“Ainda acha que fez um mau negócio com o Estado?” A pergunta foi feita pela jornalista Adília Godinho, da RTP, no dia em que o Museu Berardo era inaugurado pelo primeiro-ministro José Sócrates no Centro Cultural de Belém (CCB). A resposta de Joe Berardo foi típica do comendador. Era um “mau negócio”. De “certeza absoluta”. E era tão “mau negócio” para ele, Joe nascido José, que nem sequer era “preciso ir à Universidade” para chegar a essa conclusão. O mais importante, contudo, era que Joe não estava ali pelo dinheiro. “Estou nisto pela Cultura”, sentenciava o empresário madeirense.
Contudo, é muito difícil classificar o negócio entre o Estado e Berardo como um “mau negócio” para o empresário madeirense. Aliás, o então Presidente Cavaco Silva alertou precisamente José Sócrates — cujo Governo negociou, fechou e assinou todos os acordos com Joe Berardo — para os riscos de um acordo que, no seu entendimento, não respeitava o interesse público.
Cavaco Silva baseou-se em seis pareceres/memorandos dos seus serviços jurídicos que criticavam de forma violenta os acordos assinados pelo Governo Sócrates, já que estes levam “longe de mais o reconhecimento dos interesses do colecionador José Berardo, com prejuízo dos interesses do Estado” através de cláusulas “altamente obscuras”, “singulares” e “controversas”. Isto além do “entreposto de imunidade em relação à classificação das obras”, da “posição de controlo ou golden share eterna” dos herdeiros Berardo ou do facto de nada poder ser alterado nos acordos assinados sem “autorização pessoal” de Berardo, lê-se nos pareceres da Casa Civil de Cavaco Silva a que o Observador teve acesso.
“Nunca conheci esses pareceres de que fala”, garantiu José Sócrates ao Observador. Mas Nunes Liberato, chefe da Casa Civil do Presidente Cavaco Silva, assegura: “Os pareceres da Casa Civil foram comunicados ao gabinete do primeiro-ministro, como era normal. Por isso mesmo, o Governo sentiu necessidade de alterar o diploma”. Nunes Liberato acrescenta que teve igualmente “contactos intensos” com Pedro Silva Pereira, então ministro da Presidência do Conselho de Ministros e braço-direito de Sócrates.
As mudanças, contudo, foram de pormenor. Sócrates desvalorizou os alertas centrais da Presidência da República — que, aliás, tinham levado a Casa Civil a aconselhar Cavaco Silva a vetar o diploma. Conselho que o Presidente não seguiu, preferindo promulgar o diploma a 28 de julho de 2007 com um comunicado muito crítico em que esclareceu que não aderia “às opções políticas” tomadas por Sócrates. O comunicado deu muito que falar então — e incomodou em particular Joe Berardo. “Vou começar um projeto com uma nuvem negra em cima de mim”, disse à RTP.
O Observador reconstitui os bastidores daquela que foi a primeira grande guerra entre Cavaco e Sócrates — e que nunca foi conhecida de forma pormenorizada até hoje. Até porque o polémico acordo para a instituição do Museu Berardo volta, mais de 10 anos depois, a ganhar relevância no âmbito das dívidas de Joe Berardo à Caixa Geral de Depósitos (CGD) e a outros bancos.
MP investiga acordo com Berardo e possível relação com empréstimos de cerca 400 milhões da CGD
A importância que o acordo entre o Estado e Joe Berardo sobre a coleção de arte voltou a ter prende-se muito com a investigação que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal abriu à gestão da Caixa Geral de Depósitos. Ao que o Observador apurou, o Ministério Público (MP) está a investigar o negócio feito entre o Governo Sócrates e Berardo e a eventual relação que existe entre tal acordo e os empréstimos de cerca de 400 milhões de euros que a CGD concedeu a entidades controladas por Berardo entre 2006 e 2008. Por isso mesmo, e tal como o Correio da Manhã noticiou a 1 de junho, o MP solicitou ao Ministério da Cultura cópia dos acordos feitos com Berardo para serem juntos aos autos da CGD onde se investigam crimes de corrupção, administração danosa, participação económica em negócio e peculato.
