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Com o único voto a favor do PS, oposição do PCP e da Iniciativa Liberal e abstenção dos restantes partidos (incluindo o Bloco, que tem criticado duramente o Governo nesta matéria), a chamada agenda do trabalho digno — um pacote com alterações à lei laboral — vai finalmente baixar à especialidade no Parlamento.
É nesse contexto que poderão surgir algumas alterações — e a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, já admitiu clarificações no caso do trabalho nas plataformas, perante as críticas intensas do Bloco de Esquerda, que fala num “recuo” prejudicial para quem nelas trabalha.
Silêncio absoluto. Costa usa discussão laboral para desviar o foco de polémicas
A agenda do trabalho digno já tem vida longa ainda antes de ter nascido enquanto lei. Era para ter sido aprovada no ano passado, mas o chumbo no Orçamento do Estado e a consequente dissolução do Parlamento levou a que ficasse em suspenso, à espera de um novo Executivo. O Governo voltou ao tema, mas pelo caminho fez várias alterações ao documento que, nas palavras dos ex-parceiros de “geringonça” do Bloco, “desfiguraram” a proposta inicial.
Numa análise genérica, o advogado especialista em direito laboral da Abreu Advogados Luís Gonçalves da Silva antecipa que o novo pacote vai “aumentar o grau de litigância” e significará mais trabalho para os tribunais arbitrais.
Compensações pelo fim de contratos
Uma das mais faladas é a compensação quando termina um contrato a prazo. A proposta do Governo é aumentar essa compensação de 18 para 24 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano de antiguidade nos contratos a termo certo e, no caso dos contratos a termo incerto, de 18 (relativos aos três primeiros anos) e 12 (a partir do quarto ano).
Luís Gonçalves da Silva preferia ter visto mais uma maior aposta no reforço dos meios da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para fiscalizar o incumprimento do que restrições à contratação a prazo que nalguns casos, diz, é um “importante instrumento de criação de emprego”, embora admita situações de abuso. A ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, revelou aliás que 62,2% dos jovens em Portugal têm contratos não permanentes, “muito acima” da média da UE, de 49,8%.
Uma novidade na Agenda é que também há alterações no caso do serviço doméstico. O que o Governo pretende é que a compensação correspondente a um mês por cada três anos de serviço, até limite de cinco, se verifique quando há uma “alteração substancial das circunstâncias de vida familiar do empregador que torne imediata e praticamente impossível” a continuidade da relação de trabalho, designadamente quando o empregador deixa de precisar dos serviços.
Há ainda novas regras para o período experimental, que obrigam as empresas a colocar no contrato a duração e as condições do período experimental. Se essa comunicação não for feita, presume-se que “as partes acordaram na exclusão do período experimental“, durante o qual o trabalhador poderia facilmente ser dispensado.
As empresas que cessarem contratos a termo, “por motivo não imputável ao trabalhador”, ficam também proibidas de admitir novos trabalhadores ou contratar serviços para a mesma atividade durante um terço da duração do contrato (incluindo renovações).
Já uma das medidas que ficou pelo caminho foi a obrigatoriedade de os empregadores justificarem por escrito a razão da denúncia de um contrato em período experimental.
Negociação coletiva: menos poder de escolha para o trabalhador
O Executivo tem também divulgado que a agenda se centra na “dinamização da contratação coletiva”. Por um lado, alarga esta forma de contratação a trabalhadores em outsourcing e trabalhadores independentes economicamente dependentes (em que mais de metade da sua atividade provém do mesmo empregador).
Luís Gonçalves da Silva critica, porém, que tenha sido introduzido um número segundo o qual o trabalhador não pode escolher a convenção coletiva que se lhe aplica nas situações em que surge uma portaria de extensão (um instrumento que estende uma convenção coletiva ou uma decisão arbitral a trabalhadores não filiados na empresa). Antes, a lei permitia que, se houvesse duas ou mais convenções aplicáveis a uma empresa, o trabalhador não filiado poderia escolher uma, mesmo apesar da existência de tal portaria. Essa possibilidade cai.
A alteração tem um pendor “ideológico” que o advogado lamenta. “Porquê? Porque o Estado acha que deve sobrepor a vontade da administração laboral através da portaria de extensão em detrimento da escolha individual do trabalhador”, aponta.
Além disso, a lei prevê atualmente que a denúncia de uma convenção coletiva seja acompanhada de justificação quanto a “motivos de ordem económica, estrutural ou a desajustamentos do regime de convenção denunciada”, mas “sem prejuízo da sua validade e eficácia“. Só que esta última formulação desaparece.
