebelde, não me calava facilmente nem baixava a cabeça.
O que mais valoriza com quem trabalha consigo?
Gosto de trabalhar com gente simples, humilde e que queira aprender, não gosto dos que têm tiques de vedeta. Quando as pessoas querem efetivamente isto, é gratificante poder ajudá-las a evoluir e potenciar o seu talento. Trabalhar nesta área é intenso, acelerado, temos de estar preparado para dar tudo e devemos ser exigentes. Estou cá para reconhecer valores, dá-me muito gozo no final do ano promover os cozinheiros e atribuir prémios em função do trabalho e da entrega da minha equipa.
É daqueles chefs próximos que vai beber um copo no fim do serviço?
Não, nunca. Há uma distância que acho importante manter, não quero dizer que não faça uma viagem ou um evento com eles e façamos as refeições todos juntos, mas no dia a dia isso não acontece.
O Porto também mudou gastronomicamente nos últimos anos, o que ainda faz falta à cidade?
A cidade ganhou muito mais oferta, hoje é possível jantar segunda-feira num indiano, na terça ir a um mexicano e na quarta ao vegetariano ou fazer um roteiro de restaurantes com estrela Michelin. Sinto que faz falta um melhoramento nas marisqueiras em Matosinhos, são dos melhores sítios que temos no país para comer e é preciso uma evolução a nível de imagem, de serviço e de higiene. Acredito que a revolução gastronómica no futuro será pela cozinha tradicional e não pelo fine dining, quando juntarmos os dois conceitos, e isso pode demorar dez anos, será explosivo, é esse o caminho. Era importante e necessários termos uma marisqueira com uma estrela, tal como um restaurante de leitão, que é um produto tão especial que mais faz as pessoas viajar. Em Portugal deveríamos olhar para as marisqueiras, para o leitão da Bairrada, para cervejarias e para os restaurantes de praia com outro olhar para elevar esses conceitos a um outro nível.
Admite que trabalhou com o objetivo de ganhar uma estrela, mas não pode ser ingrato condicionar o seu trabalho e a sua ação em prol dessa intenção?
Ao estar num hotel como este consigo combater essa frustração, consigo ir buscar uma satisfação criativa a outros pontos. Quando mudo a carta do bar, faço uma coisa internacional com sanduíches e mais divertida, quando faço a carta do restaurante The Orangerie, aposto na comida de conforto e de tacho, nas caldeiradas, nos arrozes e nas postas de carne, quando faço os menus para os jantares vínicos, desenvolve uma cozinha mais experimental, em que oiço muito o feedback dos clientes. Desde a comida do pessoal até ao restaurante, consigo estar sempre a fazer coisas diferentes sem sentir nenhum tipo de limitação, é como se tivesse sete restaurantes a meu cargo.
Sente que o setor está unido ou esse efeito pós pandemia já passou?
Entre os restaurantes estrelados temos uma boa relação, telefonamos várias vezes uns aos outros e não sinto a concorrência. Há um ou outro caso, mas são coisas pontuais e dou-me bem com todos.
Hoje em dia um chef não está só na cozinha, é também uma figura conhecida, mediática e influente. Interessa-lhe explorar isso? Acha necessário?
Houve uma determinada altura em que comecei a achar que as entrevistas eram muito aborrecidas, faziam quase sempre as mesmas perguntas e era tudo abordado de uma forma superficial, hoje acho que faz sentido expor algumas coisas porque há uma curiosidade.
Como surge o convite para ser jurado do Masterchef, que estreia dia 26?
Há 10 anos fui jurado do programa Top Chef, também na RTP, só com concorrentes profissionais. Ganhou o Alexandre Silva e gostei muito da experiência. Nessa altura, não esperava nem senti um grande impacto a nível de clientes; lembro-me que nos primeiros meses tive um reconhecimento na rua, as pessoas cumprimentavam-me e conheciam a minha cara de algum lado. Ao longo destes anos, acho que fui convidado para todos os programas dos Masterchef, ia pontualmente para algumas provas específicas, até que este ano a produtora contactou-me e perguntou se eu estaria disponível. Foi difícil e intenso, mas voltava a repetir.
O que é que aprendeu?
Voltei a olhar para as coisas mais simples e básicas que fazem parte do meu dia a dia e que já dou como garantidas, como um simples pudim. Tinha mesmo de estudar a prova para depois poder avaliar, sinto que recalquei um pouco os meus conhecimentos para poder fazer bem o meu trabalho.
Vai ser o chef mais duro que todos vão temer?
Acho que não vai haver ninguém assim, o programa é didático, emotivo, divertido e construtivo, as pessoas vão gostar. Acho que faz sentido continuar a apostar nestes formatos se eles refletirem efetivamente aquilo que se passa hoje nas cozinhas, ou seja, sem qualquer tipo de violência. Se calhar nos primeiros episódios vão-me ver como o chef mauzão, mas depois digo uma ou duas piadas ou dou conselhos que realmente resultam e isso tornará as coisas mais leves.
Onde é que vai comer nas folgas?
Normalmente vou aos pregos no Café Offline, aqui em Vila Nova de Gaia, e depois tento cozinhar em casa. No verão aproveito o espaço exterior para fazer grelhados, tanto carnes como peixes, e nesta altura do ano faço mais rojões, leitão e caldeirada de enguias.
Tem dois filhos, são esquisitos ou comem de tudo?
Comem tudo, o mais novo tem oito anos e a mais velha tem 17 e já faz coisas simples, como saladas ou arrozes, mas também sobremesas.
Há algum ingrediente que não goste de trabalhar ou que não coma?
Há um produto que não gosto de cozinhar nem de comer, mas que é extremamente importante, altamente sustentável e barato, que é a cavala. É um peixe que deveríamos usar, mas não gosto, nunca comprei cavalas para o hotel nem para as refeições do pessoal.
O que ainda lhe falta fazer?
Talvez daqui a quatro ou cinco anos abrir um restaurante meu em Aveiro, a minha cidade, com um conceito diferente do que faço aqui, uma coisa especializada em leitão ou em bacalhau.
Voltar a trabalhar lá fora está fora dos seus planos?
Fazia sentido fazer uma algo em formato pop up ou consultorias e não ir com a família toda atrás. Talvez Londres, porque os meus patrões são ingleses, ou em cidades grandes como Nova Iorque.
Como é um dia na sua vida?
Acordo por volta das 9h, normalmente vou treinar, se estiver bom tempo, e depois venho para o hotel. Durante a tarde vejo e-mails e faço mais a parte de gestão e às 18h15 entro na cozinha, à minha espera está sempre uma travessa onde colocam 13 ou 14 coisas, entre purés e molhos, para eu provar, aí retifico algumas coisas e no serviço já não tenho de estar preocupado com essa parte. Todos os dias provo também a comida do pessoal, vou ao refeitório e faço questão de almoçar e jantar sempre cá.
O que gosta de fazer quando não está a trabalhar?
Gosto de correr, fazer kickboxing e estar com os meus filhos, seja em pequenas saídas ou em férias, mas em férias sabe sempre melhor [risos].