A primeira relação é simples de explicar. Além das suspeitas de que o acordo para a coleção de arte terá sido altamente lesivo para o Estado, o mesmo tem uma importância fulcral no autêntico puzzle jurídico construído pelo advogado André Luiz Gomes em defesa de Berardo. Na prática, o acordo de comodato assinado pelo Governo Sócrates acaba por proteger a Coleção Berardo de ser penhorada pelos bancos porque a coleção está emprestada ao Estado. Mesmo com a penhora dos títulos que compõem o capital da Associação Coleção Berardo, a dona formal dos quadros, a existência do acordo de comodato é um claro obstáculo à venda dos mesmos.
Por outro lado, há ainda uma coincidência de timing entre a assinatura do protocolo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo, a aprovação por parte do Governo Sócrates do decreto-lei que aprova os estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — a instituição que gere a Coleção Berardo no CCB mas que não é a dona dos quadros — e a aprovação dos créditos da Caixa a Joe Berardo para comprar ações do Banco Comercial Português (BCP) e da Portugal Telecom (PT).
Na prática, o empresário madeirense meteu-se em duas guerras muito caras a José Sócrates: o controlo do BCP e a luta contra a OPA da Sonae. Sendo que, neste último caso, a contribuição do financiamento da Caixa foi claramente inferior à do BES de Ricardo Salgado.
De facto, a 3 de abril de 2006 foi assinado o protocolo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo. Vinte e quatro dias depois, a CGD liderada por Carlos Santos Ferreira aprovou o primeiro empréstimo de 50 milhões de euros à Metalgest, holding de Joe Berardo. A maioria do capital serviu para comprar ações do BCP mas também terá financiado a aquisição de ações da Portugal Telecom — onde Berardo entrou para se posicionar ao lado do BES de Ricardo Salgado contra a OPA da Sonae.
A 28 de maio de 2007, quase um mês antes de o Museu Berardo ser inaugurado com pompa e circunstância por José Sócrates, a Caixa aprovou uma facilidade de crédito à Fundação José Berardo no montante de 350 milhões de euros. As ações do BCP que foram adquiridas com esse capital serviram de garantia. De acordo com a revista Sábado, esse crédito tinha demorado 57 minutos a ser aprovado no Conselho Alargado de Crédito da CGD em março.
Há ainda um novo empréstimo 38 milhões de euros a 29 de abril de 2008 mas já fora dos timings de decisão do Museu Berardo.
A explicação para a ausência de Cavaco no dia da inauguração do Museu Berardo
Naquela inauguração de 25 de junho de 2007 do Museu Berardo faltava uma pessoa: o Chefe de Estado. Por que razão não estava presente? Um comunicado de 28 de julho de 2006, emitido pela Presidência da República a expressar as “dúvidas” que Cavaco Silva tinha sobre negócio entre Sócrates e Berardo, já deixava antever que algo de grave tinha acontecido.
A explicação para a ausência de Cavaco Silva da inauguração do Museu Berardo era simples: apesar de ter promulgado o diploma que criou a fundação que gere o museu, o Presidente não concordava com o acordo fechado pelo Governo Sócrates antes de tomar posse. Daí não querer que a sua presença fosse lida como uma validação do negócio.
Nunes Liberato, chefe da Casa Civil de Cavaco, teve “intensos contactos” durante o processo de promulgação, segundo afirmou ao Observador, com Pedro Silva Pereira, ministro da Presidência do Conselho de Ministros. E chegou mesmo a entregar a Silva Pereira toda a informação contida nos pareceres durante um almoço que ocorreu no Palácio de Belém, segundo apurou o Observador. Contudo, praticamente todos os alertas foram ignorados.
