A invasão da Ucrânia e as sanções aplicadas à Rússia levaram o rublo russo a cair quase 30%, fazendo a divisa russa valer menos de um cêntimo de dólar no pico da pressão, nos primeiros dias de março. Com uma certa dose de presunção, o Presidente dos EUA, Joe Biden, dobrou o b de ruble (o nome da moeda russa em inglês) e referiu-se à moeda como rubble, que se pode traduzir livremente por “poeira de destroços”.
Porém, desde então, a moeda recuperou quase todo esse “terreno” perdido e, praticamente duplicando a cotação em relação aos mínimos que chegou a tocar, estará a ser negociado muito perto dos valores anteriores à escalada do conflito. Essa estabilização até permitiu que o banco central da Rússia se desse ao luxo, na semana passada, de anunciar uma descida da taxa de juro de referência de 20% para 17%.
Na prática, o Kremlin tentou com essa decisão passar uma mensagem de tranquilidade aos mercados cambiais, afirmando que os riscos para a estabilidade financeira tinham “parado de aumentar” e que, por isso, havia condições para reverter, parcialmente, as medidas de emergência. Recorde-se que, quando começou a guerra e surgiram as primeiras sanções, o banco central tinha aumentado os juros de 9,5% para 20%.
Entre controlos de capitais de vária ordem, intervenções diretas nos mercados cambiais e, até, um coelho tirado da cartola que foi uma indexação do rublo ao ouro, as autoridades russas estão, pelo menos para já, a manter a divisa à tona de água. Está a ser decisiva a ação da governadora do banco central, Elvira Nabiullina, que terá visto Putin a recusar-lhe o pedido de demissão que fez na sequência da invasão da Ucrânia.
Os EUA, cientes de como esta valorização do rublo os faz parecer, garantem que são “insustentáveis” os expedientes a que a Rússia tem vindo a recorrer para suportar a cotação da moeda. Serão mesmo? Ou a recuperação da divisa russa é um sinal claro de que as sanções ao regime de Putin não estão a funcionar?
Economia russa ia subir 2,5%. Agora, vai derrapar (pelo menos) 15%
É difícil justificar, com base da teoria económica, que o rublo valha praticamente o mesmo antes e depois da intervenção militar na Ucrânia. Antes da invasão, entidades internacionais como o Banco Mundial, entre outras, projetavam um crescimento próximo de 2,5% na economia russa em 2022. Agora? Segundo o Instituto Internacional de Finanças (IIF), a economia russa deverá contrair-se em pelo menos 15%, em parte devido à debandada de empresas que abandonaram o país.
Esse fator, por si só, sinaliza que estão a ter impacto as medidas que têm vindo a ser postas em prática pelo Kremlin. Além da quase duplicação das taxas de juro para 20% (agora parcialmente revertida, em alguns pontos, para 17%), as autoridades russas também obrigaram as empresas exportadoras russas a converter pelo menos 80% das suas reservas de moeda estrangeira em rublos – dois fatores que induzem uma procura pelo rublo, sustentando o seu valor.
Em simultâneo, os residentes na Rússia (russos ou não) foram proibidos de contrair créditos em moeda estrangeira e, também, deixaram de poder transferir dinheiro para o exterior. “Eu queria trocar os rublos que tinha, em dinheiro, mas a taxa de câmbio está tão horrível que não faz sentido – bem que posso usar as notas como papel higiénico“, lamentou uma cidadã de Moscovo ao britânico The Independent, no final de fevereiro, antes da recuperação da cotação.
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O outro “ás de trunfo” de Putin para sustentar o valor da moeda, porém, foi a decisão de exigir pagamento em rublos aos estrangeiros que compram o gás e o petróleo da Rússia. Se essa decisão levou a uma disputa com os países aliados – que querem continuar a pagar em dólares ou euros, como sempre fizeram – a realidade é que outros países menos envolvidos no conflito têm aproveitado os descontos e, de bom grado, aceitado a exigência de Putin.
É o caso da Índia, por exemplo, que nas últimas semanas reforçou os seus stocks energéticos com petróleo e gás russo. “A segurança energética é o mais importante. Se o combustível está disponível para ser comprado, com desconto, então porque é que não havemos de comprar?”, afirmou o ministro das Finanças da Índia numa conferência da CNBC na semana passada.
Esta receita – para a qual a Europa também vai contribuindo – é o que permite que a Rússia continue a financiar a guerra na Ucrânia, beneficiando também do facto de os preços destas matérias-primas se terem valorizado, a dada altura, para os níveis mais elevados em vários anos.
