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O antigo primeiro-ministro, José Sócrates, presta declarações no âmbito do processo Operação Marquês, no início do debate instrutório, no Campus de Justiça, em Lisboa, Portugal, 04 março 2020. A Operação Marquês conta com 28 arguidos – 19 pessoas e 9 empresas -, entre os quais o ex-primeiro-ministro José Sócrates, o banqueiro Ricardo Salgado, o empresário e amigo de Sócrates Carlos Santos Silva e altos quadros da Portugal Telecom e está relacionado com crimes de corrupção, ativa e passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal. TIAGO PETINGA/POOL/LUSA
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José Sócrates foi acusado pelo MP da alegada prática de 31 crimes em outubro de 2017. Foi pronunciado pelo juiz Ivo Rosa em abril de 2021 apenas por seis crimes / TIAGO PETINGA/POOL/LUSA

TIAGO PETINGA/LUSA

José Sócrates foi acusado pelo MP da alegada prática de 31 crimes em outubro de 2017. Foi pronunciado pelo juiz Ivo Rosa em abril de 2021 apenas por seis crimes / TIAGO PETINGA/POOL/LUSA

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Sócrates. Depois da decisão-bomba de Ivo Rosa, o que pode decidir a Relação de Lisboa?

Relação de Lisboa pode repor uma parte importante da acusação original da Operação Marquês e levar Sócrates, Vara, Bava, Granadeiro e Salgado a julgamento. Ou pode enterrar definitivamente o caso.

Esta quinta-feira será marcada por uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) que pode ressuscitar ou emitir uma certidão de óbito à acusação histórica do Ministério Público (MP) deduzida em 2017. É uma espécie de ‘ou vai ou racha’.

Quase três anos depois da decisão do juiz de instrução Ivo Rosa que arquivou 172 dos 189 crimes que compunham a acusação do MP — e que caiu como uma bomba na opinião pública — é a vez da Relação decidir o recurso dos procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto.

Porque é que o recurso do MP para julgar José Sócrates demorou quase dois anos a chegar à Relação de Lisboa?

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É verdade que a decisão das três juízas desembargadoras da 9.ª secção do TRL é relativamente rápida, visto que é dada em menos de um ano, face à distribuição à relatora Raquel Lima e às adjuntas Micaela Pires Rodrigues e Madalena Parreiral Caldeira a 17 de fevereiro de 2023.

As razões para os quase dois anos que demorou a subida do recurso do MP para a Relação de Lisboa estão explicados aqui e deve-se a um pequeno imbróglio jurídico criado pelo juiz Ivo Rosa.

O Observador explica-lhe os cenários possíveis para o futuro da Operação Marquês.

Cenário 1. Relação de Lisboa dá razão ao juiz Ivo Rosa e Operação Marquês fica praticamente morta e enterrada

É o cenário mais fácil de explicar — e o mais desejado por José Sócrates e pelos restantes arguidos que ficaram com a vida resolvida com a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa de abril de 2021.

Antes de mais, uma pequena viagem no tempo até ao dia 9 de abril de 2021. Lendo durante várias horas a sua decisão instrutória com mais de 6 mil páginas, que concluiu uma fase de instrução que se iniciou em setembro de 2018 com a distribuição dos autos por sorteio, Ivo Rosa decidiu pronunciar apenas cinco dos 28 arguidos originalmente acusados pelo MP.

Lendo durante várias horas a sua decisão instrutória com mais de 6 mil páginas, Ivo Rosa decidiu pronunciar apenas cinco dos 28 arguidos originalmente acusados pelo MP. Ao mesmo tempo que acusava a equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira de “falta de rigor”, “pouco rigor” ou “rigor insuficiente” por terem produzido uma acusação "inócua" e "delirante" por via do recurso à "fantasia" e à "especulação". 

Ao mesmo tempo que acusava a equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira de “falta de rigor”, “pouco rigor” ou “rigor insuficiente” por terem produzido uma acusação “inócua” e “delirante” por via do recurso à “fantasia” e à “especulação”.