As primeiras críticas e a proibição de classificação da Coleção Berardo
O decreto-lei n.º 164/20006 de 9 de agosto de 2006 aplicou o protocolo que tinha sido assinado em abril de 2006, sob o olhar atento de José Sócrates, entre o Ministério da Cultura (representado por Isabel Pires de Lima), o Centro Cultural de Belém (cujo líder era António Mega Ferreira) e Berardo. Os dois documentos (decreto-lei e protocolo) estipulam os termos em que Joe Berardo empresta a sua coleção em regime de comodato ao Estado durante 10 anos — tendo o mesmo acordo sido prorrogado em 2016 durante mais seis anos.
É no âmbito do processo de promulgação dessa norma que os serviços jurídicos da Presidência da República produzem o seu primeiro parecer 28 dias depois. E não são nada meigos — nem os termos do protocolo, nem com o conteúdo do decreto-lei algo de promulgação.
O centro do parecer, contudo, é o desequilíbrio do acordo claramente a favor de Joe Berardo e os seus desmesurados poderes. O desagrado de Cavaco Silva com o desequilíbrio do acordo negociado pelo Governo Sócrates era tal que, a propósito de uma capa que a revista norte-americana fez na mesma altura com o multimilionário e filantropo Warren Buffet chegou a desabafar para a sua equipa. “Este, sim, é que é um verdadeiro benemérito”, disse o Presidente, enquanto pegava na revista.
Comecemos pela famosa cláusula de compra do Estado. No dia da inauguração, Berardo tinha-se vergado de forma humilde aos dotes de negociador de José Sócrates e da ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, dando-lhe “os parabéns pela pressão e exigência que fizeram de eu ter esta opção [de compra] ao valor de hoje”. A realidade do acordo, contudo, era outra.
Na prática, e tal como constatava o assessor jurídico da Presidência da República, tal cláusula de compra era mais uma cláusula de venda, tais são os poderes de Berardo para recusar o valor proposto pelo Estado. “Prevê-se uma avaliação internacional” do valor da coleção Berardo mas esta “de nada servirá do ponto de vista arbitral para a fixação do preço de venda, pois a Associação [Coleção Berardo, a dona dos quadros] pode pura e simplesmente recusar-se a aceitar tal preço resultante da avaliação”, lê-se no parecer.
Pior: o Estado estava proibido de classificar as obras da Coleção Berardo e não era claro que pudesse impedir que as mesmas saíssem para o estrangeiro, segundo o entendimento da assessoria jurídica da Presidência.
Aliás, a tal cláusula 10.ª do protocolo assinado entre a Associação Coleção Berardo e o Estado foi recordada a 12 de junho de 2019 pela Agência Lusa, que, após consultar os acordos depositados no Ministério da Cultura, concluiu o mesmo: o Estado comprometeu-se a “não classificar, ao abrigo da atual e/ou futura legislação nacional, e/ou comunitária de protecção do património cultural, a Colecção Berardo, e/ou qualquer das peças que a integre”. A cláusula não foi mudada em 2016 quando o Estado e Joe Berardo prorrogaram o acordo até 2022.
Há 13 anos, a Presidência da República já tinha alertado o Governo Sócrates para isso mesmo. Mais: o Estado estava obrigado a aceitar o depósito da aquisição de novas obras no CCB por parte de “José Manuel Rodrigues Berardo, a Associação, a Fundação José Berardo e/ou qualquer outra entidade, de forma direta ou indireta controlada por estes”, sobre as mesmas (as novas e as peças que já compunham a coleção) “incide a proibição de o Estado as classificar — e, eventualmente, pois a redação da alínea b) da Cláusula 10.º não é clara, impedir a sua saída para o estrangeiro – o que se afigura altamente arriscado”, lê-se no parecer jurídico da Presidência da República de 2006.