“Portanto, se uma das partes não está de acordo com essa denúncia poderá recorrer ao Tribunal Arbitral para que diga se há ou não fundamentação. Vejo com dificuldade que o tribunal arbitral se vá pronunciar sobre matérias que, em muitos casos, têm apenas a ver com a gestão da empresa“, refere. O especialista em direito laboral antevê mesmo que se crie “uma politização dos tribunais arbitrais”.
Quanto à caducidade das convenções coletivas, o Governo, que tem recusado acabar com a norma, fica a meio caminho, criando mecanismos que na prática adiam a caducidade. Isto porque os sindicatos podem pedir que a fundamentação da outra parte para o fim da convenção seja analisada por um tribunal arbitral, o que prolonga o processo.
Além disso, há um reforço da chamada “arbitragem necessária”, que permite que uma das partes a peça durante o período de sobrevigência (em que o acordo continua em vigor além do estipulado). Nesse caso, a convenção mantém-se até que seja tomada a decisão arbitral.
O Governo recuou, porém, no compromisso com a suspensão dos prazos de sobrevigência das convenções coletivas durante 36 meses, como aliás notou o deputado bloquista José Soeiro no debate desta sexta-feira.
Trabalho nas plataformas regulado, mas não tanto quanto Bloco e a versão inicial do Governo queriam
O tema foi alvo de um aceso debate entre o deputado do Bloco de Esquerda José Soeiro e a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, durante a discussão na generalidade da agenda do trabalho digno, esta sexta-feira. É que o Bloco considera que a segunda versão da proposta do Governo sobre o trabalho nas plataformas digitais, aplicada apenas para o caso dos estafetas, representa um recuo face à versão inicial e que beneficia as “multinacionais” e não o trabalhador.
Na primeira versão, o Executivo previa a presunção de existência de um contrato de trabalho quando se verificassem alguns “indícios” entre o prestador de atividade e o operador de plataforma digital, mas na nova versão já quer que além do operador haja “outra pessoa singular ou coletiva beneficiária que nela opere“, um intermediário entre o trabalhador e a plataforma.
Ou seja, se na versão inicial se previa que o contrato de trabalho tivesse de ser estabelecido entre o trabalhador e a plataforma, agora prevê-se que possa ser apenas com um intermediário.
Para o Bloco, essa alteração significa que o Governo está a ceder ao “lobby das multinacionais”. A ministra do Trabalho viria a contradizer, argumentando que “pelo contrário” o objetivo foi garantir a proteção porque havia “dúvidas” sobre a abrangência de todos os trabalhadores. O secretário de Estado do Emprego, Miguel Fontes, foi mais direto: “Para nós é indiferente saber se são as plataformas ou os intermediários. Aquilo que queremos proteger são os direitos daqueles que nela trabalham enquanto trabalhadores”, afirmou.
A proposta deixa também cair alguns “indícios de laboralidade” como o controlo da atividade do trabalhador através de geolocalização ou a existência de um algoritmo para a organização do trabalho.
Luís Gonçalves da Silva concorda que se trata de um “recuo” e que a proposta tal como está confere menor proteção ao trabalhador do que inicialmente.
A mira ao trabalho não declarado
O Executivo preparou também medidas de combate ao trabalho não declarado, passando a criminalizar o trabalho não declarado, com uma pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, e a aplicação de uma contraordenação mesmo quando é feita a regularização voluntária de trabalho não declarado para evitar reincidência.
As empresas condenadas por situações de trabalho não declarado serão penalizadas por outra via: ficam impedidas de participar em concursos públicos ou de receber apoios/subsídios do Estado pelo período de dois anos.
Luís Gonçalves da Silva não tem dúvidas do benefício destas duas medidas. “Acho que devíamos ir tão longe quanto juridicamente possível. Não podemos ter empresas a beneficiar de apoios públicos ou a ganhar concursos públicos quando não cumprem as regras mínimas da concorrência”, defende.
Mais: os casos detetados de trabalho não declarado à Segurança Social terão de pagar retroativamente, pelo menos, um ano de contribuições, e não seis meses como até aqui.