Falando apenas do caso de José Sócrates, o juiz Ivo Rosa considerou que os crimes de corrupção passiva imputados ao antigo primeiro-ministro e a Carlos Santos Silva já tinham prescrito, não deu como provado que Santos Silva fosse um alegado testa-de-ferro do socialista — logo, não deu como provado que os cerca de 24 milhões de euros que estavam depositados em várias contas bancárias suíças em nome de Santos Silva  pertencessem a Sócrates.

Mais: o agora juiz desembargador — que curiosamente está colocado na mesma 9.ª secção que irá decidir o recurso do MP — considerou em abril de 2021 que, afinal, tinha sido Carlos Santos Silva alegadamente a corromper José Sócrates com o pagamento de 1,7 milhões de euros. Contudo, tal crime teria prescrito.

Assim, José Sócrates e Carlos Santos Silva foram pronunciados por três crimes de branqueamento de capitais (ligados a um crime de corrupção sem demonstração de ato concreto já prescrito) e três crimes de falsificação de documento.

Sócrates “mercadejou” com o cargo de primeiro-ministro. O crime de surpresa encontrado por Ivo Rosa — que também prescreveu

Ou seja, Ivo Rosa considerou que não estavam fundamentados os indícios recolhidos pelo MP contra Sócrates para lhe imputar três crimes de corrupção passiva:

  • por ter alegadamente favorecido Ricardo Salgado Salgado no negócio da compra da empresa brasileira Oi por parte da Portugal Telecom;
  • por ter alegadamente beneficiado o Grupo Lena em diversos projetos, como o concurso internacional do TGV;
  • e por ter tido interferência, juntamente com Armando Vara, na aprovação de um crédito na Caixa Geral de Depósitos de um avultado empréstimo a um grupo de investidores liderados por Hélder Bataglia.

Entre prescrições, interpretações legais próximas das defesas, nulidades e arquivamentos por alegada falta de indícios, o juiz Ivo Rosa avaliou o chamado caso Portugal Telecom (PT) de uma forma semelhante ao segmento de crimes relacionados com José Sócrates. Pouco restou dos 31 crimes que o MP tinha imputado a Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava.

Como Ricardo Salgado sai (quase) limpo do processo

Apenas Salgado foi pronunciado por três crimes de abuso de confiança por se ter apropriado de cerca de 10 milhões do Grupo Espírito Santo (GES) por via da sociedade offshore Espírito Santo Enterprises, o famoso saco azul do GES.

Uma decisão da Relação de Lisboa que acompanhe praticamente o núcleo central dos raciocínios do juiz Ivo Rosa quer sobre a apreciação da matéria de facto reunida pelo MP, quer sobre as inúmeras questões de direito que a decisão instrutória levantou — terá de levar inevitavelmente à rejeição do recurso do MP e à manutenção da decisão instrutória de 9 de abril de 2021.

O que acontece a seguir?

Ficando o recurso do MP arrumado, apenas restam as quatro certidões que o juiz Ivo Rosa ordenou que fossem extraídas em abril de 2021 e que, neste momento, estão nas seguintes condições:

  • José Sócrates e Carlos Santos Silva ainda não foram julgados ao fim de quase três anos depois da decisão instrutória de Ivo Rosa. Entre recursos, rejeição de juízes e manobras dilatórias sucessivas, Sócrates tem conseguido adiar o julgamento. E ainda não foi decidida uma nulidade da decisão instrutória arguida por José Sócrates e de Carlos Santos Silva na Relação de Lisboa sobre uma alegada alteração substancial dos factos que terá sido feita por Ivo Rosa ao pronunciar os arguidos com uma apreciação da matéria de facto completamente diferente do que estava na acusação original do MP.
  • Armando Vara foi condenado a dois anos de prisão efetiva no dia 13 de julho de 2021. Está em causa o branqueamento de 535 mil euros que recebeu numa conta da Suíça aberta em nome de uma sociedade offshore. O caso transitou em julgado no final de 2022 e Vara aguarda um cúmulo jurídico entre esta pena e a de prisão efetiva do processo Face Oculta (que já cumpriu) para saber se fica em liberdade por as penas já terem sido executadas na totalidade ou se é preso novamente. Neste momento, está em curso um recurso que a sua defesa apresentou contra a primeira decisão do cúmulo jurídico.