O Expresso noticiou em abril que o Governo tinha impedido a saída de 16 peças da Coleção Berardo para o Reino Unido para serem vendidas. O Governo de António Costa não invocou os acordos assinados com Berardo mas sim o Código Civil. Berardo contestou, alegando que nada nos acordos assinados com o Governo Sócrates permitia ao Estado impedir a saída ou a venda das peças. Era essa também a versão dos pareceres da Presidência da República.
Custos para o Estado e receitas para Berardo
É um dos pontos que sempre foi criticado nos acordos feitos entre o Estado e Berardo — e a Presidência da República de Cavaco Silva não fugiu à regra.
“Os custos de funcionamento são suportados pela Fundação do CCB [a Fundação criada pelo Estado para gerir o CCB e não a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo], não sendo contabilizado a favor do Estado o valor da visibilidade e exposição pública que a apresentação desta coleção — e do nome do seu instituidor — adquirem pelo uso de um espaço como o CCB”, critica o assessor jurídico de Cavaco.
Acresce que as despesas de seguros serão “suportadas pela Fundação de Arte Moderna e Contemporânea”, enquanto que as receitas da bilheteira constituem receitas da Fundação Berardo, “não havendo a mínima previsão de qualquer encontro de contas” entre receitas e despesas.
De acordo com os relatórios e contas da Fundação do CCB de 2015 a 2018 (os últimos disponibilizados no site da instituição), os custos de funcionamento têm estabilizado ligeiramente acima de 1 milhão de euros anuais. Trata-se de custos com água, eletricidade, vigilância e segurança, limpeza, seguros e comunicações, sendo que o valor total não difere muito nos restantes anos. Isto é, o Estado já terá pago mais de 10 milhões de euros pelos custos do Museu Berardo. Mais: essa despesa anual vale quase 50% dos custos anuais de manutenção totais do CCB.
Os acordos assinados com o Estado também estipularam que este “participará financeiramente na constituição de um fundo para aquisição de bens que integrarão” a Coleção Berardo, através da entrega de 500 mil euros por ano — sendo que Berardo teria que entregar outros 500 mil euros. Este valor, a acreditar em Pedro Lapa, ex-diretor artístico do Museu Berardo, terá sido pago apenas durante os dois primeiros anos, o que terá permitido adquirir em 2007 e 2008 mais de 200 peças — a que acrescem as 864 peças que faziam parte da Coleção Berardo à data do negócio com o Estado.
Em 2006, os serviços jurídicos da Presidência da República levantaram precisamente esta questão: “Qual será o destino destas obras [das que foram adquiridas com dinheiro dos referido fundo financiado com dinheiro público], caso o Estado não exerça o direito de opção?” A resposta não é clara, visto que a redação das cláusulas dos Estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea que regulam essa matéria “é altamente obscura”, lê-se no parecer.
É um negócio de “tudo ou nada”, remata o assessor jurídico, referindo-se ao acionamento da opção de compra.
O “entreposto de imunidade” e a “golden share eterna” de Berardo após eventual compra do Estado
E se o Estado comprasse a coleção Berardo? Isto é, e se a Associação Coleção Berardo (a entidade que formalmente detém os quadros e que é controlada por Joe Berardo) aceitasse vender os quadros? Que direitos passaria a ter o empresário madeirense? De acordo com os pareceres da Presidência da República, os direitos mantinham-se praticamente intocáveis.
Dito de outra forma, caso o Estado comprasse a Coleção Berardo (o que, tendo em conta as duas avaliações feitas em 2006 e 2009, valeria entre 316 milhões e 500 milhões de euros), o empresário mantinha os seguintes poderes:
- Manutenção da presidência honorária da Fundação até à sua morte;
- Propor a nomeação e a destituição do diretor do Museu Berardo;
- Representar protocolarmente a Fundação;
- O Estado não pode extinguir o Museu e o nome “Berardo” é considerado definitivo e irreversível,
“Por outras palavras, continuará a ser ‘o rosto’ de uma Fundação que ostenta o seu nome mas cujo património” teria sido “adquirido pelo Estado ao preço que José Manuel Rodrigues Berardo” aceitasse, constata o assessor jurídico de Cavaco.