O ouro. Sempre o ouro. (Ou o coelho que o Kremlin tirou da cartola)
Um outro fator, menos falado mas que terá sido determinante (enquanto durou), é que a Rússia anunciou no dia 25 de março que iria começar a comprar ouro ao sistema financeiro a um preço fixo de 5.000 rublos por grama de ouro.
Ao fazer isso, o banco central quis estabelecer uma espécie de indexação da divisa russa ao ouro – que é, por excelência, o maior símbolo de estabilidade e credibilidade nos mercados financeiros. A medida serviu para colocar um “chão” na cotação, como explica o American Institute for Economic Research: mesmo não sendo exatamente um regresso ao “padrão-ouro”, a medida ajudou a combater a perceção de que as autoridades russas poderiam enveredar pela desvalorização da moeda de forma a resistir ao impacto da crise.
Essa medida, porém, acabou por durar poucos dias já que desde o momento em que foi feito o anúncio o rublo disparou face ao dólar e se os tais 5.000 rublos valiam 52 dólares nesse dia 25 de março, na quinta-feira passada já valiam 63 dólares. O objetivo de impulsionar o rublo foi conseguido, mas talvez até rapidamente demais. A 7 de abril, citando uma “mudança significativa nas condições de mercado”, o banco central recuou.
“A Rússia tinha tomado aquela medida para conter o colapso do rublo, mas tiveram de voltar atrás porque para se ter um padrão-ouro tem de se garantir acesso e fazer prova de que se tem ouro – ora, com as sanções, isso torna-se mais difícil”, explica Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros.
Por outro lado, diz o especialista, “quando se faz uma paridade ao ouro, o reverso da medalha é que se existir o risco de não ter recursos suficientes para defender essa indexação, a moeda pode ‘estourar’ mesmo e destrói-se o sistema monetário – é uma jogada de alto risco“.
“Manipulação” feita pela Rússia “não é sustentável”, dizem EUA
Mas será real a recuperação do rublo? Os especialistas têm dúvidas: a cotação atual do rublo “é um nível completamente artificial e não tem muita validade”, comentou Cristian Maggio, analista do TD Bank em Londres, citado pela Bloomberg.
A realidade é que secou, em grande medida, a liquidez da negociação cambial envolvendo rublos: “Quase ninguém consegue transacionar rublos e mesmo aqueles que querem fazê-lo fazem-no a níveis bastante diferentes daqueles que aparecem nos ecrãs“, garante o especialista.
Aaron Schwartzbaum, investigador ligado ao think tank independente Foreign Policy Research Institute, em Filadélfia, apontou recentemente a forte quebra dos volumes de rublos que estão a ser negociados nos mercados cambiais. É claro que é mais fácil intervir, como as autoridades russas estão a fazer, num mercado com pouca liquidez e é por isso que o especialista afirmou, no Twitter, que “a taxa de câmbio do rublo dólar não é um indicador válido para a forma como as sanções estão a impactar a Rússia“.
Folks, ruble to dollar rate is not a reliable indicator of how sanctions are impacting #Russia. Trading volume tells a far different story: investors haven't suddenly warmed up. https://t.co/HfMvPbXZNv pic.twitter.com/fObMhb1IDO
— Aaron Schwartzbaum (@aaron_schwa) March 31, 2022
Ainda assim, com mais ou menos validade, as tais cotações “que aparecem nos ecrãs” têm relevância até pelo efeito psicológico que conseguem provocar nos próprios russos, que ficam mais tranquilos em relação à economia e ao sistema bancário – ajudando a contrabalançar o impacto dos sucessivos cortes de rating que avisam que a Rússia está à beira do incumprimento na dívida pública.
Mas os EUA insistem. A única razão por que o rublo recuperou é devido a “manipulação”. Antony Blinken, secretário de Estado da Administração Biden, “As pessoas estão a ser impedidas de se desfazerem dos seus rublos – isso é uma coisa que suporta o valor da moeda, artificialmente”, afirmou Antony Blinken, acrescentando que, na sua opinião, “isso não é sustentável”. Por isso, vaticinou, “vamos ver esse cenário a mudar”.
É possível que, com a fortíssima recessão económica em que a Rússia já terá caído, a mera passagem do tempo venha a fazer com que o cenário mude – e o rublo volte a derrapar. Mas os especialistas, embora duvidem da validade da cotação que se vê nos ecrãs, alertam que enquanto o Ocidente não avançar para sanções mais duras o Kremlin poderá continuar, durante bastante tempo, a ter meios para sustentar o valor do rublo.
Citado pela NBC News, Jacob Funk Kirkegaard, investigador ligado ao Peterson Institute for International Economics (PIIE), nota que “enquanto a Rússia conseguir continuar a vender petróleo e gás natural, a sua situação financeira, na verdade, é bastante robusta“. “Essa é que é a grande cláusula de escape das sanções”, atira.