PT, BES e Vale do Lobo. Como Sócrates terá sido corrompido desde o 1.º dia

  • Ricardo Salgado já foi também condenado em primeira instância a uma pena de seis anos de prisão por três crimes de abuso de confiança por alegadamente se ter apropriado de cerca de 10 milhões de euros do ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo. Em maio de 2023, a Relação de Lisboa agravou a pena de prisão efetiva para oito anos. Os autos estão agora no Supremo Tribunal de Justiça para ser decidida uma reclamação da defesa de Salgado sobre a medida da pena. Entretanto, a defesa de Ricardo Salgado já tem duas perícias independentes noutros processos que envolvem Salgado que atestam o diagnóstico de doença de Alzheimer — o que terá consequências sobre o local onde uma eventual pena de prisão efetiva será cumprida mas não impedirá o trânsito em julgado dos autos.
  • Quanto a João Perna, desconhece-se se o julgamento por detenção de arma proibida já foi realizado mas é altamente provável que o processo já esteja resolvido desde há muito, tendo em conta a bagatela penal em causa.

Cenário 2. MP ganha e Sócrates, Vara, Salgado, Bava e Granadeiro são julgados

Tendo em conta o historial do juiz Ivo Rosa no Tribunal da Relação de Lisboa — com cerca de 20 decisões revertidas pela Relação de Lisboa em poucos anos —, este cenário é o que menos surpreende. O que não significa, contudo, que o mesmo seja uma certeza absoluta.

Se o juiz Ivo Rosa foi particularmente duro com o MP, os procuradores Rosário Teixeira e Vitor Pinto não lhe ficaram muito atrás nos argumentos que apresentaram no recurso que será agora decidido. Acusando o magistrado judicial de erros absurdos e de “arrogância intelectual”, defendem que o grosso da acusação deduzida em outubro de 2017 deve ser alvo de pronúncia para julgamento e a decisão instrutória deve ser revogada pela Relação de Lisboa.

Deturpações, erros e absurdos. Como o Ministério Público desmonta a decisão de Ivo Rosa em 5 pontos

O que significa que, por exemplo, no caso de José Sócrates, as três desembargadoras da 9.ª secção do TRL possam vir a pronunciar o ex-primeiro-ministro pelos seguintes crimes:

  • 3 crimes de corrupção passiva de titular de cargo político;
  • 13 crimes de branqueamento de capitais;
  • 3 crimes de fraude fiscal qualificada;
  • 6 crimes crimes de falsificação de documentos.

Um pormenor relevante sobre estes crimes de falsificação: a prescrição de uma parte destes crimes já foi admitida pelo juiz Pedro Correia, que substituiu Ivo Rosa titular destes autos na fase de instrução. E até o próprio MP já admitiu em 2021 que dois desses seis crimes já tinham prescrito. A Relação de Lisboa pode confirmar isso mesmo.

As partes mais polémicas da decisão de Ivo Rosa são fáceis de explicar:

  • O facto de ter declarado prescritos praticamente todos os crimes de corrupção. Porquê? Porque o juiz entende que o crime de corrupção se consuma com o acordo entre corruptor ativo e passivo, o que faz com que a primeira data que conta para a prescrição é a data do acordo — e não a data do recebimento das últimas vantagens (dinheiro, bens, etc.);
Uma das partes mais polémicas da decisão de Ivo Rosa prende-se com a contagem do prazo de prescrição. Quando é que começa a contar o prazo: a partir do acordo ou do último recebimento corrupto? O juiz Ivo Rosa optou pela primeira opção, apoiando-se apenas numa decisão do Tribunal Constitucional. Mas a jurisprudência aponta maioritariamente para outra interpretação: o crime de corrupção consuma-se com o pagamento da última vantagem. Esta tese tem sido reforçada por várias decisões na Relação de Lisboa e até com estudos jurídicos, como o último do professor e advogado Nuno Brandão.
  • O juiz Ivo Rosa apoiou-se numa decisão do Tribunal Constitucional, mas a jurisprudência aponta maioritariamente para outra interpretação: o crime de corrupção consuma-se com o pagamento da última vantagem. Esta tese tem sido reforçada por várias decisões na Relação de Lisboa e até com estudos jurídicos, como este do professor e advogado Nuno Brandão.
  • Por outro lado, o juiz Ivo Rosa tem a tese de que os rendimentos com origem ilícita não podem ser tributados, o que contraria a jurisprudência que tem vindo a ser seguida. Aliás, fiscalistas como Ana Paula Dourado, Lobo Xavier, Marinho Falcão, entre outros, discordaram de forma cabal logo em abril de 2021 de teoria seguida por Ivo Rosa, como pode ler aqui.