Em caso de morte de Joe Berardo, também os seus descendentes manterão poderes importantes, mesmo após a coleção passar para o Estado:
- Manutenção dos direitos de voto no Conselho de Administração;
- Composição paritária e, para certas, matérias maioria de quatro quintos;
No entendimento do assessor de Cavaco, os herdeiros de Berardo “continuarão a ter uma posição de controlo ou golden share eterna, mesmo após a coleção passar para a propriedade plena do Estado”.
Por último, e mesmo depois depois da compra da Coleção Berardo, o Estado continuará a ter a obrigação de aceitar as obras de arte da Fundação José Berardo, da Associação, de José Berardo e de quaisquer outras entidades detidas por estes, “a qual perdura indefinidamente e, com ela, a possibilidade de ad aeternum, da Fundação [de Arte Moderna e Contemporânea] representar um entreposto de imunidade em relação à classificação das obras.”
O “enclave”, a perda de autonomia do CCB e os “amplíssimos poderes de gestão” da Fundação Berardo
É por tudo isto que o assessor de Cavaco Silva critica a opção do Governo de aplicar o conteúdo do protocolo por via de um decreto-lei — o que o leva a classificar tal opção como uma “singular contratualização do procedimento legislativo”, já que o Estado está a obrigar-se perante um privado a “elaborar atos com força de lei”. Isto é, não se trata de um mero acordo entre o Estado e um privado mas sim de uma lei que obviamente o próprio Estado não poderá desrespeitar.
Outras das críticas prende-se com o facto de ser criado “um enclave” no seio da Fundação Centro Cultural de Belém. Isto é, não só a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea liderada por Berardo tem ali sede, como o Museu Berardo ocupa uma parte assinalável do CCB, “o que suscitará naturalmente atritos e problemas de compatibilização, nomeadamente se tivermos em conta os amplíssimos poderes de gestão do espaço atribuídos à Fundação Berardo” pelo protocolo assinado com o Governo Sócrates. Por exemplo, só com o voto com favorável de quatro dos cinco membros do Conselho de Administração da nova Fundação é que “o CCB poderá adquirir ou receber em depósito quaisquer obras de arte por períodos superiores a um ano”. Isto é, o CCB (o Estado português) precisava de uma autorização de uma fundação privada para expor o que quer que fosse no melhor espaço de exposições da capital.
De facto, os sucessivos presidentes do CCB, nomeadamente Vasco Graça Moura, queixaram-se à Presidência da República que não podiam fazer nada no Museu Berardo. Até Mega Ferreira, o presidente do Conselho de Administração do CCB que assinou o acordo com Berardo, discordou que o Governo tenha cedido todo o espaço de exposição do CCB — o maior espaço de Lisboa — a Berardo.
E se o Estado quiser alterar estatutos da Fundação? Acaba o comodato e as obras têm de ser devolvidas
O Governo de José Sócrates obrigou ainda o “Estado a abdicar de legislar no futuro”, lê-se nesse parecer de 29 de junho. E porquê? Porque, “nos termos da cláusula 13.º do protocolo, qualquer alteração dos estatutos — aprovados por decreto-lei, note-se — sem autorização da Associação [Coleção Berardo, a dona dos quadros] ou autorização pessoal de José Berardo” terá como implicação automática “a restituição imediata das obras em comodato”.
É por isso que os serviços jurídicos da Presidência da República afirmam que “José Berardo adquire, na prática, por via indireta o dominus [dono] dos Estatutos”. Ou seja, “existe um direito de resolução unilateral do comodato a favor de José Berardo, sem recurso a qualquer tribunal arbitral, não existindo, em contrapartida, um idêntico direito a favor de outra a parte, o Estado”, lê-se no parecer.