Restrições ao trabalho temporário
Além do trabalho não declarado, outra das miras do Executivo está no trabalho temporário, estabelecendo-se que o trabalhador não pode estar como temporário numa função durante mais de quatro anos, para a mesma empresa de trabalho temporário ou outras do mesmo grupo. Quando esse limite é ultrapassado, os contratos temporários (contratos a termo celebrados entre a empresa de trabalho temporário e o trabalhador) têm de ser convertidos num “contrato por tempo indeterminado para cedência temporária”, para o qual a empresa também tem de ter uma licença.
As empresas também não poderão proceder a mais do que quatro renovações do mesmo contrato temporário, uma redução face às atuais seis. Luís Gonçalves da Silva não acredita que a alteração vá resolver “o abuso”, sendo antes preferível investir na fiscalização e na “aplicação de sanções efetivas”, defende.
As empresas de trabalho temporário ficam ainda obrigadas a ter um quadro de pessoal permanente. E caso não estejam devidamente licenciadas, os trabalhadores temporários têm obrigatoriamente de ser integrados no quadro da empresa que utiliza os serviços. Aliás, são apertados os requisitos para a atribuição e manutenção dessas licenças das empresas de trabalho temporário, como a regularização da situação contributiva, maior exigência na demonstração da capacidade financeira, reforço da verificação de idoneidade dos sócios, gerentes, diretores ou administradores.
Acresce que os sócios, gerentes e administradores das empresas de trabalho temporário condenados por contraordenações laborais ficam proibidos de exercer funções em novas empresas de emprego temporário. São ainda reforçadas as contraordenações relativas às condições de trabalho dos trabalhadores temporários, e em relação à segurança e saúde, deveres de informação sobre o enquadramento dos trabalhadores na empresa e execução da caução.
Já quanto ao outsourcing, uma empresa fica impedida de recorrer a esses serviços durante um ano após um despedimento coletivo ou extinção do posto de trabalho.
ACT com novos poderes
A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) vai deixar de poder suspender os despedimentos nos quais encontre indícios de ilegalidade, como previsto inicialmente. À luz da nova proposta, quando a ACT encontrar indícios de ilegalidade num despedimento, deve notificar o empregador de forma a que este regularize a situação. Se tal não acontecer, deve comunicar ao Ministério Público “para fins de instauração de procedimento cautelar de suspensão de despedimento”.
Além disso, é alargado o âmbito da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, passando a abranger situações de falso trabalho a termo, tal como já acontecia com o falso trabalho independente. Quando a ACT detete estas situações deve notificar o empregador para que regularize. Da mesma forma, se não o fizer, a ACT comunicará ao MP.
Licenças parentais alargadas (aos pais que a partilhem e alguns avós)
A agenda tem também medidas que, segundo o Governo, visam melhorar a conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar. Uma delas é a obrigatoriedade de os pais com filhos até aos seis anos ou com crianças com deficiência ou doença crónica (nestes dois casos independentemente da idade) darem autorização para aplicação dos regimes de adaptabilidade de horários de trabalho e bancos de horas.
Em termos de licenças parentais, o Governo tem uma proposta que permitirá aos progenitores, a partir dos 120 dias de licença, partilhar a licença se o fizerem a tempo parcial, ou seja, em conjugação com o emprego e com a respetiva redução do subsídio. Além disso, será majorado o subsídio parental complementar se a licença for partilhada por igual período entre os dois progenitores.
Os avós e outros familiares diretos também veem os direitos reforços. A proposta alarga ao tutor ou à pessoa que tenha a confiança judicial do menor (por exemplo, familiares diretos como avós, tios ou irmãos) a possibilidade de gozar a licença parental inicial. O Governo previa inicialmente que isso apenas acontecesse quando houvesse impedimentos de força maior dos pais, mas essa formulação não consta na proposta que chegou ao Parlamento. O Observador questionou o Ministério, mas ainda não obteve resposta.
Há outras medidas que têm sido anunciadas pelo Governo, mas que não constam na proposta que chegou ao Parlamento. Uma delas é a proibição de os contratos de trabalho celebrados com o Estado no âmbito de um contrato de concessão por períodos superiores a um ano contenham vínculos precários. Já quando os contratos públicos têm uma duração inferior a um ano, os contratos de trabalho a termo têm de ter, no mínimo, a duração do contrato público.
Ao Observador, o Ministério do Trabalho responde que “nem todas as medidas” anunciadas pela ministra no âmbito da agenda do trabalho digno “correspondem a alterações ao código de trabalho”. Esta em específico “consta da proposta de alteração ao código de contratação pública que o Governo irá submeter à Assembleia”.