Se o ritmo do reforço vacinal contra a Covid-19 não for o mesmo que o atingido na campanha inicial de vacinação, o Natal terá “consequências péssimas” para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), com o aumento de internamentos. Raquel Duarte, que tem sido responsável por aconselhar o Governo sobre as medidas necessárias para manter a epidemia controlada, avisa em declarações ao Observador que as pessoas mais vulneráveis têm de ser protegidas antes do Natal — época em que se prevê um aumento de contactos sociais, maior mobilidade da população e uma maior propagação do vírus —, sob pena de se colocar o SNS e o desconfinamento atual em xeque.
E mesmo assim nada é garantido: também é preciso ser diligente com as medidas de proteção individual, principalmente utilizando máscara em espaços pouco arejados e sobrelotados; e desinfetando regularmente as mãos. Basta que a manutenção da cobertura vacinal falhe ou que haja um desleixo nas medidas pessoais para o vírus ganhar espaço. E essa é uma possibilidade que nem mesmo a ministra da Saúde, Marta Temido, coloca de parte, dizendo que “desde o início da pandemia que percebemos que os cenários têm de estar todos em aberto”, incluindo um novo confinamento, disse ela esta sexta-feira aos jornalistas: “Não desejamos ter essa conversa, desejamos numa próxima reunião de peritos ter informação que evidencie que estamos a conseguir controlar a situação”.
Ao Observador, esses mesmos peritos confirmaram que a situação epidemiológica está controlada, mas que só mesmo com a terceira dose a correr a todo o vapor e cumprindo as medidas de proteção individual é que o país pode sobreviver ao frio do inverno, contornar a diminuição da proteção dada pelas vacinas e passar pelo Natal sem um agravamento da situação no início de 2022. E isso também foi transmitido por Marta Temido: “No contexto português, [em vez do confinamento] o que está mesmo em cima da mesa é olhar para as medidas não farmacológicas, apelar à vacinação da população elegível já para estarmos muito protegidos”.
Linhas Vermelhas. Pandemia “com tendência crescente a nível nacional”
A necessidade de acelerar a distribuição da dose de reforço foi comunicada às autoridades de saúde a 29 de setembro num parecer emitido pela Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, um órgão consultivo coordenado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) que se reúne semanalmente, que por sua vez comunicou a recomendação ao Governo através do secretário de estado adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales. Depois disso, ao longo do mês de outubro, a equipa redigiu e enviou mais pareceres que mencionavam a velocidade da administração da terceira dose, alertando para evidências de como a efetividade da vacina na proteção contra a infeção (não contra doença grave), com o esquema original, já estava a decrescer; e que isso acontecia mais rapidamente entre as pessoas com um sistema imunológico enfraquecido.
Portugal já administrou 450 mil doses de reforço contra a Covid-19 e, segundo os dados das autoridades de saúde, de 8 de novembro (os mais recentemente reportados ao Our World in Data), 3.000 pessoas vacinam-se diariamente contra a Covid-19 — algumas com a dose de reforço, outras ainda no esquema vacinal original. Mas Henrique Oliveira, matemático do Instituto Superior Técnico que também tem acompanhado a situação epidemiológica em Portugal, considera que um “ritmo eficiente” seria alcançar pelo menos as 80 mil vacinas diárias e terminar o reforço de todas as pessoas elegíveis acima dos 65 anos em meados de dezembro — uma data que vai ao encontro das intenções do núcleo militar que está a colocar em prática o plano de vacinação. Assim “poderemos passar um janeiro e um fevereiro bastante tranquilos”, antevê o especialista.
Sem saber o ritmo a que está a decorrer atualmente a vacinação da terceira dose, Manuel Carmo Gomes considerou que Portugal deveria administrar a dose de reforço a todos os idosos a partir dos 80 anos até ao fim de novembro, uma vez que as previsões já apontam para uma subida nos casos de internamento em meados de dezembro à conta da entrada na quinta vaga. “Por precaução, é melhor não chegar lá sem reduzir drasticamente a percentagem de casos graves ainda antes” dessa altura, considerou o epidemiologista. E isto faz-se “com o reforço, claro”.
Aliás, as vantagens da administração da terceira dose aos mais idosos e imunodeprimidos já se estão a refletir no número de óbitos: Portugal regista neste momento menos mortes por Covid-19 do que no início de setembro apesar de, nessa altura, já se ter atingido os mais de 2.000 novos casos. Segundo Henrique Oliveira, o decréscimo nos óbitos já é fruto do início da segunda ronda da campanha de vacinação, que arrancou a 11 de setembro para os idosos com mais de 80 anos que já tivessem tomado a vacina contra a gripe havia pelo menos duas semanas; e que avançou na semana seguinte para as pessoas a partir dos 65 anos.