É por isso, conclui o assessor jurídico de Cavaco Silva, que, caso não alterasse os termos do acordo com Berardo, o Estado arriscava-se a manter “indefinidamente o problema que se quis ultrapassar: fazer pairar a ameaça sobre o Estado e a opinião pública da saída da coleção para o estrangeiro.”
Tinha sido precisamente essa ameaça de Joe Berardo que tinha levado José Sócrates a querer chegar a acordo para a criação do Museu Berardo. Tudo para que, como afirmou à RTP no dia da inauguração do Museu, a coleção continuasse em Portugal. “Havendo alguém, como o comendador Joe Berardo, que quer pôr ao serviço da comunidade a sua coleção”, o Governo e o Estado “devem assegurar as condições para que isto [o museu] que estava antes encaixotado possa ser visto pelos portugueses, pelos turistas — ao serviço de um país que fica hoje melhor e mais rico”, afirmou Sócrates.
Os acordos do Governo Sócrates “levam longe de mais o reconhecimento dos interesses de Berardo”
Todas estas críticas foram transmitidas pela Presidência da República ao Governo. Cavaco Silva ficou muito preocupado quando leu o primeiro parecer e determinou que Nunes Liberato, o seu chefe da Casa Civil, entregasse uma nota com todas estas críticas a Pedro Silva Pereira, então ministro da Presidência do Conselho de Ministros e a figura mais próxima de Sócrates.
As críticas e as movimentações de Cavaco Silva não caíram bem no Governo. José Sócrates argumentou junto do Presidente que os termos do protocolo, que foi assinado em abril de 2006, já tinham sido anteriormente fechados. Isto é, tudo tinha sido negociado e fechado no âmbito das competências do Governo ainda antes de Cavaco Silva tomar posse como Presidente da República a 9 de março de 2006. Formalista como sempre, esse era um argumento forte para Cavaco — e por isso o evidenciou no comunicado em que anunciou a promulgação do diploma apesar das suas dúvidas.
Mesmo assim, a Presidência da República insistiu em mudanças no projeto de decreto-lei. Daí ter sido elaborada uma nota a 6 de julho de 2006 com 12 pontos muito concretos que deviam ser alterados — e que já tinham sido descritos nos últimos pareceres.
A 21 de julho, o Governo Sócrates envia um novo projeto de decreto-lei mas as alterações são mínimas e de pormenor. A única alteração significativa passa pela eliminação parcial da paridade entre o Estado e Joe Berardo em termos de membros do Conselho de Administração da Fundação após a eventual compra da coleção por parte do Estado. Isto porque o quinto membro passava a ser nomeado pelo ministro da Cultura — e não por acordo entre este e Berardo.
A assessoria jurídica de Cavaco Silva ripostou. Entre críticas às “cláusulas pétreas [cláusulas que não podem ser alteradas]”, às “tentativas inúteis de apropriação do futuro” e o “dever eterno do Estado manter o Museu [Berardo] aberto ao público com aquela denominação”, a Presidência continua a manter a sua ideia central: leva-se “longe de mais o reconhecimento dos interesses do colecionador José Berardo, com prejuízo dos interesses do Estado.” Ou seja, o Estado “está sempre obrigado a preservar a dignidade inerente à prossecução do interesse público, e não de meros interesses privados, por mais legítimos que eles sejam”.
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José Sócrates desmente ter recebido pareceres. Nunes Liberato assegura que foram entregues
Confrontado com o conteúdo dos pareceres da Presidência da República citados pelo Observador, José Sócrates desmente ter recebido os documentos. “Nunca conheci esses pareceres de que fala nas suas perguntas. Os pareceres da Casa Civil servem para aconselhar o Presidente, não o Governo”, afirmou Sócrates, numa resposta por escrito.
Contactado pelo Observador, Nunes Liberato, chefe da Casa Civil de Cavaco Silva, assegurou que os pareceres da Casa Civil foram comunicados ao gabinete do primeiro-ministro, como era normal. Por isso mesmo, o Governo sentiu necessidade de alterar o diploma. De facto, o Executivo de Sócrates enviou para a Presidência da República um novo projeto de diploma no dia 21 de julho (com alterações de pormenor, é certo) — o que demonstra que o Executivo teve conhecimento dos pareceres da Casa Civil.
