Chegou atrasado à entrevista porque a reunião entre Governo e PCP derrapou em mais de meia hora, uma resquício dos tempos em que a esquerda à esquerda do PS competia pela atenção dos socialistas. “Pedro Filipe Soares, tinha saudades dessa competição à esquerda?”. O líder parlamentar bloquista desculpa-se e devolve a provocação: “Peço-vos desculpa, mas, mais uma vez, o Governo não tem as contas certas”.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, imediatamente depois de conhecer as (poucas) linhas gerais do Orçamento do Estado para 2024, Pedro Filipe Soares não poupa críticas ao Governo socialista: “Se estivesse no Governo, teria vergonha de ter o país como está tendo a possibilidade de uma solução para vários problemas”.
O líder parlamentar bloquista acusa António Costa de mentir quando diz que só o PS levou a votos, no programa para as legislativas de 2015, soluções para a Habitação e recusa ser corresponsável na falta de resposta aos problemas. “Desde 2019, não por acaso, deixámos de votar a favor dos Orçamentos do PS e começámos a demonstrar mais visivelmente as nossas divergências”, sublinha, antes de concordar com uma tese que vai correndo mesmo entre alguns socialistas: os problemas na Habitação podem acelerar o princípio do fim do costismo. “Creio que uma certa arrogância do Governo pode ter muitos custos eleitorais.”
Recusando teorizar sobre um eventual regresso da ‘geringonça’ (“é um momento do passado, não se vai repetir”), Pedro Filipe Soares defende que o “entendimento sobre políticas de esquerda faz falta” e assume que vai ver a estreia de Pedro Nuno Santos no comentário televisivo — o antigo ministro estreia-se na próxima segunda-feira, na SIC Notícias.
Ainda sobre o futuro, o bloquista deixa outra frase curiosa: preferia ter Pedro Passos Coelho como adversário nas próximas eleições legislativas do que Luís Montenegro. “Porque torna o debate mais simples. Luís Montenegro tem um passado mais difuso na mente das pessoas. Passos Coelho tem um passado mais marcante”, justifica.
[Ouça aqui a Vichyssoise com Pedro Filipe Soares]
“Excedente orçamental é motivo de embaraço”
Acabou de sair de uma reunião com o Governo. Sabe-se muito pouco sobre o que aí vem neste Orçamento do Estado, mas há uma certeza: vamos acabar com um excedente orçamental. É um motivo de orgulho ou de embaraço para o Governo?
Creio que é de embaraço. Num ano tão difícil como este… Vemos as pessoas com dificuldades na Habitação, os serviços públicos que temos, escolas fechadas, crise nos hospitais com urgências fechadas. Há um país em alvoroço e o Governo tem uma margem que não usa para responder a esse alvoroço. Claramente deveria ser um embaraço. Se estivesse no Governo, teria vergonha de ter o país como está, tendo do lado do Governo a possibilidade de uma solução para vários problemas.
Em entrevista ao Expresso, Mariana Mortágua disse que passaram oito anos desde que o Governo prometeu resolver a crise da habitação e ela só piorou. O BE não foi um dos responsáveis por permitir que o Governo continuasse a governar sem resolver essa crise? Se era tão importante como é que nunca foi uma linha vermelha para romperem os acordos da geringonça, que depois acabaram por romper?
Em primeiro lugar, vamos retirar de cima da mesa uma mentira que o primeiro-ministro repete à exaustão, que é quando diz que em 2015 só o PS é que tinha no programa medidas para a habitação. Falso. O Bloco de Esquerda tinha e, por isso, desde o início começámos a trabalhar nas questões da habitação. Foi criado um grupo de trabalho para o efeito e não por acaso nasce depois a lei de bases da habitação. Havia ali uma margem inicial temporal que era necessária porque o Governo, de forma coerente, disse sempre que tinha que haver uma contrapartida nacional e uma contrapartida local para este processo — por isso é que havia um período de discussão com os municípios. Depois começou a correr mal. Chegámos a 2019 ainda nesta fase. Aliás, desde 2019, e não por acaso, deixámos de votar a favor dos Orçamentos do PS e começámos a demonstrar mais visivelmente as nossas divergências.
Nessa altura não reparava nesses sinais de alerta?
A lei é inatacável. Há um período de negociação entre o Governo e os municípios no qual nós não participámos e que era mais ou menos opaco para nós. E isso foi onde uma parte dos problemas começou a ocorrer. Depois, algures em 2020/21, houve o deixar cair da proposta porque o Governo tinha prometido chegarmos aos 5% de habitação pública em 2030. Ora, o Governo não teve, na relação com os municípios, este objetivo. Tivemos municípios que diziam que tinham zero de necessidades de Habitação. A primeira ronda foi vergonhosa. O Governo, em vez de dizer aos municípios “não, mas isso é impossível, nós percebemos que há aqui necessidades”, não; empurrou alegremente para a frente porque isso significava menos custo do lado do Estado. Não deixámos de criticar. Creio que a crítica que nos pode ser feita é que, nesse momento, havia outros temas a que demos mais atenção, porque eles eram mais urgentes. O pressuposto era que o Estado investisse para ter um parque habitacional público. Foi onde o Governo falhou.
Há muita gente que aposta que esta crise de habitação pode ser o início do fim do costismo. O Bloco não pode ser corresponsabilizado? Acabou por admitir que não alertaram tanto para o assunto como deviam.
Conseguimos um conjunto de medidas, incluindo o controlo de rendas ao longo desse período. Não deixámos de pôr em cima da mesa a necessidade de corresponder pela construção, mas também pela garantia de que esse investimento público tinha efeito no mercado, que baixava preços.
Mas pode de facto ser o fim do costismo ou, se quiser, o fim do ciclo de governação socialista?