As duas fragilidades da decisão-bomba de Ivo Rosa. Os rendimentos ilícitos que não pagam imposto e a prescrição dos crimes de corrupção

Resta saber igualmente como vai o coletivo liderado pela desembargadora relatora Raquel Lima ter em conta o recurso que José Sócrates ganhou há quase um ano sobre a prorrogação dos prazos para recorrer e arguir irregularidades e nulidades da decisão instrutória que o próprio Ivo Rosa recusou. Foi uma das poucas vitórias da defesa de Sócrates em cerca de 40 recursos e incidentes processuais que já colocou desde o início do processo.

A agora juíza titular dos autos não apreciou a questão e a Relação de Lisboa pode considerar que tal análise é inútil.

Outra consequência prática de uma possível vitória do MP é o ‘regresso’ de Zeinal Bava e de Henrique Granadeiro, que foram acusados de ter recebido cerca de 50 milhões de euros do saco azul do GES por ordens de Ricardo Salgado para alegadamente beneficiarem o BES e o GES.

O juiz Ivo Rosa considerou, por exemplo, que os dois gestores não podiam ser acusados do crime de corrupção passiva por não terem o estatuto de funcionário — uma interpretação que será agora escrutinada pela Relação de Lisboa.

O que acontece a seguir?

Se a Relação de Lisboa se decidir pelo restabelecimento de uma parte muito importante da acusação original da Operação Marquês, há uma coisa que se pode tomar como certa: José Sócrates irá fazer tudo por tudo em termos processuais para impedir que uma eventual pronúncia seja efetivada durante muito tempo.

Teoricamente, a decisão da Relação de Lisboa é irrecorrível mas Sócrates poderá apresentar reclamações, aclarações e ainda arguir nulidades. No máximo, pode tentar recorrer para o Tribunal Constitucional.

Tal litigiosidade pode eventualmente ser seguida por outros arguidos.

Se a Relação de Lisboa decidir-se pelo restabelecimento de uma parte muito importante da acusação original da Operação Marquês, há uma coisa que se pode tomar como certa: José Sócrates irá fazer tudo por tudo em termos processuais para impedir que uma eventual pronúncia seja efetivada durante muito tempo.

Por outro lado, repete-se que os diferentes recursos apresentados sobre a alteração substancial dos factos ainda não foram apreciados porque Sócrates continua a utilizar todos os expedientes dilatórios para impedir uma decisão da Relação de Lisboa.

Em suma: veremos se o sistema da administração da justiça portuguesa consegue resistir a estes sucessivos litígios processuais de Sócrates e consegue iniciar o julgamento no mais curto espaço de tempo.

Cenário 3. Relação de Lisboa fica a meio caminho e só repõe uma parte dos crimes da acusação original da Operação Marquês

Pode ser a hipótese mais provável de todas e, mesmo assim, poderá fazer com que José Sócrates seja eventualmente julgado apenas por uma parte dos 31 crimes que lhe foram imputados.

Resta saber quais serão e se nesse grupo se inclui uma parte ou o total dos três crimes de corrupção passiva imputados a José Sócrates e os crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais de Zeinal Bava e a Henrique Granadeiro, por exemplo.

Viagens, casas, decoração, amigas. Como Sócrates gastou milhões

O mesmo se aplica a Armando Vara, acusado de um crime de corrupção passiva de titular de cargo político, um crime de branqueamento de capitais e dois crimes de frade fiscal.

O que acontece a seguir?

Só os crimes pronunciados serão alvo de julgamento e os remanescentes serão definitivamente arquivados. Mesmo assim, é previsível que José Sócrates tudo fará para impedir a marcha normal do processo, tentando apresentar sucessivas manobras dilatórias, como os seus advogados têm feito ao longo do processo desde 2015.

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