O Observador perguntou ainda a José Sócrates se Cavaco Silva alguma vez lhe solicitou a alteração do diploma que instituiu a fundação que gere a Coleção Berardo, assim como solicitou um comentário às duras críticas contidas nos pareceres da Casa Civil de Cavaco Silva. O ex-primeiro-ministro não respondeu, tendo preferido fazer a seguinte afirmação: “Por favor, não iludamos os factos: o Governo aprovou o diploma e o Presidente promulgou-o. As razões que terão levado o Presidente, com a sua decisão, a desconsiderar os pareceres internos da sua Casa Civil — se é que eles existem — só ele as pode explicar”.
Tal como Cavaco Silva já tinha feito em julho de 2006, Liberato explicou que o Presidente promulgou o diploma, apesar do conselho de veto dado pela sua Casa Civil, por “circunstância que condicionavam” a sua ação. Em primeiro lugar, o facto de o Governo assegurar que “tinha assumido compromissos com o comendador José Berardo antes de o Presidente tomar posse” — Cavaco Silva tomou posse a 9 de março de 2006.
Por outro lado, e além da “importância cultural da coleção Berardo”, que justificava a sua exposição num espaço público como o CCB, o “Presidente encontrava-se em início de mandato”. Isto é, Cavaco Silva tinha prometido na campanha presidencial que teria uma “cooperação estratégica” com Sócrates e não podia começar o mandato com um veto numa situação com a importância desta.
Acresce que a Presidência tinha feito tudo para alertar o Governo para os perigos que os acordos com Berardo comportavam. O próprio Nunes Liberato tinha tido “contactos intensos” com Pedro Silva Pereira, o ministro da Presidência do Conselho de Ministros, para alterar os “poderes do comendador José Berardo após o Estado eventualmente executar a cláusula de compra prevista nos acordos estabelecidos pelo Governo” e para o protocolo assinado entre o Estado e a Associação Coleção Berardo fosse público. “O diploma aprovado pelo Governo não tinha previsto que o protocolo assinado entre o Estado e a Associação Coleção Berardo fosse conhecido”, afirma Liberato.
Nunes Liberato insiste ainda que a “promulgação de um diploma não significa concordância do Presidente relativamente ao seu conteúdo”. O próprio Cavaco Silva já tinha feito questão de afirmar no comunicado de julho de 2006 que “o ato de promulgação de um diploma legal não significa necessariamente a adesão do Presidente da República às opções políticas a ele subjacentes, nem implica o seu comprometimento institucional com toda as soluções normativas nele inscritas”.
Pedro Silva Pereira, por seu lado, faz declarações semelhantes às de José Sócrates e diz que as negociações entre o Estado e Berardo “não foram conduzidas pela Presidência do Conselho de Ministros mas sim pelo Ministério da Cultura, competente em razão da matéria”.
O atual eurodeputado e vice-presidente do Parlamento Europeu recusa-se a comentar qualquer questão sobre o processo de promulgação do diploma que instituiu a fundação que gere o Museu Berardo. “Compreendo bem a curiosidade mas nunca cometi, nem mesmo a posteriori, a deslealdade institucional de violar o dever de reserva que deve reger essas relações institucionais. Ainda que outros o façam, eu não tenciono cometer essa deslealdade”, afirmou numa resposta escrita.
Contudo, faz questão de enfatizar que o diploma “foi devidamente promulgado” pelo Presidente da República, que, “à luz da versão final do diploma, não viu motivos para suscitar quaisquer dúvidas de constitucionalidade ou exercer o seu poder de veto político” — “sem essa promulgação, o decreto-lei aprovado pelo Governo não existiria e o acordo celebrado com o colecionador José Berardo não teria produzido quaisquer efeitos”, assegura.