A Garota Não tem uma frase que acho que é estrutural: “A Habitação é a fratura exposta”. E é verdade. No nosso país, neste momento, a Habitação é fratura exposta. Tem um impacto geracional, vemos isso muito marcado nos mais novos, abaixo dos 40, mas não se extingue nessa geração.
E por isso tem um impacto político certo, é isso?
Tem um impacto político muito relevante. É difícil dizermos porque é que um governo cai, ou se vai cair ou não. Agora, que isto tem um impacto político, tem. Ao ponto de, neste momento, ser central no debate na sociedade.
E que custos eleitorais antecipa pode vir a trazer?
Creio que uma certa arrogância do Governo pode ter muitos custos eleitorais. Até porque olhamos para quem é que está a ser afetado por isto: pessoas que são dinâmicas na relação com a democracia. São pessoas informadas, classe média, classe média baixa, pessoas que votam. Não é como outros problemas em que, regra geral, o poder político diz “ah, está bem, mas esses não votam” e desvaloriza. Há vários problemas no nosso país que se eternizaram à custa disso. Estes não. Temos pessoas que tinham uma vida completamente estabilizada, pagavam as suas contas, e que, de um momento para o outro, não conseguem viver em Lisboa, não conseguem viver no Porto, são empurrados para longe de onde sempre fizeram vida, para longe das suas relações sociais habituais. Para além deste acontecimento, que é o objetivo, há depois um sentimento subjetivo de uma certa desvalorização do papel destas pessoas na sociedade. Isto tem impacto político também.
“Entendimento sobre políticas de esquerda faz falta”
Uma eventual mudança de liderança no PS mudará alguma coisa na relação do Bloco com o Governo?
A pergunta é recorrente, mas não me compete a mim estar a mandar bitaites sobre futuras lideranças do PS.
Mas gostava de voltar a conversar e influenciar as decisões do Governo?
Temos como objetivo ter força para condicionar a política do país e para governar o país.
A geringonça faz falta?
A geringonça é um momento do passado, não se vai repetir.
Nem com Pedro Nuno Santos?
A geringonça é datada, decorreu de um contexto específico. Creio que qualquer um dos intervenientes diria um conjunto de coisas que faria diferente, e por isso nada será repetido nos mesmos termos.
Mas um entendimento à esquerda, neste momento, faz falta?
Um entendimento sobre políticas de esquerda faz falta. Vamos para as ideias políticas. Nas ideias políticas, veja-se o exemplo da Saúde, onde é muitíssimo visível que o PS não está a ter a implementação de ideias políticas à esquerda. Faz falta que essas ideias sejam implementadas? Faz. Faz falta um debate na sociedade, um impulso para essas políticas serem implementadas? Só quem não precisa do SNS acha que não.
E vai ver a estreia do programa de comentário de Pedro Nuno Santos?
É na próxima semana, não é? Costumo ver todos os canais de notícias, fico sentado à frente do televisor a ver tudo.
Mas vai tirar muitas notas?
Isso já não faço, estou a ler também ao mesmo tempo, porque vou-me distraindo com o barulho da televisão.
“Se Bloco não captar descontentes, estará a falhar objetivo”
Mariana Mortágua diz que só concebe que o Bloco seja a terceira força política à frente do Chega. Se não chegar a esse resultado nas europeias, isso é um falhanço desta liderança?
A perspetiva da afirmação da Mariana não é só sobre o Bloco, é acima de tudo sobre o país. Sobre o peso que achamos que uma extrema-direita pode ter no país. Todos temos o objetivo de que o Chega não tenha uma força desmedida, não condicione a política portuguesa. Esse é o objetivo que teríamos que colocar, não pode ser outro. Agora, se avaliaremos cada eleição por esse objetivo, isso não.
Mas pode também dizer que o Bloco não consegue captar esse ressentimento que o Chega aparentemente consegue, não é? Porque já falharam este objetivo nas últimas eleições.
Há duas motivações diferentes para voto na extrema-direita. Há uma motivação que é disputável por partidos diversos, por quem está em oposição a qualquer medida do governo, por quem está descontente com a circunstância. Os motivos para descontentamento são vários e quem melhor os conseguir sintetizar e aprender pode direcioná-los politicamente. Essa é uma disputa que qualquer partido faz e se o Bloco perder para qualquer partido estará a falhar o seu objetivo. E há depois uma identificação de pessoas que são de facto de extrema-direita. Aí, não temos nenhuma pretensão de que quem tem simpatia por visões xenófobas ou racistas venha a votar no Bloco.
Catarina Martins é o melhor nome para a candidatura às europeias?
A Catarina não meteu os papéis para a reforma. Nós defendemos a antecipação de idade da reforma, mas não para os 49. Tem competências políticas que lhe são reconhecidas. Não vejo porque é que criar vetos aqui teria alguma vantagem. Mas também não vim aqui anunciar um nome que não foi sequer discutido. Em janeiro, fevereiro, vamos começar a discutir isso.
“Montenegro? Preferia ter como adversário Passos”
Vamos avançar para o segundo segmento deste programa, o bloco Carne ou Peixe, em que tem de escolher uma de duas opções. Se pudesse enviar um destes dois nomes para Bruxelas já em 2024, quem é que enviaria: António Costa ou Mário Centeno?
Não posso dizer os dois?
Sendo que, se António Costa fosse, haveria eleições.
Pode ser António Costa então.
Preferia fazer toda uma campanha para as legislativas tendo como adversário e líder do PSD Luís Montenegro ou Pedro Passos Coelho?
Passos Coelho.
Já agora, porquê?
Porque torna o debate mais simples. Luís Montenegro tem um passado mais difuso na mente das pessoas. Passos Coelho tem um passado mais marcante.