Portugal não precisa de mais medidas antes do Natal, dizem peritos. Mas com condições
Por outro lado, o aumento do número de novos casos, empurrado pela subida do R(t), já está a ter impacto nos internamentos por Covid-19 em Portugal, que no início do outono estavam a diminuir e que neste momento já estão a cavalgar os efeitos da quinta vaga. Ainda assim, como a situação está muito mais controlada do que a registada há um ano, Raquel Duarte, que também é médica pneumologista, não vê necessidade de apertar a malha às regras de contenção: afinal, neste momento, Portugal tem cinco vezes menos casos e sete vezes menos internamentos do que em 2020.
Apela, isso sim, a que se sigam as recomendações das autoridades de saúde para cumprir o distanciamento físico, utilizar máscara em espaços fechados ou superlotados; e desinfetar regularmente das mãos. Se os portugueses se tornarem menos zelosos com estes conselhos — e têm-se tornado, afirma Raquel Duarte — e se o ritmo da vacinação entre os mais frágeis não chegar ao nível do registado durante a primeira campanha, não será possível passar pela quinta vaga sem instituir medidas mais restritivas: “Nesta altura temos os ingredientes fundamentais para controlar a pandemia”, assevera, mas “a terceira dose vai ser imprescindível [aos mais vulneráveis] para o risco continuar reduzido”.
Henrique Oliveira, que há um ano avisara que um alívio das medidas às portas do Natal seria catastrófico para o controlo epidemiológico no país, agora considera desnecessária a implementação de mais medidas: “Se fomos incrivelmente relaxados no ano passado, agora também seria absurdo sermos incrivelmente prudentes”, comparou o matemático, embora considere “forçoso” vacinar os mais idosos antes do Natal para “a vida regressar ao normal” e poderem celebrar a época sem medos.
Há um ano, à primeira vista, os números também não pareciam causar demasiadas preocupações — viu-se depois que era assim porque não transpareciam a verdadeira capacidade portuguesa de contrariar uma nova subida de casos. O país tinha alcançado o pico da segunda vaga a 20 de novembro e a diminuição da incidência e do R(t) depois dessa data deu a ilusão de que havia espaço para um alívio natalício (apesar de alguns peritos terem alertado desde cedo que não).
Ainda assim, o indicador da pandemia que o Instituto Superior Técnico criou, em parceria com a Ordem dos Médicos, para avaliar a pandemia — e que toma em consideração a incidência, o R(t), o número de óbitos por caso positivo, os internamentos gerais e os internamentos em cuidados intensivos — estava com valores mais elevados nessa altura do que agora: o modelo, que não é linear (ou seja, um valor que seja o dobro do outro não simboliza uma situação duas vezes pior, mas mais do que isso), atribuía 138 pontos à situação epidemiológica portuguesa. A consequência surgiu logo na semana entre o Natal e a Passagem de Ano, com o surgimento da pior vaga que Portugal registou até agora, marcada por dezenas de milhares de novos casos, milhares de internados e centenas de mortos.
Já na terça-feira, a avaliação era de apenas 59,24 pontos, que é ligeiramente superior ao valor atingido em anos de epidemias gripais severas (55 pontos). Era preciso chegar aos 100 para o sistema de saúde nacional entrar em colapso e a pressão ser intolerável. A diferença de um ano para o outro é que, apesar de no ano passado o número de internamentos estar em descida e de os casos em unidades de cuidados intensivos estarem a estabilizar — ou seja, em sentido contrário do que está a acontecer agora — todo o SNS estava refém da Covid-19 e o acompanhamento de outras doenças estava praticamente paralisado. Agora “não creio que tenhamos de hipotecar a economia e a vida das pessoas com esta situação radicalmente diferente”, considerou Henrique Oliveira.
Manuel Carmo Gomes também afirma que a situação portuguesa é moderada e que, por isso, há espaço de manobra sem necessidade de implementar novas regras. O facto de a maioria dos casos se registar nas faixas etárias mais jovens é, na verdade, um sinal de descanso para o epidemiologista: “Eles transmitem o vírus, mas não vão parar ao hospital. Não me preocupa muito que contraiam a infeção e desenvolvam sintomas parecidos aos de uma constipação, desde que não precisem de entrar no hospital”.
Mais: as vítimas mortais atualmente são maioritariamente idosos com comorbilidades muito acentuadas e são mais raros os casos de pessoas que morreram por Covid-19 apesar de anteriormente serem saudáveis, nota Henrique Oliveira. E para proteger a vida desses idosos, a dose de reforço funcionará como uma barreira: com ela, segundo Carmo Gomes, pode haver um aumento significativo dos casos sem que isso tenha impacto nos internamentos. Recorde neste gráfico a evolução dos internamentos por Covid-19 em Portugal.
Quão significativo pode ser esse aumento? Uma comparação entre os números de internamentos em outubro de 2020 e em julho de 2021, períodos que tiveram incidências semelhantes e evoluções epidemiológicas coincidentes, revela que a vacinação contribuiu para achatar as hospitalizações para um terço. Ou seja, teriam sido precisos três vezes mais casos naquela altura para se provocar o mesmo nível de stress sobre o SNS, conclui um ensaio publicado pela Faculdade de Ciências na Universidade de Lisboa, assinado pelo epidemiologista Carmo Gomes e pelo engenheiro Carlos Antunes, também ele responsável por monitorizar a situação da Covid-19 em Portugal.
E esse cenário está longe de acontecer: “Não esperamos que a Covid-19, só por si, venha a causar uma pressão sobre o sistema hospitalar equiparável à do período pré-vacinação. O reforço vacinal dos mais idosos nas próximas semanas, se suficientemente rápido, deverá compensar a redução da proteção que tinham obtido através da vacinação no início do ano, permitindo que atravessem o inverno com baixa probabilidade de contrair doença grave”, diz o documento.
Portugal é um oásis numa Europa à beira de novos confinamentos
Mas a maior parte da Europa, sobretudo a leste e norte, não vive a epidemia de Covid-19 com tanto alívio como os portugueses. As situações na Bélgica, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Estónia, Grécia, Hungria, Países Baixos, Polónia e a República Checa foram classificados pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) como “muito preocupantes”, a avaliação mais grave. Imediatamente abaixo estão outros dez países da União Europeia: Alemanha, Áustria, Dinamarca, Eslováquia, Finlândia, Irlanda, Letónia, Lituânia, Luxemburgo e Roménia. Portugal tem uma situação “moderada”, a par de França e Chipre; mas ainda assim acima da “preocupação reduzida” que recai sobre Espanha, Itália, Malta e Suécia. No gráfico aqui em baixo pode comparar a incidência a 14 dias por milhão de habitantes dos países em situação “muito preocupante” e “preocupante” com Portugal.
A situação é de tal modo séria que o chanceler austríaco Alexander Schallenberg avisou que “está por dias” a entrada em vigor de um confinamento para pessoas que não estejam completamente vacinadas, o primeiro desde o verão — uma medida que os Países Baixos ponderam replicar. A Alemanha, que também já fala em confinamento, alcançou esta quinta-feira o número mais alto de casos diários desde o início da pandemia (mais de 50 mil) e, a par da Áustria, é dos países do continente europeu com maior percentagem de pessoas acima dos 12 anos não vacinadas. No fundo da tabela está Portugal. Os dados também mostram uma relação clara entre a cobertura vacinal e as mortes por milhão de habitantes: quanto mais baixa for a primeira, mais são os óbitos por Covid-19, como comprova, por exemplo, o caso da Bulgária.
Dear Europe, couldn't find this graph anywhere so I plotted it myself in case anyone would like to know.#Europe #vaccinated #COVID19 @VaccinationEu pic.twitter.com/6Qzvm4ZVnN
— Luka Mesin (@LukaMesin) November 10, 2021
Comissária europeia preocupada com cinco países que podem tornar-se berço de novas variantes
O fenómeno que atravessa a Europa, o único continente onde as mortes por Covid-19 estão a aumentar e que reúne dois terços do novos casos em todo o mundo, tem duas explicações: a cobertura vacinal muito aquém da registada em Portugal e a maior leveza na utilização de máscara. Mesmo coberturas vacinais de 60% a 75% — como acontece na Bélgica, Países Baixos, Alemanha, Grécia e Irlanda —, não são suficientes para enfrentar a variante delta, muito menos com as medidas não farmacológicas num cumprimento mínimo, com regras ainda mais leves do que em Portugal.
This. pic.twitter.com/QMwzHAg4dH
— Mathieu von Rohr (@mathieuvonrohr) November 11, 2021